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O mundo inventivo de Pablo Bernasconi

Artista argentino defende a criação gráfica a partir da experimentação conceitual, desenvolvendo obras para adultos e crianças

TEXTO Mariana Camaroti

01 de Dezembro de 2010

Bernasconi tem um estilo facilmente identificável, não só por suas ilustrações cheias de experimentos, mas pela forma metafórica com que aborda os temas

Bernasconi tem um estilo facilmente identificável, não só por suas ilustrações cheias de experimentos, mas pela forma metafórica com que aborda os temas

Imagem Reprodução

Com variedade de temas e conceitos, e uma mistura original de técnicas, o trabalho do argentino Pablo Bernasconi, 37 anos, é de ampla classificação. Primeiro, porque ele é ilustrador, mas seu trabalho vai além do conceito tradicional de estampas que dão suporte a textos. São também colagens que resultam em imagens com volume, aproximando-se tanto do desenho quanto da escultura. Segundo, porque o que ele constrói não é um simples cenário, mas uma leitura conceitual e discursiva sobre um acontecimento, uma pessoa ou tema existencial. Além de atuar como ilustrador, ele também é autor de livros para crianças e adultos, alguns publicados no Brasil.

Bernasconi é dono de um estilo facilmente identificável, não só pelas suas ilustrações, cheias de experimentos, mas pela forma metafórica com que aborda os temas. As imagens que ele cria complementam as palavras, acrescentando informações, interpretações. Juntas, palavra e estampa, são ferramentas de comunicação entrelaçadas, com um só significado. Em alguns casos, como nos livros voltados para adultos, a ilustração é o próprio motor da interpretação, catalisadora do conceito que pretende transmitir.

Esse entrelaçamento está presente de maneira mais acentuada em Bifocal, livro que acaba de ser lançado na Argentina e que, por enquanto, ainda não chegou ao Brasil. Nele, o autor visita 23 temas, como céu, inferno, crise, sucesso, amor, morte e política, através de visões polarizadas: uma positiva, outra negativa. Cada assunto é abordado sob essas duas perspectivas, cada qual pela união de uma frase de uma pessoa que disse algo importante – como Buda ou Jorge Luis Borges – e um desenho alegórico, feito a partir dessa citação.

A frase “Doem-me a cabeça e o universo”, de Fernando Pessoa, por exemplo, é escolhida para encarar de forma pessimista o tema crise; enquanto Albert Camus – “No meio do inverno, descobri que havia em mim um verão invencível” – traz seu lado otimista. O livro tem duas capas diferentes, impressas de ponta-cabeça. Enquanto um dos lados é sombrio, escuro (e o autor aconselha percorrê-lo tomando um merlot e escutando Tom Waits ou John Coltrane), o outro é luminoso, claro (e pode, segundo o autor, ser lido acompanhado de um malbec, ao som dos Beatles, Chopin ou Ella Fitzgerald).

OS DOIS LADOS
“Experimento conceitualmente e trabalho de forma que esta seja uma questão primária e, não, secundária na criação”, explica Bernasconi. Ele afirma que se debruçou sobre cada um dos temas de Bifocalinstintivamente, em dias de bom ou mau humor. O trabalho levou dois anos de elaboração e, hoje, migra de uma seção a outra nas livrarias. “Não é um produto convencional. Geralmente, livro para adulto é de texto e pronto. Por isso, é difícil encontrar editoras que apostem nesse tipo de publicação”, afirma.


A modelo Kate Moss é uma das celebridades que ganhou forma nas criações do artista argentino. Imagem: Reprodução

Além de ser mais ácido que os seus livros anteriores, este traz mais experimentações. Bifocal é o segundo da trilogia conceitual do autor. O primeiro foi Retratos – lançado em 2008 e também inédito no Brasil –, que reúne frases de ícones de diversas áreas, como Vincent Van Gogh ou Freddie Mercury, e suas caricaturas. Marco da música, Louis Armstrong, um dos 57 personagens do livro, é retratado com um trompete na mão. No lugar do nariz, uma nota musical, e a frase ao lado: “Toda minha vida, toda minha alma, todo meu espírito em tocar esse trompete”. Os cabelos de Isaac Newton foram feitos com cascas de maçã; os óculos de Woody Allen são de película de filme e seus cabelos e pelos, marcas de beijos de batom. A boca de Mike Tyson é uma orelha (em alusão à mordida que ele deu em um adversário) e o boxeador Rocky Balboa – personagem de Sylvester Stallone, que marcou o cinema de grande bilheteria – tem o rosto feito com um pedaço de carne crua e ensaguentada.

