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E se não dermos valor ao ornamento?

Os acervos de azulejaria pernambucana, tradição herdada dos antepassados ibéricos, estão relegados ao abandono, quando não, depredados e saqueados, o que os coloca em vias de extinção

TEXTO DANIELLE ROMANI
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Março de 2011

Desgaste marca a fachada de residência azulejada na Rua Velha

Desgaste marca a fachada de residência azulejada na Rua Velha

Foto Roberta Guimarães

A prática de revestir fachadas e interiores de prédios com azulejos foi herdada dos nossos antepassados ibéricos, e disseminada por várias cidades brasileiras. Importantes centros econômicos e políticos do Brasil Colônia e do Império, o Recife e Olinda se destacaram no uso dessa técnica secular, que até hoje pode ser admirada em moradias, conventos e igrejas locais.

Mostrar toda a complexidade, beleza e multiplicidade dos padrões e tipos de azulejaria – a civil do século 19 e a religiosa dos séculos 17 e 18 – era a inspiração inicial desta matéria. Nosso ponto de partida foi procurar a arquiteta Sylvia Tigre de Hollanda Cavalcanti, especialista em patrimônio histórico e autora de dois livros que são referência na área: O azulejo na arquitetura civil de Pernambuco, século 19, publicado em 2002 e estruturado a partir de levantamento do pesquisador Antônio de Menezes e Cruz; e O azulejo na arquitetura religiosa de Pernambuco, séculos 17 e 18, editado em 2006.

Durante o encontro com Tigre, a pesquisadora alertou que grande parte do acervo civil pernambucano sofre por conta do abandono dos proprietários, roubo dos exemplares e descaso público, e que está em vias de extinção. Ela não exagerou. Com base nas duas publicações da especialista, traçamos roteiros no Recife e em Olinda, as duas cidades com a maior quantidade de casas azulejadas, e nos deparamos com a depredação do conjunto.

O que seria uma reportagem de exaltação à beleza de um ornamento típico de nossas cidades acabou transformando-se numa investigação sobre o desmonte de um patrimônio arquitetônico estadual.

BAIRROS CENTRAIS
O Bairro da Boa Vista dispõe do maior conjunto da arquitetura civil pernambucana, reunindo, atualmente, mais de três dezenas de imóveis com revestimento do tipo, cuja expressividade é comparada ao acervo de São Luiz do Maranhão. O que não significa que ele esteja garantido. A Boa Vista, na verdade, apresenta um conjunto de ruínas, de fragmentos e resquícios do que significou a tradição da arquitetura civil do século 19. Poucas casas se mantêm íntegras e conservadas.

Nas ruas Barão de São Borja e da Soledade, que possuem uma das maiores concentrações azulejares da cidade, é possível conferir mais de uma dezena de residências com esse revestimento, mas apenas duas estão em bom estado. O restante, inclusive numa escola pública, encontra-se em péssimas condições: com as fachadas malcuidadas, em ruínas ou descaracterizadas. Na Rua de Santa Cruz, que abriga outro importante conjunto, a situação é quase idêntica, com um agravante: lá, uma das fachadas recebeu pintura sobre as peças cerâmicas.

Em quase todo o bairro, o casario se mantém “em pé” com dificuldade, e os proprietários, quando presentes, argumentam que não têm condições de arcar com os reparos e a manutenção. Dono de uma casa revestida com delicada azulejaria francesa, José Ermídio, 90 anos, há três décadas no local, aflige-se para preservar o prédio. “As autoridades cobram, mas não nos ajudam em nada. O IPTU é alto, por um prédio caindo aos pedaços. Não temos qualquer incentivo, só penalidades”, reclama o morador.


Nas Graças, o prédio da Academia Pernambucana de Letras teve o revestimento recuperado

O furto de peças é outra preocupação constante. Irene Nunes de Souza, conhecida como Maruza, 80 anos, moradora da área há mais de 50, foi vítima de uma ocorrência dessa natureza. Conta que, um dia, ao acordar, constatou que metade dos seus belos e raros azulejos franceses do século 19 haviam sido retirados durante a madrugada. “Levei um susto enorme”, diz a proprietária, que encomendou a especialistas a reprodução do padrão francês, mas teme ser novamente furtada.

O saque às casas do centro é uma ameaça constante, principalmente devido à impunidade. Basta o exemplo da fachada de uma residência na Rua dos Coelhos. Quem passa pode observar, no cimento cru, apenas as marcas das peças seculares portuguesas, descritas no livro de Sylvia Tigre como dotadas de um padrão diferenciado.

A situação de abandono não é diferente nos bairros de Santo Antônio e São José, que sofrem, principalmente, pela descaracterização promovida por estabelecimentos comerciais e pela favelização local. Já no Bairro do Recife, a degradação não é constatada por um motivo: dos quatro imóveis listados em um inventário realizado na década de 1950, sobrou apenas um com fachada azulejada, em bom estado, na Rua do Bom Jesus.

