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O motel é por conta delas

Num mundo ainda eminentemente machista, as mulheres do funk tentam se impor com letras em que o corpo e o desejo são propriedades privadas

TEXTO Fabiana Moraes

01 de Março de 2010

Imagem Renata Cadena

[conteúdo vinculado à reportagem de "Feminismo" | ed. 111 | março 2010]


“Tô podendo pagar hotel pros homens/
isso é que é mais importante.” “Eu lavava, passava/ tu não dava valor/ agora não adianta você vim (sic) falar de amor”. “Eu vou te dar um papo/ Vê se para de gracinha/ Eu dou pra quem quiser/ Que a p* da b* é minha”. No mundo – proibidão ou não – do funk made in Rio não há espaço para o “pós-feminismo” de Judith Butler ou o segundo sexo de Simone de Beauvoir. Chegue perto de uma menina como Deize Tigrona, Vanessinha Pikachu ou Valesca Popozuda para falar sobre dominação masculina. Não vai ter teorização ou um mínimo de chamuscamento no sutiã, top ou no shortinho usado por corpos que vestem de 36 a 50: “botar moral” é a regra, e a utilização de palavrões até então circunscritos ao mundo masculino é apenas uma das maneiras de deixar clara a necessidade de igualdade do lugar de fala.

É claro que todas elas sofrem os constrangimentos comuns às mulheres nascidas num mundo regido pelo Grande Mestre Falo (posto fique, logo acalmando a chama no peito das Judiths e Simones): a temática das letras, que invariavelmente mostra uma postura de oposição às práticas masculinas (“Para de marrar e desce desse palco/ Que aqui no meu cafofo sou eu que falo mais alto”), é a própria prova de que todas elas percebem a tal dominação operar em seus cotidianos. A questão é como essas artistas resolveram se colocar em relação ao machismo, à sexualidade, ao padrão corporal, à moral escorregadia da sociedade. Ao cantar abertamente o que gostam e o que não gostam na cama, por exemplo, elas provocam um misto de constrangimento e fascínio em uma classe média que até adora sacolejar ao som dos funks de conteúdo lascivo, mas só profere suas letras no conforto de um baile. Outro setor que vem se interessando cada vez mais pelas meninas é a academia. Não é difícil localizar trabalhos como O discurso da e sobre a mulher no funk brasileiro de cunho erótico: Uma proposta de análise do universo sexual feminino, tese defendida no ano passado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A questão sexual, como se vê – e se ouve –, é a mais acessada, de fato, por grupos como o Gaiola das Popozudas (o de Valesca), As Anfetaminas, Bonde das Bad Girls e Bonde das Putanas, entre outros. Talvez seja por isso, por gritar com uma voz estridente termos que vão do pornográfico ao escatológico, por ter o sexo como mola motor de seus shows,que as meninas do funk não sejam inscritas na agenda política, e, sim, no debate moral. Mas não começaria justamente aí, na intimidade do quarto ou do bequinho escuro, a luta para legitimar vontades e posturas (o duplo sentido está valendo), a briga para impor respeito? Uma breve análise das letras de grupos como o de Valesca, moça que posou para a Playboy enquanto babava sobre uma imagem do presidente Lula, nos dá algumas pistas sobre que “moléstia” é esse “feminismo” desbocado que nasceu nos morros cariocas.

Primeiro: ser objeto na cama vale, desde que o papel seja exercido conscientemente pela mulher, que se deixa seduzir e permite a investida masculina (“Hoje é um dia de calor/ passei meu perfume pra te excitar/ Botei a sainha, mostrei a marquinha/ Raspei minha perna pra você alisar”, em Ai negão tô que tô pegando fogo). A ideia é: pode me fazer de “cachorra”, mas somente quando eu quiser.

O corpo também é alvo de atenção: se ele não se encaixa no padrão geral – resumindo, se a garota não é uma “gostosa” –, não significa que terá de ser excluído do jogo social de sedução: Tati Quebra-Barraco deu de ombros para os quilos considerados a mais e proferiu o famosíssimo “Sou feia, mas tô na moda” (contraditório em si, já que, ao chamar-se de “feia”, Tati reconhece a superioridade dos códigos do outro). A grana no bolso vale mais do que um
shape fino – melhor pagar o hotel, como lemos no início deste texto, do que ficar nos 53 quilos marcados na balança.

