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Pesquisa: O que faz pobre um indivíduo?

TEXTO Fabiana Moraes

01 de Outubro de 2010

Mendigos de Peshawar, no Paquistão, em registro fotográfico do livro 'Por que vocês são pobres?'

Mendigos de Peshawar, no Paquistão, em registro fotográfico do livro 'Por que vocês são pobres?'

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado ao especial "Mídia" | ed. 118 | outubro 2010]

"Por que vocês são pobres?"
, perguntou o jornalista Wiliam T. Vollmann a dezenas de pessoas moradoras nas ruas, favelas e nos aglomerados do Iemên, Tailândia, Rússia, China, Colômbia, Paquistão, México, Quênia, EUA. “Eu acho que sou rica”, responde uma mendiga de barriga e olhos vazios, pele manchada e corpo esquálido. Como é que pode? – você pensa – ela tem apenas uma sacola plástica na mão, além da aparência de 60 anos, quando o corpo – de fato – só tem 23. A pergunta de Vollman e a resposta da mendiga revelam a enorme complexidade do conceito de pobreza – a pobreza vivida, a pobreza experimentada, não a do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a pobreza-manchete que lemos no jornal do café da manhã.

Uma mãe alcoólatra, uma desempregada russa, uma prostituta jovem, todas pobres, reagem de maneira diferente aos questionamentos do escritor no livro (Poor people, no original), lançado no Brasil pela Conrad. Um exemplo de miséria, particularmente repugnante, é trazido pelo próprio autor. Fala de grupos que viviam sobre barcos numa pobre região asiática: recolhiam o lixo que embarcações maiores jogavam no mar; nesse “material”, encontravam e coletavam até animais mortos e putrefatos. “Seriam menos pobres, se recolhessem os animais recém-mortos?”, pergunta. Pobreza pode ser também uma questão de percepção, diz o jornalista.

O trabalho de Vollmann é de um fôlego imenso: ele passa, geralmente, uma semana com os entrevistados, vai até as suas casas, conversa com as famílias. Descreve bem: o fungado de uma assalariada, a confusão mental de uma epilética, os desenhos de uma garotinha. Utiliza esses marcadores para revelar mais sobre a personalidade daqueles que procura. Revela quanto paga aos entrevistados para que eles percam seu tempo refletindo acerca de algo que talvez não fariam nunca (é interessante, logo no início do livro, a tabela que nos informa sobre os ganhos de cada um deles, inclusive o do próprio autor) e, melhor, entende o fosso que sua condição privilegiada cria em relação aos demais. Não tenta “viver como eles”, pois nunca viverá. Não comete o engano de se infiltrar uma semana na pobreza para acreditar que se tornou um especialista no assunto. Vollmann também não realiza suas investidas com o objetivo de “denunciar e fazer o bem”. Assume: “Como poderia ser tolo a ponto de pretender ‘fazer a diferença’? Não me resta nada, senão a tentativa honrosa de mostrar e comparar melhor que posso” (itálicos do autor).

O destino, a sorte, o governo, os ricos: são vários os motivos apresentados pelos entrevistados para explicar a própria situação de pobreza. Cada um tem significado diferente sobre as ações de quem sofre a precariedade de condições de vida: se é destino e sorte, só posso me resignar e esperar que, numa próxima vida, tenha mais ventura. Se a culpa é do governo e dos ricos, há algo que provavelmente possa fazer, seja votar em determinada proposta política, seja jogar um coquetel molotov no causador da minha dor.

A escrita fragmentada, entrecortada por várias histórias e impressões pessoais, às vezes provoca um certo “afastamento” daquilo que o livro trata. Tem-se a impressão de que estamos com um romance nas mãos, não relatos reais. É claro que aí funciona também nossa aproximação com a produção literária contemporânea, na qual gêneros e estilos mesclam-se de maneiras várias. Para fincar o pé na “realidade” (lembrar: aqui, da realidade contada sob a ótica de um senhor norte-americano visitando a pobreza mundial), nada melhor do que as fotografias que aparecem, em bloco, quase no fim do livro. As histórias ganham rostos e, é óbvio, doem um pouco mais.

LIBERDADE DE MERCADO
Dentre os conceitos de pobreza mais difundidos no século 20, a noção de subsistência é a mais recente desenvolvida no mundo, justamente a partir dos anos 1980, e pode fornecer os melhores instrumentos para analisar tanto os posicionamentos dos atores das comunidades virtuais sobre os pobres midiatizados quanto a ideia de pobreza que tem o indivíduo classificado como pobre. Também a noção de subsistência e a ideia de necessidades básicas, que definem a pobreza apenas em termos de renda ou de alimentação, vestuário, água potável, transporte e cultura, mostram-se insuficientes. Nesse sentido, a ideia da privação relativa engloba os processos de pobreza de acordo com as mudanças pelas quais passa a sociedade, não podendo tais processos serem determinados em um período histórico. Assim, a pobreza é entendida como “situação daqueles cujos recursos não permitem satisfazer as refinadas exigências e normas sociais impostas aos cidadãos dessa sociedade”, como coloca Peter Townsend, um dos teóricos que refletem sobre o problema.

Precursor deste enfoque, no qual a pobreza é entendida como fenômeno multidimensional, o economista indiano Amartya Sen, Nobel de Economia em 1998, enfatizou o aspecto social na análise do fenômeno. De acordo com ele, sair da linha de pobreza significa obter um regime alimentar adequado, um certo nível de conforto e o desenvolvimento de papéis e de comportamentos socialmente aceitáveis. Sen deu atenção ao fato de que as pessoas podem sofrer privações em diversas esferas da vida, ou seja, vivenciar a pobreza não implica somente privação material. “A pobreza deve ser entendida como a privação da vida que as pessoas realmente podem levar e das liberdades que elas realmente têm.”

O economista indiano escreve levando em conta que a palavra liberdade é mais relacionada ao uso do cartão de crédito do que ao direito de ir, vir e viver. Para ele, pobreza não está, como comumente é pensado, apenas ligada à falta de renda: pobre, na verdade, é aquele que tem suas potencialidades privadas, aquele que não pode se mover no ambiente social por limitações que impedem a sua felicidade. Essas privações passam pela idade (qual o papel dos mais velhos no mercado de trabalho?), condições de moradia e de saúde e mesmo questões de gênero e raça.

Podemos pensar: numa família em que os recursos são dirigidos prioritariamente para o filho mais velho, enquanto outro filho tem menores condições de estudos, há alguém mais rico e outro mais pobre, como exemplifica o autor de Por que vocês são pobres?. No entanto, essa mesma família pode configurar-se na “classe B” de um instituto, sem que seus indivíduos sejam observados.

As análises de Amartya Sen e Peter Townsend fazem falta no país, num momento em que tanto se comemora o nascimento de uma nova classe média: quem são aqueles que figuram nas estatísticas portando celulares, TVs a cabo e carros na garagem? Sem dúvida, gente que se beneficiou com o aumento real do salário mínimo e de outros programas governamentais. Mas também, gente que tem celular pré-pago e só pode ligar a cobrar, que tem TV a cabo clandestina (caso comum nos bairros recifenses) e um carro que fica parado em casa por falta de dinheiro para a gasolina. 

FABIANA MORAES, jornalista e doutoranda em Ciências Sociais. 

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