Em certa medida, é possível pensar o TPN, inicialmente, como um campo de investigação prática do então recém-criado Curso de Arte Dramática da Universidade do Recife – hoje Universidade Federal de Pernambuco. Entre os sócios fundadores do grupo, encontram-se dois estudantes e quatro professores desse curso. Além dos seus principais líderes, Hermilo e Ariano, que ensinavam, respectivamente, História do Teatro e Teoria Teatral, outros dois docentes do curso ajudaram a criar o TPN, o dramaturgo José Carlos Cavalcanti Borges, responsável pela cadeira de Psicologia, e o escritor Gastão de Holanda, que lecionava a disciplina Teatro Português e Brasileiro. Representando os alunos, a atriz Leda Alves e o dramaturgo Aldomar Conrado.
Mas a presença, no TPN, de pessoas ligadas ao curso superior de Teatro é muito mais ampla. Vários alunos e mestres aparecem nas fichas técnicas dos seus espetáculos. Janice Lôbo, professora de Indumentária, assina cenários e figurinos de diversas montagens; Alfredo de Oliveira, professor de Caracterização, e Maria José Campos Lima, professora de Técnica Vocal, também dão suas contribuições, sobretudo nos primeiros trabalhos do grupo; e Joel Pontes, professor de História da Literatura Dramática, tem destacada participação como ator. Fora de sala de aula, em ambiente menos formal e menos hierarquizado, as diversas competências desses artistas-docentes podiam aparecer de modo mais completo e mais espontâneo, maximizando o potencial formativo inerente a todo o processo de criação de um espetáculo teatral.
Na segunda e mais prolífica fase do grupo, a partir de 1966, quando é inaugurada sua sede, em um casarão na Avenida Conde da Boa Vista, o caráter educativo do TPN se fortalece e se expande. Nesse espaço, são oferecidos cursos, seminários e palestras. Abrem-se portas para a literatura, para a música e para as artes visuais; discutem-se acaloradamente cultura popular, filosofia, religião e política.
Antes de fundar o TPN, Hermilo Borba Filho mostrou sua vocação
pedagógica no TEP. Foto: Arquivo Leda Alves
No palco e na plateia, o aprendizado se adensa, à medida que a experimentação estética torna-se mais ousada. Curiosamente, a essa altura, os professores do Curso de Arte Dramática, à exceção de Janice Lôbo, praticamente deixam de participar dos espetáculos montados pelo grupo. Até Ariano Suassuna, um dos mais vibrantes mentores do projeto, se retira do cotidiano produtivo do TPN, alegando discordar de certa aproximação com “a linha de Bertolt Brecht”. Sua fraterna amizade com Hermilo Borba Filho, todavia, não é abalada por tal decisão, nem a admiração que um tem pelo outro é diminuída.
Agora, cada vez mais envolvido com suas pesquisas sobre os espetáculos populares do Nordeste, Hermilo deixa ainda mais evidente sua vocação pedagógica, traço revelado, na década de 1940, em sua atuação à frente do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). É, portanto, o seu pensamento mais maduro, essencialmente dialógico, que norteará a intensa atividade do TPN, em seus melhores anos. Suas ideias, expostas por meio de estudos, como o livro Diálogo do encenador (1964), ou por meio de suas peças, como A donzela Joana (1964), transcendem às discussões meramente acadêmicas e ganham uma imediata dimensão prática, sendo reprocessadas a cada espetáculo produzido, mesmo quando Hermilo não os dirige.
Hermilo Borba filho (ao centro) comanda ensaio com elenco do TEP.
Foto: Arquivo Leda Alves
Por um lado, o modelo do Théâtre National Populaire, de Jean Vilar, cuja determinação era popularizar, na França, os clássicos da literatura dramática universal; por outro, o encantamento com a improvisação dionisíaca dos brincantes nordestinos, especialmente o Capitão Antônio Pereira, do Boi Misterioso de Afogados. Discordando da percepção de Ariano, Hermilo declara, em diversas oportunidades, que o acentuado caráter épico e anti-ilusionista de suas novas encenações tinha origem, não nas teorias do teatrólogo alemão, mas na arbitrariedade poética e no despojamento cênico das representações dramáticas do povo nordestino.
“Meus atores não agirão como médiuns de sessões espíritas, deixando-se tomar pelo personagem. Não. Eles brincarão (no sentido do jogo medieval e dos folguedos populares), criticarão permanentemente o personagem, criarão o processo de afastamento e desinibirão o público”, diz ele, na ocasião da estreia de O inspetor, de Gogol, em 1966. Assim, entre o amor ao texto e o prazer da comunicação direta com os espectadores, entre a racionalidade da escrita e a espontaneidade do gesto, o TPN foi percorrendo um caminho estético invariavelmente desafiador, evitando o atalho das facilidades, das soluções prontas.
