Agora, o negócio se expandiu e os risíveis extrapolaram as barreiras: também estão na internet. A grande diferença é que não é determinada rede de TV ou rádio, de alcance massivo, que organiza as aparições. Nesse caso, são eles próprios, os objetos de escárnio, quem se fotografa, se filma e se disponibiliza em algum blog ou rede social. Fazem parte de uma multidão que, depois de passar no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), chega enumerada em pesquisas como a divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nela, sabemos que o uso da internet no país mais do que dobrou em apenas quatro anos (um aumento de 112%). A presença dos jovens, como poderia ser prevista, é dominante: entre as pessoas de 10 a 14 anos de idade, o percentual de usuários subiu de 51,1%, em 2008, para 58,8%, no ano passado. Entre os adolescentes de 15 a 17 anos, o pulo foi de 62,9% para 71,1%, enquanto entre jovens de 18 a 19 anos, a mudança foi de 59,7% para 68,7%. Já as lan housesrepresentam, segundo apurou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2008, o 2º lugar no Brasil em que mais se acessa a internet. Naquele ano, 47,5% das 56 milhões de pessoas que se conectaram à web disseram ter acessado a rede em mais de um local: 57,1% em casa, 35,2% nas lan houses e 31% no trabalho. Em 2005, a ordem era outra: ambiente doméstico, local de trabalho e lan houses. No Norte e Nordeste do país, as lan figuravam como primeiras na lista: no Norte, 56,3% dos usuários foram às lojas de acesso à internet, enquanto no Nordeste foram 52,9%.
O blog posta fotos retiradas de redes sociais e as comenta com
escárnio. Foto: Reprodução do blog da PGA/com manipulação da imagem.
Essa popularização e esse acesso são traduzidos de várias maneiras para o nosso cotidiano, formado por julgamentos e brigas para manter “puros” grupos diversos (os cool, os informados, os low profile, os fashionistas, os intelectuais, os modernos, os que não ligam para os outros, os que gostam de “brega das antigas”, os que teorizam Joelma enquanto Joelma dança e fica mais rica). Tem gente que celebra e chama o fenômeno de “democratização”. Tem gente que acha absurdo acreditar que democratização seja igual a ter acesso a um computador, quando na verdade esse novo usuário não consegue entender o que lê. Tem gente que gosta de espalhar na rede a terrível frase “É nisso o que dá a inclusão digital”, referindo-se à presença maciça daqueles que o mercado chama de “classe C”.
Entre os espalhadores da frase estão incluídos o Tio e a Tia lá do início do texto, o casal que acha engraçadíssimo a mulher pobre de biquíni que a gente vê no PGA (o blog se apropria de fotos – perfis de redes sociais, como o Orkut). Também acham engraçadíssimo o hoje realmente famoso Lucas Celebridade, rapaz que acrescenta à vontade férrea de ser conhecido uma, às vezes, comovente ingenuidade. Em seu site, posta fotografias nas quais vemos sua casa localizada na pequena Luzilândia, no interior no Piauí. As paredes descascadas e os móveis tubulares roxos entregam sua condição modesta. Lucas, ao contrário da maioria daqueles que o detratam (foi para ele o comentário “É nisso o que dá a inclusão digital”), não se envergonha de sua pobreza, não se corrige nem se aplica filtros mais recorrentes entre a classe média. Proferindo um “E daí?” interno, ele se fotografa quase nu, mostra a barriga gordinha e se autointitula: “Lindo para a mulesta”. Escreve a partir de uma lan house. Do outro lado, na internet de casa ou do trabalho, agalera repassa o link e se acaba de rir.
VISÍVEIS?
É possível sumarizar tudo o que foi exposto até aqui: o fato é que a pobreza (um conceito difícil de ser estabelecido, como lemos no texto a seguir) está mais visível do que nunca, e essa visibilidade se dá várias vezes pelas mãos dessa própria pobreza. Novamente, há a chance de uma leitura múltipla: excelente, até mesmo revolucionário, esse tempo no qual outros rostos, corpos e condições podem circular publicamente num movimento criado por aqueles mesmos que querem se fazer visíveis. É um racha na hegemonia do claro + magro + jovem+ photoshopado. Mas, há ressalvas.
A filósofa Hannah Arendt é uma das teóricas que nos oferecem material para iniciarmos uma investigação sobre as implicações da (in)visibilidade, o olhar sobre o Outro (não custa lembrar que o Outro somos nós). No livro A condição humana, ela fala sobre o espaço da aparência, “no qual eu apareço aos outros e os outros a mim; em que os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se contentar em existir meramente como coisas vivas e inanimadas”. A ação humana precisa, segundo ela, da palavra para se fazer visível, precisa comunicar-se.
Lucas Celebridade, em ensaio fotográfico disponibilizado por ele na web.
Foto: Reprodução/diariodafama.interbarney.com
Dito isso, é hora de voltar à casa pobre e modestamente mobiliada de Lucas. Também podemos visitar uma vaquejada no Povoado Poço, também no Piauí; uma farra vivida por mulheres e homens – a maioria feliz, divertindo-se – que recebeu no You Tube o título de Forró dos feios (e mais de 2 mil acessos em um único dia). Eles todos aparecem para o mundo, não se contentam em ser coisas vivas e inanimadas, especialmente Lucas, que se faz presente de maneira pensada e marcada. Às vezes, falam e amplificam as suas ações, mostram o que consomem e o que pensam. Porém, lidas pelo viés do preconceito, do usuário que quer banir de sua região “aquele bando de cearense de cabeça chata”, as vozes ouvidas por streaming são recebidas não como mais uma informação no meio da Babilônia, mas como uma piada que logo se transformará na delícia do dia daqueles que Se Acham Melhores.
Andrea Brighenti, da University of Trento, sintetiza bem esse panorama ao dizer que visibilidade é igual a reconhecimento (trazendo aqui o pensamento de Charles Taylor, que coloca o reconhecimento como uma categoria básica da identidade humana). Se você me vê, se eu posso ser visto, significa que existo. Para as minorias, ser invisível significa ser privado justamente desse reconhecimento. Por outro lado, continua o sociólogo italiano, a visibilidade classifica. É aí que podemos iniciar uma segunda leitura dessa publicização da “classe C”, hoje, no país: como, afinal, se dá esse reconhecimento gerado pela significativa ocupação virtual desse novo público?
A resposta, você sabe, veio antes da pergunta. Ela se dá – é só ver a reação de Tio & Tia – através do exemplo negativo, do riso que coloca o Outro em posição inferior pelo simples fato de ele ostentar uma pouco respeitada pobreza. Estão, para continuarmos a seguir Brighenti, inseridos, na verdade, em uma supravisibilidade, que chega distorcida e que produz danos nesse tal reconhecimento.
É simples exemplificar, é só lembrar os grupos de imigrantes, sempre malvados e criminosos, vistos em filmes hollywoodianos pouco inspirados. Ou na loura “burra” que costuma ser representada nos programas humorísticos. Nos gorduchos e meio atrapalhados dos “filmes de adolescente”. A todos é dada a “oportunidade” de serem vistos, mas ela não os faz, na verdade, visíveis. Esconde-os sob estereótipos, também os denigre, também os reduz. É o mesmo, enfim, que se passa com Lucas, com os dançarinos do Povoado Poço, com a travesti que briga para ser paga enquanto é ridicularizada na TV. O mesmo que se passa com aquela Gente que se Acha.
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Pesquisa: O que faz pobre um indivíduo?