O desmonte do acervo azulejar do centro da cidade, na opinião do coordenador-geral do Laboratório de Pesquisa, Conservação e Restauração de Documentos e Obras de Arte da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Antônio Montenegro, reflete a degradação total da área. “Os bairros centrais do Recife formam um maravilhoso conjunto, no qual foram combinados aspectos naturais e culturais com rara felicidade. A ação de desmonte não se restringe aos azulejos, mas a todos os componentes arquitetônicos e estilísticos, pois o centro está totalmente degradado, entregue à própria sorte: na ocupação dos seus espaços de modo indevido, na completa desorganização da circulação de pessoas e de veículos, na sujeira, na falta de saneamento e na insegurança”, aponta.

Ele acredita que, a curto prazo, será difícil modificar a realidade. “Não é tarefa fácil, requer ação incisiva do poder público, em suas várias instâncias, que combine não só obras físicas e imediatas – de restauração, reconstrução e retomada dos lugares – mas, talvez, principalmente, de ações civilizatórias de educação, de presença das instituições cumprindo seus diversos papéis. Nesse processo, acredito que o patrimônio arquitetônico – pelos seus significados históricos, políticos, culturais – possa servir de ponto de partida e de apoio”, sugere Montenegro.

Um dos agentes da degradação da zona central foi a desvalorização imobiliária. Vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE, o arquiteto Luiz Amorim afirma que a favelização da área é o cerne do problema. “O fenômeno de perda de integridade do centro da cidade é complexo, e envolve, principalmente, o deslocamento do capital imobiliário para outras áreas, o que abriu espaço para ocupação de uma população de mais baixa renda nas localidades desvalorizadas”, pondera.


Dona Irene Nunes (D) foi vítima de roubo dos azulejos
franceses do século 19 de sua residência

BAIRROS NOBRES
Suas afirmações são pertinentes, pois o quadro muda consideravelmente quando se visita os chamados bairros residenciais nobres, onde os moradores têm maior padrão aquisitivo, e a valorização imobiliária é uma realidade. Mas, mesmo neles, questiona-se a utilização dada aos antigos prédios.

Em Casa Forte, Monteiro e Apipucos, com exceção do prédio do Instituto de Pesquisas Sociais da Fundaj e de duas residências, que mantêm todas as características preservadas, a maioria dos imóveis com fachada azulejar virou salão de festa de arranha-céus luxuosos. O que significa dizer que lhes foi reduzido o sentido espacial e a grandiosidade.

Na Madalena, a situação é diversa, os imóveis, três no total, estão em bom estado e, apesar da função comercial, suas características foram totalmente preservadas. O mesmo acontece nas Graças, onde os azulejos que enfeitam a fachada do prédio da Academia Pernambucana de Letras receberam vida nova, depois de recente restauro.

Em Olinda, onde se contabilizam cerca de 15 casas e sobrados do tipo, a situação é de menor decadência. Mas não é ideal, principalmente no que diz respeito aos prédios públicos, como a Câmara Municipal e a Secretaria de Educação, que se encontram sem manutenção e com falta de peças. Lamentável, principalmente por se tratar de uma cidade-patrimônio.

A situação do acervo azulejar religioso é menos problemática, apesar dos conjuntos encontrados em vários conventos e igrejas locais apresentarem sinais de deterioração, a maioria deles por falta de manutenção adequada ou exposição a condições ambientais desfavoráveis.

Exemplo disso pode ser visto no conjunto formado pelo Convento de São Francisco e Igreja de Nossa Senhora das Neves, ambos localizados na ladeira de São Francisco, no Carmo. A preciosa azulejaria local, encontrada no claustro, sacristia e galerias, além da nave da igreja, apresenta evidentes sinais de corrosão devido à ação do tempo e da maresia, segundo afirma a mestre em Arqueologia e Preservação de Patrimônio, Suely Cisneiros, que vem mapeando todo o acervo azulejar religioso pernambucano.

Foi durante esse trabalho que Suely verificou desgastes na fachada da Igreja Nossa Senhora dos Prazeres, no Monte dos Guararapes, cujos azulejos externos, datados do século 17, sofrem com a ação das intempéries; também investigou as condições do acervo encontrado na Capela de Nossa Senhora de Piedade, e constatou que, neste caso, o triplo conjunto está em boa situação. O problema é a ausência de 26 peças que compõem o altar e seus mosaicos laterais.


Na Capela de Nossa Senhora de Piedade, estão faltando 26 peças que compõem o altar e seus mosaicos laterais de temática incomum

URGÊNCIA
Mesmo carentes de reparos e manutenção, as igrejas são um problema menor na conservação do patrimônio azulejar. “Por terem seu acervo abrigado, todas são passíveis de restauração”, explica Roberto Carneiro, restaurador e técnico em Preservação e Tombamento da Fundarpe.