Pablo Bernasconi conta que anda pela rua olhando para o chão e recolhendo materiais em desuso. Frequenta depósitos, onde compra quinquilharias; e antiquários, em que adquire peças raras, enquanto um turbilhão de informações ocupa a sua mente. Também há dias em que ele dá uma volta com a máquina fotográfica na mão – para usar as fotos em suas criações – e uma sacola para carregar bugigangas. “Vejo um objeto e penso de que maneira ele pode servir para o meu trabalho”, afirma.

Depois da “coleta”, leva tudo para o estúdio, montado em casa, e se entrega às possibilidades de criação. Ali, cria ilustrações através de composições e colagens de objetos, trabalhando a tridimensionalidade e o jogo de luz. Como é seu estúdio? Cheio do que, inicialmente, pode ser chamado de “lixo”. “Chega um momento em que já não posso mais andar dentro dele e nem posso trazer mais nada.” Mas Bernasconi prefere chamar seu ateliê de “laboratório perigoso da imagem”.

Naquele lugar, um botão vira o escudo de um super-herói; uma bola de gude torna-se a boca de um leão e a palha, sua juba; um pedaço de couro é a pele de uma vaca; e uma moldura de espelho barroco, o contorno do rosto de Oscar Wilde. Há ironia, sarcasmo, humor e crítica nas suas peças, como naquelas em que uma máquina de gasolina dá corpo a George W. Bush e um megafone substitui a boca de Luciano Pavarotti.

Autor do texto e das ilustrações de 10 livros infantis, oito deles publicados no Brasil pela editora Girafinha, Bernasconi diz que busca se aproximar das crianças através do humor e da criação. “Meus livros não têm moral da história ou pedagogia, nem buscam ensinar nada a ninguém”, afirma. Seus títulos foram publicados na América Latina e na Europa – alguns deles traduzidos em oito idiomas.


Neste livro, o autor elege temas em seus aspectos positivo e negativo. A partir deles recolhe citações importantes e desenha. Imagem: Reprodução

DESDE CRIANÇA
A infância e adolescência influenciaram seus livros. Quando era pequeno, Bernasconi queria ser veterinário, e os animais são um tema predominante nas publicações infantis – O zoo de JoaquimHipo pode nadar, Vaca branca, mancha preta – do artista. O espaço aéreo e seus subtemas também são recorrentes, talvez por ele ter crescido em aeroportos e aviões – já que o pai era piloto – e ter licença para pilotar desde os 16 anos. Além de Telônio, o ambulante do espaço, Bernasconi lançou com essa temática O diário do capitão Arsênio – a máquina de voar, vencedor do Prêmio Zena Sutherland da Universidade de Chicago de melhor livro infantil de 2008.

Entre os livros para crianças, esse último é o mais surpreendente. A história do sonhador e incompetente Arsênio é contada numa mistura entre o texto propriamente dito e o diário de bordo do personagem, apresentado em ilustrações. Essas trazem máquinas mirabolantes criadas pelo personagem – que o autor concretiza com uma combinação de sucatas –, seus cálculos antes de cada tentativa de voo e a linha do tempo com a qual conta a experiência, incluindo medições de altitude (e de queda livre após as consecutivas falhas das engenhocas).

Completando a série de infantis, são dele também O mago, o horrível e o livro de feitiçaria, Super-herói ou supervilão e Excessos e exagerosA revolução de Tortoni – que narra a história de um rapaz do qual os pensamentos começam a fugir e aparecem escritos no ar para todo mundo ver, criando situações embaraçosas – chega às livrarias brasileiras em 2011. Já Espacio para colorear é inédito no país. Para promovê-los e ter contato com o público, todos os anos, ele visita o Brasil, principalmente São Paulo, onde participa de feiras de livro, visita escolas e dá palestras.

