Há fotógrafos de diferentes gerações e partes do Brasil e de fora, além de curadores, galeristas e demais agentes da cadeia produtiva da fotografia e das artes visuais. O “QG” é o hotel Sonata de Outono, onde os cerca de 100 convidados circulam dia e noite, se conhecendo, se cumprimentando, trocando ideias. Brinca-se até que, se algo acontecer ao prédio na Praia de Iracema, a fotografia nacional vai sofrer uma baixa profunda. Mas isso está longe de suceder, pois o clima é o mais positivo possível, a despeito da temática do evento – o abismo, em referência aos acontecimentos do Brasil atual.
O epicentro das atividades do Solar, contudo, chama-se Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, onde estão em cartaz cinco exposições, ao redor das quais se orienta a programação. Em cartaz até março de 2019, as coletivas ocupam o Dragão a partir de elementos como terra, sonho, vento, pele e miragem. Cada uma, à sua maneira, traz um apanhado sensível da produção fotográfica contemporânea, com alguns diálogos interessantes em relação ao passado (presente).
Cão, figura de uma micareta do interior da Bahia, presente na exposição Terra em transe. Foto: Adenor Gondim/Divulgação
A maior delas é a Terra em transe, uma compilação de cerca de 400 imagens de 53 fotógrafos do país, sob curadoria de Diógenes Moura, conhecido por sua atuação na fotografia, sobretudo como curador da Pinacoteca de São Paulo durante 15 anos. A montagem, em 12 salas do Museu de Arte Contemporânea (MAC), é uma amostra bem evidente dos bons ventos que sopram por aqui, por sua dimensão e qualidade. Sob o título do filme homônimo de Glauber Rocha, trata-se de um retrato vertiginoso do país, desde o olhar de veteranas como Maureen Bisilliat e Nair Benedicto, que enfrentou a tortura em dias de chumbo, a composições contemporâneas de Gilvan Barreto, Victor Dragonetti e Rochelle Costi.
“Estamos em transe, esta exposição é de tirar o fôlego”, proclamou o fotógrafo Tiago Santana, idealizador do festival, durante a cerimônia de abertura na noite desta quarta (5/12), pontuada pelo receio em relação ao momento político de um país que deixará de ter o Ministério da Cultura pelos próximos quatro anos. Independente disso, as imagens de Terra em transe não dão mesmo vez ao respiro. Se o festival é uma reunião para “celebrar o encantamento diante do mundo”, através da fotografia e suas múltiplas possibilidades, como também disse Tiago Santana, a exposição é uma ocasião para nos tirar de qualquer deslumbre, senão nos atirar diante do espanto.
Segundo frisou, o Solar é a concretização de um sonho antigo, pois, pela primeira vez, o Dragão do Mar tem todos os seus espaços tomados pela fotografia. Até na parte externa, próxima aos bares do casario antigo que circunda o centro cultural, há imagens para se ver. O caso da exposição Vento solar, na qual displays apresentam, em grande formato, o trabalho de quatro artistas estrangeiros: Joan Fontcuberta (Espanha), com o ensaio Desconstruindo Osama; Vanja Bucan (Eslovênia), com Sequências de verdade e decepção; Weronika Gsiscka (Polônia), com Traços; e Nobukho Nqaba (África do Sul), com Unomgcana (Saco chinês). A fabulação da realidade perpassa a leitura da curadora portuguesa Ângela Berlinde (do Museu da Fotografia Fortaleza), para quem “esta exposição procura demonstrar o poder que a imagem tem de cativar e iludir”. A sensação, ao ver os trabalhos, é bem esta mesmo.
Imagem do ensaio de Vanja Bucan
Aliás, os trabalhos de curadoria das exposições do Solar são de excelência e grande sensibilidade. Além dos mencionados acima, há o de Rosely Nakagawa, em Sobre a cor da sua pele, e o de Iana Soares, com a mostra Miragem, que alinha 29 autores do Ceará em torno de questões políticas e afetivas. Por fim, há também a coletiva Sueño de la razón, com trabalhos dos 10 anos da revista sul-americana de fotografia, além de mostras agregadas à programação. A Escola Porto Iracema das Artes, por sua vez, reúne as ações de formação.
Seja aonde for, a fotografia é posta não somente em seu caráter expositivo e espetacular, mas, principalmente, reflexivo. Até onde a imagem pode nos levar? O festival impacta pela sua diversidade de respostas possíveis à pergunta, chegando para ser um dos maiores, senão o maior – se assim continuar –, festivais de fotografia do Brasil, à frente de iniciativas consolidadas como Paraty em Foco (RJ) e o Festival de Fotografia de Tiradentes – Foto em Pauta (MG). Mesmo que não tenha continuidade, o Solar, realizado pelo Governo do Ceará, já é bastante sintomático quanto à atenção estratégica que se dá – em contraponto ao restante do país – à política pública de cultura no estado, onde o orçamento para a área duplicou nos últimos anos, chegando a 1,5% do montante total. E o Dragão do Mar, uma OS ligada ao governo, é a tradução desse oásis no Brasil.
“O resultado desse trabalho, na verdade, paga uma dívida que o Estado tem com o campo fotográfico no Ceará, que gerou uma quantidade de profissionais de alta importância estética e faltava realmente um lugar potente reunindo todas as artes, num momento tão dramático como este que o Brasil vivencia agora. A tranca política do Ceará tem uma historinha que uma pessoa chegou a um dos coronéis e disse assim: ‘Coronel, por que cearense se acha o centro do mundo? Por que tudo que cearense faz é o maior do mundo?’. ‘Porque o Ceará é o maior lugar do mundo’, respondeu [risos e palmas]. Eu fico pensando e estou quase acreditando nisso”, brincou (seriamente, é claro) a diretora do Porto Iracema das Artes, Bete Jaguaribe, também durante a abertura, ao que emendou, fazendo referência à exposição e ao filme Terra em transe: “Glauber (Rocha) dizia que a história é feita pelo povo, mas quem escreve a história é o poder. Eu acho que a gente pode sair deste festival confirmando a primeira parte, mas complementando a outra: quem escreve é o poder da cultura e da arte. Então, temos que sair daqui com essa disposição”.
Que essa disposição seja uma real alternativa ao que estamos vivendo.
OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural e editora da Continente Online com mestrado em Sociologia.
*A jornalista viajou a Fortaleza a convite do festival.