NEM À ESQUERDA, NEM À DIREITA
Em relação à ideologia, a atitude não era de menor complexidade. No calor político da década de 1960, o grupo anuncia oposição tanto à “arte alienada” e “covarde”, provável referência ao Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), quanto à “arte de propaganda”, “demagógica”, crítica decerto endereçada ao Teatro de Cultura Popular (TCP) – grupo teatral do Movimento de Cultura Popular (MCP). “Acreditamos que a arte não deve ser nem gratuita nem alistada: ela deve ser comprometida, isto é, deve manter um fecundo intercâmbio com a realidade, ser porta-voz da coletividade e do indivíduo, em consonância com o espírito profundo de nosso povo”, lê-se no manifesto de fundação. Esse posicionamento logo predispõe Hermilo e seus companheiros contra setores mais conservadores da direita e, ao mesmo tempo, contra setores mais combativos da esquerda. No entanto, o próprio repertório levado à cena, indicando uma postura de resistência à opressão política do governo militar, parece suficiente para esclarecer a verdadeira orientação ideológica do grupo.
Andorra, de Max Frisch, foi traduzida por Mário da Silva e dirigida por Benjamim Santos. Foto: Arquivo Leda Alves
Dessa forma, a pedagogia do TPN, equilibrada entre a prática e a reflexão, parece ter se caracterizado sobretudo pela valorização das perguntas, bem mais do que pela satisfação com as respostas encontradas. Nesse ambiente, sempre produtivamente tensionado, se formaram, ou se aperfeiçoaram, espectadores, atores, diretores, dramaturgos, teóricos e técnicos. E os verdadeiros discípulos de Hermilo souberam encontrar seus próprios caminhos, herdando do mestre, entre outras qualidades, a inquietação artística, a postura livre de ideias preconcebidas e a enorme capacidade de se entregar ao teatro.
Não importa se o objetivo inicial, de encontrar “uma maneira nordestina de interpretar”, não tenha sido completamente alcançado; tampouco se o desejo de implantar um profissionalismo autossustentável na cena recifense tenha se revelado demasiadamente utópico. As sementes plantadas seguem dando frutos, de geração em geração, criando e recriando, não apenas uma, mas várias maneiras nordestinas de fazer teatro. Eis decerto um dos mais importantes ensinamentos legados pelo TPN. Algo que, por si só, justifica plenamente a comemoração dos seus 50 anos de fundação.
CRONOLOGIA
Espetáculos que cumpriram temporada no Teatro do Parque
1960 – A pena e a lei, de Ariano Suassuna, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1960 – A mandrágora, de Nicolau Maquiavel, traduzido e dirigido por Hermilo Borba Filho.
1961 – O processo do Diabo, espetáculo composto por três peças: Em figura de gente, de José Carlos Cavalcanti Borges; A primeira lição, de José de Moraes Pinho; e A caseira e a Catarina, de Ariano Suassuna. Dirigido por Hermilo Borba Filho, que também escreveu o prólogo, os interlúdios e o epílogo do espetáculo.
Espetáculos que cumpriram temporada no Teatro de Arena do Recife
1962 – A bomba da paz, escrito e dirigido por Hermilo Borba Filho.
1962 – Município de São Silvestre, de Aristóteles Soares, dirigido por José Pimentel.
Espetáculos que cumpriram temporada na sede do TPN
1966 – O inspetor, de Nikolai Gogol, traduzido por Zygmunt Turkow e Isaac Paschoal, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1966 – A revolta dos brinquedos, de Pernambuco de Oliveira e Pedro Veiga, dirigido por Rubens Teixeira.
1966 – O cabo fanfarrão, escrito por Hermilo Borba Filho, a partir do Miles Gloriosus, de Plauto, dirigido por Rubens Teixeira.
1966 – O cavalinho azul, de Maria Clara Machado, dirigido por Rubens Teixeira.
1967 – Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen, traduzido e dirigido por Hermilo Borba Filho.
1967 – O santo inquérito, de Dias Gomes, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1967 – Antígona, de Sófocles, traduzido por Ariano Suassuna e dirigido por Benjamim Santos.
1968 – Andorra, de Max Frisch, traduzido por Mário da Silva e dirigido por Benjamim Santos.
1968 – O melhor juiz, o rei, de Lope de Vega, traduzido por Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo José, e dirigido por Rubem Rocha Filho.
1969 – Dom Quixote, de Antonio José da Silva, o Judeu, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1969 – Haja pau, de José de Moraes Pinho, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1969 – Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1969 – Cabeleira aí vem, de Sylvio Rabello, dirigido por Hermilo Borba Filho.
1970 – Buuum, espetáculo composto por duas peças: Auto do salão do automóvel, de Osman Lins; e Enquanto não arrebenta a derradeira explosão, de José Bezerra Filho. Dirigido por José Pimentel.
Espetáculo estreado no Teatro Deodoro, em Maceió
1975 – A caseira e a Catarina, de Ariano Suassuna, dirigido por Hermilo Borba Filho. Montagem que teve ainda uma apresentação em Natal, no Teatro Alberto Maranhão, e outra no Recife, no Auditório da TV Jornal do Commercio.
LUÍS AUGUSTO REIS, pesquisador, doutor em Teoria da Literatura e professor de Teatro da UFPE.