VIOLÊNCIA E TRAIÇÃO
Outra questão política tratada é a violência e o “lugar de homem, lugar de mulher”. Em Tapinha nada, uma resposta ao antigo hit Um tapinha não dói (pesadelo dos movimentos que travam a batalha necessária contra os abusos sofridos pela mulher), Tati olha para o cafuçu com quem divide a cama e avisa: “Fica cas criança eu vo curti/ Comé que é?/ Fica cas criança eu vo curti/ O que?/ Fica cas criança eu vo curti/ tá bom!/ Fica cas criança eu vo curti/ Já escutei”. Em Agora eu virei absoluta (Gaiola das Popozudas), novamente a violência é cantada, dessa vez por uma mulher que deixa o marido que a espancava: “Só me dava porrada/ E partia pra farra/ Eu ficava sozinha, esperando você/ Eu gritava e chorava

que nem uma maluca/ Valeu, muito obrigado, mas virei absoluta/ Se uma tapinha não dói/ eu falo pra você/ Segura esse chifre quero ver se vai doer”.

Mas é desafiando a moral e o status quo inscritos na imagem da mulher fiel e dedicada que os bondes femininos mais espantam: ser amante, cantam elas, é muito mais vantajoso do que
ser a “encubada” (sic), a “otária” que fica em casa lavando cuecas enquanto
o marido corre solto porta de casa a fora. É interessante observar essa declaração, ouvida através de potentes caixas de som, num momento cultural no qual se privilegia o “feminismo Jimmy Choo” de Carrie Bradshaw, a moça madura de Sexy and the city que, apesar de reconhecer seus direitos de fêmea, quer uma relação segura onde existam apenas dois personagens, ela, plena, e ele, o macho fiel.

As funkeiras, por sua vez, querem a diversão e o prazer sexual, ainda que
para isso tenham que passar o rodo no homem alheio. Empregando termos e letras comuns aos seus ambientes (e é aí que nasce parte do preconceito sofrido pelas artistas, todas de locais de baixo
prestígio), elas entoam versos como “Já
saí com o Alex/ Já namorei o Rodrigo/ Mas no final da noite vou comer o seu marido”. Ou “Me beija, me morde, me trate com carinho/ Se você é casado, eu quero que se dane”. Ou ainda “Não deu conta do marido/ vai rolar a cachorrada/ e se marcar eu como mesmo/ não deu conta eu como mesmo/ tu tá marcando eu como mesmo”.

Uma série de títulos de canções que mostra uma “virada” na vida das moças, transformadas em fãs do shortinho e do piercing no umbigo após sofrer a pressão sufocante do mundo masculino, também dá conta dessa preferência pelo status da amante ou – horror maior das meninas que querem um marido e um Jimmy Choo – pelo status da solteirice: Agora eu sou piranhaAgora virei puta e Agora eu sou solteira são algumas delas. Sutileza? Nem pensar: o recado é sempre bem claro, já que não há muito espaço para DR (discussão de relação) no contexto dessas “glamourosas”.

Ironicamente, elas também terminaram caindo numa espécie de armadilha ao figurarem como “protetoras” do woman power: não podem mostrar fragilidade, não lhes é permitido evocar o amor. “Não posso cantar música romântica. As pessoas não esperam isso da Tati”, diz a moça cuja tarefa, assim, será sempre a de quebrar barracos, ainda que carregue as vísceras cheias de afeto. Outra ironia é a divisão entre a artista no palco e a mulher dentro de casa, o que nos sugere que grande parte do que é cantado e rebolado pode algumas vezes estar resumido ao ambiente da performance. O depoimento da mesma Tati, transcrito no livro Funk carioca: Crime ou cultura? O som dá medo e prazer, mostra que há limites e contradições em meio a tantos palavrões e oposição: “Eu não fico preocupada com o que dizem. Se as mulheres querem se espelhar em mim, é bom que seja em mim mesma, e não no meu trabalho. Eu sou bem diferente no palco. Na cama, entre quatro paredes, sou eu, meu marido e Jesus. Sou careta, meu amor”. Alguém chame Judith e Simone aí. 

FABIANA MORAES, jornalista e doutoranda em Sociologia.

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