Leitor ávido desde pequeno, em parte por influência dos pais, Bernasconi é apaixonado não só pelo conteúdo, mas também pelo objeto livro. “Gosto de atesourá-los. E olhá-los de um lado, do outro, observar como eles ficam numa estante, nas minhas mãos, explorá-los sob várias perspectivas.” Sua relação com a literatura era apenas de leitor – e ilustrador de mais de 10 livros de outros autores –, até que sentiu que precisava lançar seus próprios títulos.

Nos livros infantis, Bernasconi se sente mais livre e o trabalho flui mais rápido, em torno de um ano para cada título, conta ele. Já as publicações para adultos levam dois anos em média, além de exigir muito mais reflexão e dedicação. “Exponho-me completamente nesses livros conceituais, pois expresso exatamente o que penso.” O processo é longo. “Mas, antes de expressar, preciso definir realmente o que penso a respeito de um assunto, como em Bifocal, ou sobre o ícone de determinada área, em Retratos. E minha opinião muitas vezes muda em um período de dois anos.”


Os óculos de Woody Allen são de película de filme e seus cabelos e pelos,
marcas de beijos de batom. Imagem: Reprodução

As criações começam com um esboço no papel, e o autor procura ser fiel à ideia inicial. Suas imagens não têm linha, medida, formato nem técnica que as delimite. Tudo depende do lugar para onde sua imaginação o levará. Alguns traços em papel ou tinta podem completar a ideia, assim como desenhos ou retoques feitos em computador. Mas, ao contrário de muitos ilustradores, o computador não é o eixo das suas estampas. “Manter a gestualidade, a sensibilidade e a abstração no meu trabalho continua sendo primordial”, argumenta.

ESCOLA POLONESA
Nascido em Buenos Aires, mudou-se com os pais para Bariloche, no sul da Argentina, ainda pequeno. Depois de voltar para a sua cidade natal, onde cursou desenho gráfico e foi professor universitário, decidiu se mudar para a bela cidade sulista e viver rodeado de neve, lagos e montanhas. “Buenos Aires tem muitas opções e tira o foco”, diz ele.

Do sul do país, Bernasconi continua fazendo hoje o que já fazia antes de ser escritor. Suas ilustrações são publicadas em jornais do mundo todo, como o Clarín, The New York TimesSaturday Evening PostTelegraph e The Times, da Inglaterra, além da revista Rolling Stone, entre outras.

Também ilustra livros de outros autores, faz trabalhos publicitários e voluntariado. São suas, por exemplo, as ilustrações de todo o material gráfico e promocional das Mães da Praça de Maio, organização argentina que há 30 anos busca os 30 mil desaparecidos durante a última ditadura militar. Respeitado na Argentina e reconhecido internacionalmente, ganhou vários prêmios internacionais.

Para construir sua carreira no país de Quino – consagrado criador de Mafalda e sua turma –, Bernasconi bebeu na fonte da escola polonesa de cartazes do pós-guerra, principalmente em Roman Cieslewicz e Jan Lenica. Também são referências suas o pintor alemão John Heartfield, o ilustrador norte-americano Brad Holland e o artista e designer Luba Lukova. Mas ele também se remete aos seus ídolos na literatura – Jorge Luis Borges, Edgar Allan Poe; na filosofia – Friedrich Nietzsche; e no cinema – Woody Allen, para citar alguns, quando está trabalhando.

Mesmo sendo dono de uma técnica peculiar e de um traço agradável, Bernasconi prioriza a mensagem. “É necessário que as direções tomadas dentro da plástica não façam desaparecer aquelas sobre a ideia, a mensagem”. Assim, desenho e semiótica, fato e análise, tema e interpretação andam juntos no trabalho de Bernasconi, mas são precisamente as ideias que determinam para onde sua imaginação deve viajar. 

MARIANA CAMAROTI, jornalista radicada na Argentina.

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