Relação, não coisa, entre a consciência, a vivência e as coisas e os eventos.
O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir.
Paulo Leminski em Buscando o sentido
Talvez o cinema seja uma das vias pelas quais procuramos um norte na vida. A busca por essa “entidade mais misteriosa do universo”, que dava sentido à criação artística do poeta paranaense Paulo Leminski, moveu dezenas e centenas de pessoas aqui, na mesma cidade onde ele nasceu. Entrar e sair das sessões do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, com seus mais de 100 filmes em sete mostras, era um jogo de apostas e uma tentativa, contínua, constante e coletiva, de achar na arte o sentido que, nesses dias insanos, tende a nos escapar na vida.
Mas, como elabora o próprio Leminski, curitibano como esse festival em sua oitava edição, “por isso o próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação”. Então, o sentido não estaria nos filmes, mas nessa busca que fazia realizadores, produtores, jornalistas, pesquisadores, críticos e o público imergirem em obras que nos desafiam e afastam, convidam e repelem, incomodam e comovem.
Só buscar o sentido faz, realmente, sentido.
Tirando isso, não tem sentido.
Sobre os premiados: a relação completa pode ser vista aqui. Dos vencedores, falamos de Diz a ela que me viu chorar, de Maíra Bühler, Espero a tua (re) volta, de Eliza Capai, e Chão, de Camila Freitas, já na nossa cobertura desta oitava edição – basta ler aqui. E, enquanto torcemos para que estes três longas-metragens não tardem a circular no país, recuperamos as sensações do que foram esses dias em Curitiba, enquanto pulávamos de sessão em sessão no festival, à medida que conversas vazadas davam outro significado à experiência de ser e estar no Brasil.
A seguir, correm soltas algumas anotações sobre o desejo de buscar sentido nos filmes do Olhar de Cinema este ano.
NÓS E A CIDADE
O curta-metragem pernambucano Caranguejo rei, de Enock Carvalho e Matheus Farias, é ambientado no Recife, essa cidade-mangue e, como o título explicita, nele aparecem caranguejos, como a reivindicar um espaço que era seu por natureza. Eduardo, o protagonista (Tavinho Teixeira), é dono de uma construtora e não parece muito animado quando sua assistente acha um caranguejo embaixo da mesa do escritório. Mas será que a ferida que aparece no seu braço tem a ver com isso? Mistério...
“Ficamos bem felizes em saber, no festival, que também tem mangue em Curitiba e em Porto Alegre, pois as pessoas vieram comentar conosco depois da sessão. Achamos que o filme é universal”, contam Enock e Matheus. O que Caranguejo rei propõe é uma incursão, com elementos do cinema de gênero pintados com a bela fotografia de Maíra Iabrudi (a partir da qual somos levadas a Tio Boonmee, que pode recordar vidas passadas, de Apichatpong Weerasethakul, uma referência que os diretores acolhem), a uma espécie de “cobrança” da cidade. De tanto maltratá-la, há de chegar o momento da sua “vingança”, nas palavras dos realizadores.
Cena de Caranguejo rei. Foto: Divulgação
Um outro filme que se debruça sobre relações entre uma metrópole e seus habitantes é Família da madrugada (Midnight family, 2018), do cineasta norte-americano Luke Lorentzen. Na Cidade do México, há pouco mais de 40 ambulâncias públicas para atender seus quase nove milhões de habitantes. Logo no começo, essa informação é repassada para nós, a audiência, porque ela é crucial para o que se desenrolará na tela: Lorentzen aponta sua câmera para o cotidiano laboral da família Ochoa, que administra uma ambulância particular e concorre com outras empresas de socorro para assistir os pacientes presos em destroços de acidentes de carros ou em quaisquer outras ocorrências.
