A Tecnosfera cresce toneladas por dia...
O Capitalismo 4.0 se instala... Necropolítica...
E arte pode ser um mutante não neural???
Que fotografia é preciso hj?”
A mensagem chegou via Instagram no penúltimo dia do Fotofestival Solar, em Fortaleza (CE). Era noite de sábado (7/12) e a pergunta de @oscarmalta, seguidor da Continente, saltou em meio à transmissão ao vivo que fazíamos de um encontro histórico entre Berna Reale, Nair Benedicto, Maureen Bisilliat e, na mediação das falas, Simonetta Persichetti. Em outras palavras, mulheres de peso para o pensamento e a produção da imagem no país. Cada uma, em suas idades e trabalhos distintos, trouxe à capital do Ceará questões sobre o nosso tempo, que o evento denominou de vertiginoso, abismal.
“Este é o momento da imagem política; política em sua amplitude”, lançou Simonetta na abertura do encontro; ela que é professora, crítica e pesquisadora paulistana. A ênfase nesse lugar da fotografia como instrumento de reflexão e resistência veio sobretudo ao final das falas, com o arremate de Nair Benedicto, fotógrafa da “velha guarda”, presa e torturada durante os anos de chumbo no Brasil. “Eu tenho tido um sonho recorrente de três meses para cá, desde que começaram essas declarações de que foi uma pena só torturar, e não matar. Eu falei: ‘Nossa, eles não estão levando a sério, mas eu estou levando a sério e sentindo a sério’”, contou Nair, que disse estar com o sentimento de quem vivencia tudo pela segunda vez, “agora pior, porque de forma legalizada”.
Simonetta Persichetti, Berna Reale, Nair Benedicto e Maureen Bisilliat
Nair Benedicto se levantou e pediu grito. Fotos: Luiz Alves/Divulgação
“Então, eu tô tendo um sonho que é o seguinte: estou num lugar muito alto, às vezes parece que é um edifício, outras vezes que é um morro, e não vejo as pessoas que me falam que eu preciso pular, mas eu vou sentindo uma pressão e daí eu fico naquela aflição de virar pra cá e pra lá na cama, mas ‘falo’: ‘Eu preciso pular, eu preciso pular’. E eu tomo uma decisão, totalmente fora do tempo real: ‘Eu vou pular, eu tenho que pular, mas eu vou gritar, gritar e gritar tanto, tanto, tanto, tanto, mas tanto...’. E daí eu acordo no meio do sonho gritando, suada, mas meu mal-estar dura pouco, porque no segundo segundo, eu penso: ‘Eu estava gritando’. Então, minha proposta para a gente pensar é assim: este momento que nós estamos vivendo exige muita coisa. Exige paciência, exige ouvido, muito amor, muito carinho e exige também grito! Nós precisamos GRITAR!”. Diante da plateia lotada do anfiteatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Nair foi ovacionada.
Entre as falas de Simonetta, na abertura, e de Nair, no encerramento do encontro, a artista contemporânea Berna Reale e a fotógrafa e videasta Maureen Bisilliat mostraram seus trabalhos, bastante diferentes, unidos, todavia, por aquilo que só a experiência e a criação fotográficas são capazes de expressar. De um lado, a imagem de uma "índia fake", cercada por sapinhos de boia plástica, ou de uma mulher que enxuga gelo incessantemente dentro de uma câmera frigorífica. A própria Berna em sua performance potente.
Fotoperformance de Berna Reale exposta na Galeria Sem Título
Do outro lado, um ensaio de maracatus e reisados nordestinos dos anos 1980 feito por Maureen, ou melhor, Maurina, pois assim a chamou Ariano Suassuna depois de entrar em contato com aquelas fotografias cuja exposição agora no Solar, na coletiva Terra em transe, é a prévia de um livro póstumo do escritor. Explico: ele fora provocado pela fotógrafa a escrever uma apresentação sobre seu conjunto em cores, mas ficou tão “endoidecido”, que não só preparou o curto texto, como desembestou nas páginas de A lanterna de Maurina e as visagens de Quaderna, a serem lançadas em 2019, pela editora Record.
Imagens de Maureen Bisilliat para sala especial de Terra em transe
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Um dia antes de sua conferência, na sexta à noite de 7 de dezembro, falávamos eu e Maureen Bisilliat sobre o futuro, em uma dessas conversas despretensiosas no sofá do hotel. Mostrava àquela mulher maravilhosa, com mais de 80 anos e muito gás e lucidez, as folhas do Anuário Todavia 2018/2019: Apocalipse?, que havia acabado de comprar no Dragão do Mar, na ocasião da conversa entre Michel Laub (editor da publicação) e o escritor Joca Reiners Terron justamente sobre as narrativas de fim de mundo que ronda nosso imaginário atual.
– Como você imagina o futuro, hein Maureen?
– Ah! Acho que vai ser uma coisa completamente diferente, irreconhecível mesmo!
– Dizem até que daqui a 25 anos, vão existir 80 profissões que nem imaginamos ainda.
– Como? Oitenta? Estão sendo otimistas, porque acho que vai ter 80 a menos.
– Pode ser, mas acho que querem dizer no sentido de algo totalmente novo, inimaginável.
– É, pode ser... Mas acho que estão sendo otimistas.
– E a fotografia? Você acha que ainda vai existir?
– Não sei... Talvez não, não da forma que hoje vemos a fotografia. Acho que não...
