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Uma empresária, sua fabriqueta e o status da mulher

A estilista de moda íntima Alessandra Monteiro, pelas suas escolhas pessoais e profissionais, sintetiza o que poderia ser interpretado como o legado do feminismo à geração atual

TEXTO ANA BRAGA
FOTOS HELDER TAVARES

01 de Março de 2010

Foto Helder Tavares

O camarada Lenin bem que poderia estar vivo, para ver no que deu o barulho das mulheres contemporâneas dele do início do século 20. Se ainda pensasse como naquele tempo, que julgava fúteis questões do feminino, iria, no mínimo, torcer o nariz para a história contada nessas páginas, a partir de um sutiã vermelho e negro e sua dona. Lenin planejava o comunismo e a Revolução Russa. Acreditava que o trabalho na indústria, de jornada extenuante e salário de fome, elevaria a consciência política do povo russo. Tinha causas gigantes, para as quais convocava homens e mulheres a agitar os portões das fábricas. Mas ele ignorava, digamos, a individualidade. Desconhecia as sutilezas de gênero. À feminista alemã Clara Zetkin, que primeiro sugeriu o Dia Internacional das Mulheres, em 1910, Lenin disse que era perda de tempo discutir casamento e sexo. Mas, hoje, o que teria o camarada a dizer?

Nenhum homem disse à Alessandra Monteiro, de 39 anos, o que deveria pensar ou fazer. Ela trabalha de segunda a sábado porque quer e não porque o patrão a deixa trancada na fábrica (era esse o sistema de trabalho no Ocidente industrializado do início do século 20). É dona de um ateliê de moda íntima em Gravatá, no Agreste de Pernambuco. Cria e vende peças de marca própria, By Sandy. O ambiente do ateliê, instalado no térreo de sua casa, em nada lembra a rudeza combatida pelas primeiras feministas da Europa e dos Estados Unidos (onde, em 1909, 15 mil trabalhadoras em greve pararam 500 fábricas). A placa em frente à casa avisa: “Fábrica de calcinha”. Mas é com o sutiã, objeto que as feministas dos anos 1960 queimaram num gesto público de insubmissão, que Alessandra experimenta ser mulher independente no século 21.

DONA DA HORA





A jornada diária de trabalho das mulheres no início do século 20, quando o feminismo foi se encorpando em movimento, chegava a exaustivas 18 horas. Patrões trancavam operárias nas fábricas e regulavam até idas ao banheiro. Além das greves, o incêndio que matou 125 trabalhadoras na fábrica de camisetas Triangle Shirtwaist, em Nova York, em março de 1911, evidenciou a degradação da mão de obra feminina. A bibliografia do feminismo cita a tragédia como marco do movimento. Hoje, a situação trabalhista é muito diversa daquela, ainda que nem sempre favorável ou ideal. As mulheres ocuparam o mercado de trabalho e podem fazer escolhas. Este é o caso da estilista Alessandra Monteiro, que não se queixa da carga que carrega. É sua opção.

MUITAS, MAS SUBALTERNAS





Sutiãs foram queimados simbolicamente em 1968 por americanas que recusavam o padrão de beleza dos concursos de miss, à época (evento conhecido como Bra Burning). Alessandra, que não é feminista, emprega sete mulheres, sustenta a casa, banca viagens e outros gastos. Está entre as mulheres que ocupam 29% dos cargos de dirigentes no Brasil (inclusive na política). Os demais 61% são dos homens, registra a Organização Internacional do Trabalho. Uma diferença difícil de engolir, considerando que 42,4% da mão de obra do país são cobertos pelas mulheres, de acordo com o IBGE. Mais: em 2020, elas serão maioria do mercado de trabalho brasileiro.

REFERÊNCIA LITERÁRIA



O vermelho e o negro foi o nome que Alessandra deu à sua recente coleção de sutiãs e calcinhas. A denominação inspirou-se no título do romance de Stendhal, publicado em 1830, que ela leu recentemente. Alessandra iniciou o curso de Letras numa faculdade em Vitória de Santo Antão, a cerca de 60 km de Gravatá. Desistiu porque não conseguiu cobrir os custos. Aos 19 anos, costurou e vendeu o primeiro sutiã, feito de “tecido grosso”, porque a revolucionária Lycra era privilégio da grande indústria. Em termos de escolaridade, a estilista integra as estatísticas que apontam: de cada 100 pessoas com 12 anos ou mais de estudo (nível superior completo ou incompleto), 56,7% são mulheres e 43,3%, homens. Os dados de 2008 do IBGE evidenciam uma situação impensável há 50 anos.