Há, de cara, uma estranheza, uma fricção, que talvez para nós, sul-americanos, seja mais fácil de ser convertida em crença quando se constata que, sim, é possível que isso seja um documentário, e não uma ficção. Mas como assim, ambulâncias privadas, disparando pelas avenidas na madrugada, disputando pacientes para ganhar comissão nos hospitais com os quais possuem conchavos? No caso do Olhar de Cinema, um dos curadores do festival, Eduardo Valente, leu antes da sessão uma carta do diretor explicando como decidiu fazer um filme a partir do encontro com os Ochoa. Ou seja, a precarização do trabalho, a precarização da saúde, a precarização da vida humana… Tudo aquilo explode na tela e se entranha na urdidura do registro documental de Lorentzen.
Família da madrugada cria vínculos com o documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, do pernambucano Marcelo Gomes, que fez, em Curitiba, sua primeira exibição no Brasil depois de ser exibido na 69ª Berlinale. Estou me guardando… é um documentário que mescla, em sua forma, vários convites à construção imagética e discursiva do gênero: possui narração em off do próprio diretor, tem entrevistas, apropria-se de um dispositivo para gerar imagens, enfim, tem diversas características estilísticas que já o tornariam um interessante espécime da safra documental brasileira deste ano.
Porém, o que sobressai é seu olhar delicado e ao mesmo tempo arguto sobre a relação maluca que as pessoas estão construindo com o trabalho. “Uma cidade que passa por um processo de industrialização arcaico, como se nela o passado se encontrasse com o futuro, sabe? Como se a cidade tivesse pulado etapas. Nesse momento de mudança das leis trabalhistas, as pessoas de lá são sujeitos do desempenho: autoescravizam-se, acordam e dormem para trabalhar”, me disse Marcelo em entrevista em fevereiro.
Ele não conhece Luke Lorentzen, nem tampouco seus filmes foram rodados no mesmo idioma, mas terminam falando a mesma linguagem e propondo a mesma pergunta: no embate entre nós e a cidade, até que ponto vamos dobrar nossa subjetividade, nossa própria condição humana, para trabalhar e existir?
O filme Família da madrugada. Foto: Divulgação
REINVENÇÕES DE SI
“De repente, me veio essa imagem de falar de uma mulher que volta para a casa da sua mãe com seu filho”, conta-nos a realizadora e escritora argentina Romina Paula, que apresentou, em Curitiba, De novo outra vez (De nuevo otra vez). Nele, ela abraça o “papel triplo” de atriz, roteirista e diretora com a fé de que “era mais honesto e fácil, também” que ela interpretasse o papel principal. Romina, a personagem vivida por Romina, a atriz, sai de Córdoba, onde mora com o marido e o filho pequeno, para passar uma temporada na casa da mãe. Acontece que a mãe, no enredo, é Mônica, que também é a mãe de Romina. E a criança? “Lo mismo”, para usar o espanhol de sotaque portenho que todos os personagens usam.
Ou seja, estamos diante de uma charada: é um documentário que borra as fronteiras da ficção ou uma ficção com toma emprestados, do real, as vidas, os nomes e as bagagens daquelas pessoas? Pois em De novo outra vez, quando Romina nos conta a história de sua mãe, ela usa, de fato, imagens da família alemã que emigrou para a Argentina e da qual ela nasceria, algumas gerações na frente. “Confesso que, uma vez decidido que faria esse pacto ficcional, comecei a ter fantasias noturnas de horror sobre como seria, efetivamente, filmada essa história”, revelou aos espectadores que a viram falar, por mais de 40 minutos, em uma fria noite de Curitiba (termômetros na casa dos 9º lá fora), muito além das 23h.
As fantasias de Romina, sobre aceitação ou não do pacto que ela propõe, devem ter ficado em suas elaborações mais íntimas e, tendo vindo à tona na sua fala, é bom que se diga: são infundadas. Porque De novo outra vez é um deleite, um passeio ao mesmo tempo delicado e denso por uma e sob uma mirada feminina, um mergulho nas dores e delícias da maternidade e na experiência de se perceber mulher para além de ser mãe. É possível ser mulher, sair para farrear com os amigos, ter dúvidas sobre o casamento e nutrir a adoração do filho de três anos sem que uma proposição anule a outra? É possível fazer um filme sobre você, com uma protagonista que tem a sua história, mas também fabular e assim confundir a linha entre o que é real ou inventado? Tudo é possível, nada fará muito sentido, e são vastas as veredas para a fruição desse filme.