Pois justamente na quinta (6/12), o dia anterior e o segundo do festival, subia ao palco um desses caras que não cansam de pensar sobre o futuro da imagem, isto é, sobre o presente da “fotografi@” após a fotografia dos últimos quase 200 anos. O ser pensante que é o catalão Joan Fontcuberta, escritor e artista visual bastante celebrado internacionalmente, faz a gente reparar que o futuro é agorinha mesmo; caso contrário, estaremos perdidos na próxima esquina, ou no brevíssimo arrastar de dedos sobre a tela. Naquele dia no qual a Espanha celebrava os 40 anos de sua constituição – pós-ditadura de Franco –, Joan falava em castelhano, para uma arquibancada cheia, sobre “a decadência da mentira”, como intitulou sua apresentação.
Joan Fontcuberta na conferência no Solar. Fotos: Luiz Alves/Divulgação
Durante uma hora, assistimos a Joan construir uma linha de raciocínio imprescindível aos que buscam alguma resposta possível em torno dos rumos da fotografia (e dos fotógrafos, aliás). E para construir seu pensamento, ele desconstrói os mecanismos da mentira de um mundo onde as imagens ora servem ao terrorismo político – estejamos atent@s –, ora preenchem de vazio uma existência pautada em selfies. E o que nos resta? Para ele, muitas vezes mais o gesto do que as fotos em si, estas geralmente descartáveis e descartadas na “Tecnosfera”, para usar a palavra do nosso seguidor. “Fazemos fotografias que, no final, se tornam invisíveis, não vemos”, disse Fontcuberta.
“E como vamos sobreviver a esse mundo de imagens?”, perguntou o próprio. E as respostas, se é que podemos assim dizer, não surgiram em palavras, senão na apresentação e análise das próprias imagens que ele vem elaborando a partir de suas ações inteligentes e bem-humoradas. Como as que se travestem de Bin Laden em fotomontagens postadas na internet; como as que contam uma conversa levada adiante por ele com alguém que tentava trapaceá-lo em um e-mail da caixa de spam. Ele, por sinal, adora spans. Só um artista é capaz de extrair algo daí e ainda entrar na jogo para “hackear” a estrutura das falsidades virtuais.
Em Desconstructing Bin Laden, Fontcuberta se traveste do terrorista em fotomontagens
“Existem dois tipos de mentirosos profissionais: os políticos, que mentem em benefício próprio, e os artistas, que assombram com suas mentiras. Meu desejo é que prevaleçam mentiras que nos fazem rir, que sejam mais democráticas e desmascarem as armadilhas da direita e do fascismo”, afirmou. Para ele, a fotografia pode, sim, nos ensinar a desmascarar ameaças e combater problemas da atualidade, desde que entenda seu lugar neste mundo em que quase toda mediação se dá por meio de imagens, cada vez mais distantes do “real”. O próprio Fontcuberta e fotógrafos como o cearense Celso Oliveira falaram abertamente, durante o Solar, sobre a urgência da educação do olhar, pois, como a matemática, precisamos de tempo para entender a dimensão imagética.
As palestras, as oficinas, os encontros e as próprias exposições do festival, além das “agregadas” nas galerias Sem Título, Imagem Brasil e no Museu da Fotografia, contribuem bastante para esse processo de aprendizado, sempre em construção, e evidenciam o quanto é necessário debatermos a fotografia. Precisamos entender que a importância dela em nossas vidas se equipara hoje à de escovar os dentes. Não damos um passo sem sacar a câmera do celular, a questão é que não podemos colocar isso no piloto automático. O ver, o fazer e o ser foto, em extensões de nossos corpos cotidianos, precisam urgentemente de reflexão, não de automatismo; seja no âmbito da “fotografi@”, seja no da fotografia.
A Fotografia com efe maiúsculo, aliás, está presente na principal exposição do festival, a Terra em transe, marcada por sua potência em fazer pensar e resistir. A imagem do cubo branco, emoldurada e muito bem-curada é ainda uma preocupação forte de um evento que começou grandioso e se propõe a ser bienal. O festival, contudo, pode alargar mais as “fronteiras”, diversificando as linguagens e indo além de seus pares, como pontuou, em seu desejo, Tiago Santana, idealizador do Solar.
Conversa de Joca Terron e Michel Laub sobre fim do mundo
Se a fotografia está com os dias contados, como fala Diógenes Moura, curador de Terra em transe, de que fotografia precisamos hoje? Manter a força da imagem autoral e documental é, sem dúvida, muito importante, seja pelo valor, seja pela resistência. Os autores têm sempre muito a nos ensinar e estão ameçados em seu trabalho, de fato. Mas talvez precisemos mais do exercício de escovar a história à contra-pêlo, como mencionou o colecionador e pesquisador Rubens Fernandes Junior, parafraseando o teórico Walter Benjamin. E escovar a história à contra-pêlo significa também enfrentar os velhos vícios da fotografia, produzir outros discursos e formas de organização.
Ao que parece, as respostas se anunciam muito mais nas experiências. Como a da artista sul-africana Nobukho Nqaba, presente em Vento solar, outra exposição do festival. De uma doçura sem fim, ela explicou, em conversa sobre sua obra na tarde daquele sábado das mulheres: “Meu trabalho não existe sozinho, tem um conceito colaborativo. O que faço agora provavelmente ajudará quem virá depois, eu quero isso”. Falou ainda sobre a imagem como uma mistura de sonho e realidade, esse lugar que “permite você ser louca e trazer coisas bonitas”, esse lugar onde, acima de tudo, “o mais importante é realizar o pensamento”.
OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural e editora da Continente Online com mestrado em Sociologia.
*A jornalista viajou a Fortaleza a convite do festival, realizado com patrocínio do Governo do Ceará.