Especialista na área, há três décadas, Roberto afirma que até mesmo o acervo civil dos bairros centrais do Recife – cuja exposição às intempéries e ao intenso fluxo de carros são outros grandes problemas, além dos já mencionados – pode ser restaurado. Mas alerta: a ação de resgate tem que ser imediata.

Diante da afirmação do técnico, a indagação surge naturalmente: o que é preciso, então, para que a depredação seja freada e ações emergenciais ativadas? Ao que tudo indica, o problema se concentra na falta de uma política nacional, que começa com a ausência de um orçamento adequado para os organismos responsáveis pela preservação poderem atuar; por descaso dos proprietários e pela ausência de políticas efetivas, que consigam driblar entraves.

Leis, certamente, não faltam. São diversas, em nível federal, estadual e municipal. Só para citar um exemplo, a Constituição Federal, no seu artigo 216, inciso primeiro, é bem clara: “o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.

No âmbito municipal, o casario histórico e seus adereços, a exemplo dos azulejos, está protegido pelas Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural, as ZEPH, segundo a Lei 16.176, de 1996, que regulamenta o uso e a ocupação do solo no Recife, e que estabelece zonas específicas, de acordo com as características de cada localidade. Os Bairros de São José, Santo Antônio e da Boa Vista estão inclusos nessas áreas de preservação, e deveriam ter suas características rigorosamente mantidas pelos proprietários, a partir de fiscalização dos órgãos municipais.

A Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC) da Prefeitura do Recife é a responsável pela área. Planeja, analisa e fiscaliza, mas não tem poder de autuar, ou seja, não tem poder policial de multar nem de punir quem desrespeita a lei – o que, de certa forma, lhe tira a agilidade para coibir infrações. Essa função, atualmente, é cumprida pela Diretoria de Controle Urbano (Dircon), responsável pelas autuações, a partir de denúncias da população ou da própria DPPC.


Há desgastes nos azulejos, datados do século 17, da Igreja Nossa Senhora dos Prazeres, no Monte dos Guararapes

“Notificamos o proprietário para que resolva a situação. Caso isso não aconteça, pode-se chegar até a ação judicial. A multa, nesses casos, varia entre 10% até 50% do valor venal do imóvel. Esse tipo de situação representa em torno de 1% das multas aplicadas pela 1ª Regional nas áreas de São José, Santo Antônio e da Boa Vista”, informou a assessoria da Dircon. Dezenas de denúncias são feitas mensalmente, mas, em muitos casos, quando a Diretoria chega ao local, o imóvel já foi destruído ou descaracterizado.

“É uma corrida contra o tempo, na qual quem sempre perde é o patrimônio. As coisas acontecem numa velocidade tão impressionante, que, na maioria das vezes, as autoridades responsáveis só têm tempo de constatar o desmonte”, afirma Antônio Montenegro, da Fundaj.

Chefe da Divisão do Parque Histórico Nacional dos Guararapes pelo Instituto do Patrimônio Artistítico e Histórico Nacional (Iphan), a arquiteta Carmen Muraro conta que vem, há anos, lutando para resguardar e preservar os ornamentos azulejares. Visitou várias cidades pernambucanas para coibir desmontes e estudar exemplares, fez um sem-número de denúncias à Polícia Federal, muitas adiantadas na esfera judicial; participa da equipe que inventaria as fachadas azulejares na cidade, e reconhece que é difícil brigar contra proprietários que não valorizam o patrimônio, acreditando que cabe apenas ao Estado o papel de preservação. “Não se pode esperar que somente o governo aja. O que estendo às igrejas, cujas Ordens são proprietárias, e também têm que assumir responsabilidades pelos monumentos”, ponderou Carmen.

A museóloga Emanuella Ribeiro, especialista em Patrimônio e Legislação, defende a cobrança de responsabilidade do proprietário. “A depredação não é apenas um problema do poder público, e, sim, da cidade como um todo, pois nada adiantaria investir recursos públicos (nosso dinheiro, portanto) em imóveis particulares. Com certeza, com o tempo tudo estaria de volta à mesma situação.”

Mesmo concordando com a responsabilidade do proprietário, o arquiteto Luiz Amorim é enfático ao afirmar que as autoridades devem assumir o processo, em especial, na instância municipal. “A salvaguarda dos ambientes identitários da nossa cidade é de responsabilidade do município, tanto nas ações institucionais – sejam elas públicas ou privadas –, ou mesmo individuais, como numa simples denúncia. O gestor público é o responsável pelo planejamento e pela coordenação das ações de proteção. A perda desse patrimônio azulejar, por exemplo, é um sinal da pequena importância que as últimas administrações têm dado ao assunto”, critica o arquiteto.

Ele chega a afirmar que um dos problemas principais está no foco de preocupação da atual gestão municipal, que dá mais prioridade para festas e eventos, do que à preservação do casario. “O patrimônio imaterial é a nova joia da coroa da cultura. O grande erro é considerá-lo como outro tipo de patrimônio, quando os patrimônios imaterial. 

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