Arquivo

A arte azulejar moderna e o Recife

TEXTO Luiz Amorim

01 de Março de 2011

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 123 | março 2011]

A arte azulejar tem feito parte da arquitetura
da nossa cidade desde sempre, seja na forma de painéis artísticos dedicados a temas religiosos ou cívicos, seja na forma de tapetes formados por intricadas combinações de um ou mais padrões. Estão presentes nas naves das nossas igrejas, nos claustros dos nossos conventos e nas fachadas da arquitetura civil, dos imponentes solares oitocentistas da Madalena às modestas casas de porta e janela de São José e da Boa Vista.

Também se faz presente em obras relevantes da onda historicista que varreu a cultura ocidental entre o século 19 e o primeiro quartel do século 20, como em exemplares neoclássicos e neocoloniais; mas é na arte e arquitetura modernas que a azulejaria adquire novo impulso. O conjunto azulejar modernista recifense é riquíssimo, com exemplares vinculados a diversos movimentos artísticos, do realismo socialista à arte concreta, revelando temas diversos, do puro engajamento social à revelação da paisagem natural do nordeste brasileiro.

Delfim Amorim, arquiteto português, radicado no Recife em 1951, foi um dos responsáveis por alçar os tapetes azulejares modernos a uma nova escala de valores. Autor de inúmeros painéis, Amorim aprimorou sua arte ao longo de sua curta, mas profícua, trajetória profissional. Afirmava que a concepção de seus painéis azulejares se fundamentava na relação entre a obra e o observador, segundo distintas escalas de aproximação.

A distância, o olho humano tende a perceber apenas a soma cromática das cores aplicadas. Ao se aproximar, é possível apreender o tapete, cujo motivo ou motivos-padrão serão identificados quando próximo ao painel.

Amorim procurou colapsar as três escalas, simplificando o motivo-padrão, ampliando sua escala e vazando o motivo em fundo cromático escuro, para evitar que o fundo branco dilua as cores componentes, como acontece com o painel azulejar do edifício Acaiaca, na praia de Boa Viagem, sua primeira obra em larga escala e marco da azulejaria modernista brasileira. Os painéis projetados para os edifícios situados nas avenidas Conde da Boa Vista e Barão do Rio Branco, na Praça da Independência, e nas ruas Sete de Setembro e do Giriquiti, todos no centro do Recife, exemplificam seu desafio compositivo.

Uma nova tradição azulejar se inaugura no Recife, portanto, e vários arquitetos com extensa atividade profissional no Nordeste desenharam tapetes azulejares para suas obras arquitetônicas, como Acácio Gil Borsoi, Geraldo Gomes da Silva e Hélvio Polito Lopes.

A associação entre arquitetos e artistas plásticos também se faz presente.

São exemplos notáveis o painel artístico de Abelardo da Hora para o Edifício Walfrido Antunes, projeto de Waldecy Pinto; o conjunto dedicado às Revoluções de 1817, 1824 e 1848 de Corbiniano Lins, na Praça de Santo Amaro; e a vasta obra de Francisco Brennand, do painel em cerâmica-pedra dedicado à Batalha dos Guararapes, em obra do arquiteto paulistano Álvaro Vital Brasil, à flora tropical retratada em larga escala na antiga loja Primavera, na Rua do Sol. Painéis de Athos Bulcão, colaborador de Oscar Niemeyer em suas obras em Brasília, revestem os equipamentos projetados por Armando de Holanda Cavalcanti para o Parque Histórico Nacional dos Guararapes.

Essa intensa colaboração entre arquitetos e artistas plásticos para a construção de uma obra arquitetônica integral, que incorpora em sua essência os bens artísticos azulejares, caracterizou uma vasta produção entre as décadas de 1950 e 1980. Nas décadas subsequentes percebe-se um declínio significativo. Alguns fatores podem ser destacados, como a exploração de novas composições arquitetônicas e a introdução de novos materiais e técnicas de construção. Em poucas palavras, houve uma mudança de gosto impulsionada pela indústria da construção civil.

Porém, é exatamente nessas últimas décadas que a experiência recifense na arte azulejar moderna encontrou seu novo grande mestre: o arquiteto e artista plástico Petrônio Cunha Lima. Com ele, a azulejaria ganha nova dimensão artística pela introdução de intensa variação escalar de padrões, exploração de cores e suas variações tonais e uma rica aproximação com as artes gráficas.

Recomenda-se conhecer, ao menos, três obras. Os painéis azulejares da Caixa Econômica Federal, na Praça da República, projeto do extinto J&P, e do Templo da Paróquia Anglicana do Bom Samaritano, em Boa Viagem, de Arquitetura 4, seguem a mesma ordem compositiva: fundo azul cobalto e motivos gráficos vazados. No primeiro, peças gráficas; no segundo, símbolos ricos à tradição cristã, como a pomba e o cálice, impressos em peças unitárias de azulejo, dispostas lado a lado para compor o conjunto.

Já o belíssimo painel do Tribunal de Contas da União, projeto de Antônio Amaral, Claudia Charifker, Ana Amélia Oliveira e Tânia Schwambach, situado no Bairro de Santo Amaro, é de certa complexidade pela introdução da variação de escala dos motivos componentes, que promove uma profundidade ilusória.

A essência da arte azulejar modernista é o seu caráter público – a cidade que a recebe se transforma em uma galeria de arte aberta, própria para a apreciação coletiva. A galeria recifense é das mais ricas que se conhecem. Livre-apreciar é só apreciar. 

LUIZ AMORIM, arquiteto e urbanista, professor da UFPE, PhD pela University College London

Leia também:
Um elo entre a colônia e a metrópole lusitana

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”