Essa mesma perspectiva de possibilidades de reinvenção de si é o arcabouço para duas outras obras que nos impeliram a questionar “o sentido do ato de existir”, como diria Leminski. Em Casa Roshell, a cineasta chilena Camila José Donoso, homenageada na seção Foco, conduz o (nosso) olhar para esse lugar onde homens podem ir para se travestir, encontrar mulheres que fogem do escopo normativo ou apenas para se reinventar. Um refúgio em tempos homofóbicos e transfóbicos, é fato, e uma investigação sobre processos fílmicos também.
Durante meses, a realizadora frequentou a Casa Roshell, convivendo com Roshell e Liliana, as administradoras, e com os homens que frequentam aquele lugar, ora para terem aulas de como usar um salto ou se portar quando trajando um vestido, ora para se travestir e conhecer outras pessoas, agora já sob uma nova pele. “Foram meses de conversa e, quando fomos rodar, o interessante é que o que ficava melhor era justamente quando elas faziam além do combinado”, comentava Donoso em uma rápida conversa com a plateia em Curitiba.
No visual, é impossível não tecer um elo com as fotografias de Paz Errázuriz, artista visual e fotógrafa que, durante a ditadura de Pinochet, teve a coragem de conhecer e visibilizar os homossexuais que enfrentavam a lei apenas para ser quem eram. “Torna-te quem tu és”, diz a frase de Nietzsche, e tanto Errázuriz (que Camila descreve como uma amiga querida e a quem mostrou Casa Roshell) como a própria diretora parecem interessadas, de verdade, em um tipo de arte que possa não apenas erigir pontes entre seus personagens e nós, a audiência, mas também turbinar nossa capacidade de compreensão sobre as inúmeras janelas que as pessoas cavam para poder se expressar, exprimir e vivenciar seus desejos, ser quem são em toda a sua plenitude e potencialidade.
Cena de Tel Aviv em chamas. Foto: Dilvulgação
Outro registro, mais cômico e ficcional, Tel Aviv em chamas (Tel Aviv on fire), de Sameh Zoabi, também brinca com isso: com as aparências e os estereótipos aos quais nos acostumamos para (sobre)viver. Kais Nashif (um dos charmosos terroristas palestinos de Paradise now) interpreta Salam, que todo dia precisa atravessar de Ramallah a Jerusalém para trabalhar e, logo, deve passar por um checkpoint em que soldados israelenses revistam qualquer um que por ali queira passar. Ele começa a trabalhar no estúdio de televisão do seu tio, cujo produto de maior sucesso é justamente a novela Tel Aviv em chamas, e após um pequeno entrevero com o capitão judeu Assi (Yaniv Biton), ganha do militar a missão de mexer nos diálogos do folhetim.
Podemos reescrever a nossa história e, assim, a História? Salam parece interessado em não apenas atender aos caprichos de Assi, mas também, quem sabe, repensar o modo como palestinos e judeus se relacionam. Vários elementos do melodrama se insurgem, e o diretor Sameh Zoabi os maneja sem medo de explorar todo o esplendor do gênero, porém faz uso do humor e adota a leveza para criar um conto sobre o ato de narrar, a escrita como forma de resistência, a arte como ferramenta para se repensar como vivemos, o que fazemos, quem somos.
E, se é “só buscar o sentido” que faz sentido, o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba foi um chamado cativante. E, nesse sentido, com o perdão do trocadilho, irrecusável, ainda mais quando o nosso país parece cada vez mais sem sentido algum.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.
* A jornalista viajou a convite da organização do festival