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Cultura popular: Um diálogo festivo entre o fantástico e o real

'A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar', novo espetáculo do diretor Carlos Carvalho, une atores profissionais e brincantes da Zona da Mata

TEXTO Christianne Galdino

01 de Dezembro de 2010

Da troca de experiências, surgiram uma linguagem híbrida e um elenco misto que canta, dança e interpreta, sem distinções entre brincantes e atores

Da troca de experiências, surgiram uma linguagem híbrida e um elenco misto que canta, dança e interpreta, sem distinções entre brincantes e atores

Foto Divulgação

Ele já trabalhou no corte da cana, nos engenhos de açúcar. Logo cedo, depois de sofrer e ser abandonado nos primeiros anos de sua vida, foi morar com o Mestre Batista, que o criou como filho. Tinha apenas oito anos de idade, e lá aprendeu o que seria seu ofício, missão e paixão: a cultura popular. Com mais de 35 anos de atuação como brincante e folgazão, o personagem aqui descrito também ganhou merecida titulação. Morador de Chã do Esconço, distrito de Aliança, cidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco, há mais de 20 anos, ele é conhecido e reconhecido como Mestre Grimário.

Esse bem que poderia ser o perfil de um personagem de obra de ficção, mas são capítulos da história real de Grimário, que guarda muitas semelhanças com a vida de Miguel, o primeiro papel que o mestre vai desempenhar numa peça de teatro convencional. “Como somos habituados ao improviso e ao jeito de falar e cantar no cavalo-marinho e no maracatu rural, acho que o mais difícil foi conseguir decorar e dizer os textos nesse formato cênico”, relata Mestre Grimário. “E também aprender algumas técnicas circenses que são utilizadas no espetáculo, como andar de pernas de pau”, complementa Grimário Filho, que também faz parte do elenco.

Ambos são líderes das brincadeiras populares, mas encaram pela primeira vez a desafiadora tarefa de serem atores, na peça A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar – uma produção da Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, viabilizada pelo prêmio de teatro Myriam Muniz 2009 (Funarte/MinC), com texto e direção de Carlos Carvalho.

“Tinha um projeto antigo de criar uma peça baseada no romance A mãe (1907), do escritor russo Máximo Gorki. E nossa ideia inicial era compor um elenco somente com brincantes e folgazões da Zona da Mata. Mas como não foi possível, depois de quatro meses de pesquisa em Aliança, voltei ao Recife e decidi convidar também atores daqui”, conta o dramaturgo, que teve a assistência de Quiercles Santana na direção da montagem.

O processo de criação funcionou como um intercâmbio em que os integrantes vivenciaram, sempre em conjunto, exercícios das artes circenses, técnicas de interpretação, cantos e danças populares pernambucanas (a exemplo do coco, da ciranda e do maracatu, além do cavalo-marinho, mote principal que perpassa todas as cenas). E dessa troca de experiências surgiram uma linguagem híbrida e um elenco misto, porém uniforme, que canta, dança e interpreta junto, sem distinções entre a participação dos brincantes e dos atores convidados.

Nos bastidores, para garantir a unidade pretendida, uma equipe de peso: Beth da Mata, na direção de arte e criação de figurinos; André Freitas, na direção musical; Raimundo Branco, na preparação corporal e coreografias; e o próprio Mestre Grimário, como consultor de cultura popular.

Apesar de ter pelo menos 15 músicas executadas ao vivo nas suas cenas, não se trata de um musical. Mesmo com notórias semelhanças entre a vida de parte do elenco e seus personagens, também não se trata de uma obra biográfica. “A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar é – como declara o autor – um espetáculo de ficção da realidade, um diálogo entre o fantástico e o real, entre o teatro dramático e o pós-dramático. Um drama humano localizado na cultura regional, mas com um discurso universal.”

ENREDO
“O meu nome é Mãe, até tenho outro de pia, como tantas se chamam Maria, que é santa e tem romaria, me deram de chamar Mãe sem ser Maria” – apresenta-se a protagonista, e única personagem sem nome da peça (interpretada pela experiente atriz Auricéia Fraga), afinal, como afirma o dito popular: “Mãe é tudo igual, só muda o endereço”. E igual, no caso específico deste espetáculo, significa a similaridade do amor incondicional ao filho, que faz uma mulher comum se tornar líder social e/ou ativista política. Sua nobre causa? Abraçar a causa do amado filho. Mesmo sem entender direito os porquês implícitos, as razões da luta, ela peleja incansavelmente.

Distâncias geográficas e temporais à parte, a mãe do operário russo do início do século 20 da obra de Gorki – que se envolve nas manifestações revolucionárias – é igual à mãe nordestina do trabalhador de engenho de açúcar que se torna líder sindical, na época da ditadura militar brasileira, criada por Carlos Carvalho.

Com um enredo local e global ao mesmo tempo, A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar evidencia o papel das mães na construção da história. As mães da Praça de Maio, dos revolucionários russos e de tantas outras nacionalidades, as mães dos soldados mortos em combate, dos presos políticos, as mães dos mártires, as mães dos grandes líderes... todas estão ali representadas na força e dedicação dessa personagem abnegada, que sequer possui nome próprio.

“Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir. Temos vergonha, porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E, muitas vezes, por causa desse embaraço, revoltamo-nos contra os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos de todas as maneiras e feitios, queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.”

Esse trecho do livro de Gorki retrata a vida cinzenta da época, o ar pesado do ambiente das manifestações populares dos operários. Mas, ao contrário do tom duro presente nos momentos mais trágicos do romance, a versão de Carlos Carvalho mescla a espontaneidade típica dos brincantes e a disciplina das técnicas teatrais, costurados pela sua condução precisa e detalhista das cenas.

Resultado: drama e comédia se misturam, fazendo – como afirma um dos integrantes do elenco, o ator Flávio Renovatto – “o equilíbrio acontecer no palco, fazendo um teatro reflexivo, provocador, crítico, mas também divertido e muito festivo”. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural. 

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