IGUALDADE EM FAMÍLIA



Alessandra divide máquinas e mão de obra do ateliê com a mãe, dona Alzira, e o ex-marido, Marcos. Mas cada um produz o que quer vender: sutiãs com jeito de outwear (ela), cuecões em algodão (ele), calcinhas para senhoras (a mãe). Os ganhos são individualizados. Ganha mais quem vende mais. Nada tem a ver com gênero ou idade. A lógica é a da oferta e da procura. Mas esse sistema compartilhado e igualitário ainda é exceção. Estudo feito pela Organização Mundial do Trabalho (OIT) e divulgado em 2009 reforça um abuso histórico: as mulheres recebem, em média, 29,7% a menos que os homens, mesmo quando ocupam os mesmos cargos.

NA COMPANHIA DO GATO





O fogão grande e a louça completa no armário da cozinha sugerem família numerosa. Mas Alessandra não é casada e não tem filhos. O apartamento de dois quartos só não fica vazio porque Nino, o gato siamês de estimação, deita e rola. A vida de casal sem prole foi acordada com o então marido (a propósito, a proporção de casais sem filhos cresceu de 13,3% para 16,7%, de 2008 para 2009, aponta o IBGE). O casamento durou 17 anos. Alessandra se queixa de solidão? Lamenta não ter filhos? Seu corpo à beira dos 40 anos reclama? Ela nasceu em 1970, auge das discussões sobre sexo por prazer e casamento “eterno enquanto durasse”. Herdou as consequências de ser mulher, diria a feminista Simone de Beauvoir, se contasse a história de Alessandra no seu O segundo sexo. Sofre os questionamentos decorrentes de suas opções, quando, por exemplo, a ginecologista pergunta quando virá o primogênito; a dermatologista indica botox para suavizar os vincos no rosto. “Às vezes me pergunto se não fiz escolhas erradas. Mas não tenho crises. Quanto mais eu questiono, mais me sinto mulher”, diz Alessandra, que admira a pintora mexicana Frida Kahlo, a candidata à presidência Marina Silva e a própria mãe.

O NOVO FEMINISMO
O feminismo está mais discreto hoje, em relação aos séculos 19 e 20. Esta é a ideia do autor de Cartografias do feminino, o psicanalista, doutor em filosofia e professor de psicologia da UFRJ, Joel Birman. O movimento se transformou porque elementos fundamentais da sua plataforma foram incorporados à sociedade contemporânea. Um desses seria a liberdade sexual, observa Birman, no artigo O feminismo 40 anos depois, publicado no site da universidade carioca. “Foi a separação da dimensão erótica da sexualidade do casamento, contrariando a tradição do patriarcado comum. Exerce-se hoje o sexo pelo prazer, pelo exercício do desejo, facilitado pelos métodos anticoncepcionais seguros”, avalia. Outro elemento seria a retirada do casamento do lugar de sagrado. “Hoje, mulheres podem viver outras funções sociais ou desenvolver seus projetos existenciais. No Brasil, o desquite colocava a mulher em posição desonrada socialmente. Além disso, antigamente era inimaginável que mulheres ascendessem aos níveis de educação universitária e pós-universitária. A formação era básica e as virtudes maternais e domésticas”, lembra.

O feminismo tem novas demandas. “O papel do movimento hoje é dissolver os obstáculos persistentes, embora de uma forma mais leve do que nos anos 1960. São novos objetivos, como maior representação política, igualitarismo sexual, proteção ao assédio sexual e garantia de equiparação salarial”, cita Birman. “Não sei se hoje teríamos ícones do movimento feminista, mas é evidente que a mulher que se destaca em algum campo da atividade artística, científica, política e econômica acaba se transformando em um ”, analisa o estudioso. 

ANA BRAGA, Repórter do Diario de Pernambuco, professora de jornalismo e blogueira.
HELDER TAVARES, fotógrafo.

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