Lucas Emanuel / CCQ
Li em alguma revista, há anos, que Nelson Rodrigues não precisava assistir aos jogos de futebol para escrever sobre eles. Longe de intentar a tal comparação, já que Nelson é quase uma unanimidade, digo “quase” para não ser burro, me pus o desafio de escrever sobre o que eu não vi. Estou a sessenta quilômetros do teatro, sem ônibus e sem gasolina. Lamento não ter o condicionamento físico necessário para pegar a minha bicicleta e travessar três cidades.
A imagem de divulgação da atriz Débora Lamm, que dá vida a feiticeira Medeia recriada por Grace Passô, dramaturga que assina o texto de Mata teu pai, quer dizer para a plateia: eu rasguei o meu peito e o meu coração está servido. Decidam por mim e pela minha dor, vamos todas matar Jasão. Todas, juntas, podemos matar os nossos pais e acabar com o patriarcado. De acordo com os relatos que colhi, a Medeia, de Grace Passô, não guarda nenhuma mágoa da nova mulher de Jasão, pelo contrário, ela até a admira. Medeia quer a cabeça de Jasão. Quer acordar as mulheres para os seus verdadeiros algozes. A culpa é de Jasão, a culpa é de Creonte.
Sobre a paixão, diz Aristóteles, em seu estado puro, não é virtude, nem vício. Entendida como perturbação da alma, como um mal do pensamento, ela impede-nos de controlar os afetos e de orientar a vontade. Desse modo, pode ser entendida como vício. Quando, em sentido positivo, a paixão é valiosa e, em vez de destronar a razão, ela é a sua condição de possibilidade, podemos entendê-la como virtude. A paixão presente em Mata o teu pai é bem-intencionada, quer ser virtuosa, quer orientar as mulheres para uma revolução. Já a paixão da Medeia, escrita por Eurípedes, é pura desmedida. É uma paixão que anseia pela vingança.
Na trilha da paixão virtuosa, Medeia escreve no fundo negro do palco, colado à rotunda, “sou do tamanho do amor”. Uma imersão na ideia do amor revela-nos que o objeto do amor está para fora dele mesmo. Amar exige um certo grau de saída de si. O desafio transformador que o amor nos impõe está em compreender a diferença, em lidar com ideias e corpos opacos. É hora do “continente negro” falar por ele, a invenção do feminino é uma tarefa que pertence às mulheres.
Lucas Emanuel / CCQ
As imagens da peça, publicadas na página do Festival, são carregadas de força e de beleza. Cheias de mutismo e de eloquência, que é uma condição própria da imagem, elas me aproximam e me afastam do que foi Mata teu pai, o espetáculo de abertura do Trema! Festival: narrativas para uma humanidade em extinção. Do tema escolhido para o festival, brotam outras questões, e as que mais me assombram são: Quais são as fronteiras que fazem com que nós possamos delimitar o “si mesmo”, o que chamamos de eu? Como conviver com o inumano e o “a-humano” que nos habita? A zoografia, para os gregos, é a arte de retratar o vivente e não apenas o animal. Aferrados ao fato de possuir linguagem e, por isso, nos diferenciarmos dos outros animais, acreditamos estar afastados da fera que também somos.
No cartaz desta edição do Festival Trema!, muitos bichos convivem numa cidade caótica. Feras existentes e extintas povoam a cidade e desafiam o nosso orgulhoso “si mesmo”. Jacques Derrida, ao comentar Emmanuel Levinas, diz: “ao olhar o olhar do outro, deve-se esquecer a cor dos seus olhos, dito de outra maneira, o rosto que vê antes dos olhos visíveis do outro.” Os pensadores querem que olhemos para o outro e possamos enxergá-lo como semelhante, como irmãos. Na guerra diária em que nos encontramos, fica cada vez mais difícil acreditar em revoluções sem sangue. A história nos dá o seu testemunho.
A liberdade ou a conservação da vida é uma questão presente em qualquer tragédia. O herói tem que escolher. Na maior parte delas, das tragédias, a causa é pessoal, mas a decisão e o desejo do herói afeta toda a cidade e o espírito do seu tempo. A expressão simbólica “mata o teu é pai” é uma condição necessária de individuação. Precisamos, homens e mulheres, de forma bem diferente, é claro, matar os nossos pais.
Na falta da presença, palavra tão cara ao teatro, faço um esforço para ver por meio das imagens e da opinião de amigos que conseguiram ver a peça no sábado. Todas as fontes que consultei são ligadas ao teatro: alunos, professores, amigos. Não tenho nenhum pejo em escrever sobre a peça que eu não vi. Há muitos espectadores especializado, críticos de teatro, que vão assistir as peças e escrevem só sobre o que não viram. A boa crítica, na minha opinião, é companheira do espetáculo. Este meu exercício de compartilhar o pão que não me foi servido, mas que alimentou a alma de uma plateia inteira que compareceu sábado ao espetáculo Mata teu pai, dirigido por Inez Viana, quer ser generoso com todo o esforço daqueles e daquelas que saíram de casa e enfrentaram todas as tormentas da cidade para ver teatro.
DURVAL CRISTÓVÃO, diretor e ator teatral, professor de Teatro e Filosofia.