Campo minado, obra da diretora argentina Lola Arias, apresentada nesse primeiro fim de semana da MITsp, reconta passos da Guerra das Malvinas a partir do relato documental de seis ex-combatentes, entre argentinos e ingleses. Se Galtiere, presidente argentino na época, sofria de baixa popularidade em seu país, utilizando-se da guerra como forma de unir a opinião pública contra um inimigo externo, a inglesa Margaret Thatcher logo fez do conflito arma de política interna, fortalecendo sua posição como ministra.
O resultado descrito nos livros de história narra a vitória do Reino Unido, a reeleição de Thatcher e o mergulho em uma profunda crise econômica e política, que deu início ao processo de redemocratização da Argentina. A história é objetiva. Entretanto, o resultado também pode ser lido pela morte de 907 combatentes, pelos traumas e feridas difíceis de curar dos sobreviventes. Alguns se suicidaram anos depois, outros recorreram a cocaína numa tentativa de simplesmente dormir sem sonhar com o terror.
Novas camadas para um acontecimento histórico precisam ser pensadas. Neste campo, ao recorrer para o entrecruzamento da memória coletiva e individual, Lola acaba por jogar luz sobre o indivíduo, denunciando o sofrimento induzido pelo antagonismo.
Homens comuns que foram instigados a nutrir o ódio pelo diferente. Mas de onde irradiará a loucura que ativa tudo isso? Uma língua, uma nacionalidade, uma posição política, um corpo? Ódio. Esta sensação que o poder sabe alimentar tão bem.
PALMIRA
Cena de Palmira. Foto: Guto Muniz/Divulgação
Bertrand Lesca e Nasi Voutsas nos convidam, então, a outro território. Pensemos Palmira, a antiga cidade Síria, que por longo tempo foi um dos lugares-monumentos mais preservados do mundo.
Em 2015, quando o Estado Islâmico tomou o controle da cidade, templos foram destruídos, sepulturas foram saqueadas. Algo facilmente definido pelo mundo ocidental com uma “verdadeira loucura”. Uma loucura que também serviu para escancarar ao mundo as inúmeras questões sírias, de uma guerra que já deixou mais de 400 mil mortos e provocou o êxodo de mais de 4,5 milhões de pessoas do país.
A fixação da ideia moderna de culto ao patrimônio monumental sobressalta nossos olhos. Milhares de compartilhamentos e comentários em redes sociais sobre esta afronta de destruição das nossas jazidas culturais foram realizados. Lembremos também que, antes, fotos de crianças sírias mortas foram compartilhadas. Navegamos assim, equiparando vidas e monumentos, a propagar “memes do horror”.
Lesca e Voutsas recorrem a elementos bastantes simplórios para ativar nos espectadores a sensação de que, ao longo da história, temos nos posicionado como cúmplices da destruição, do ódio – inevitavelmente.
O fato de o anfiteatro romano dessa cidade ter sido o local escolhido para a realização de execuções públicas nos aponta ainda para o quanto precisamos espetacularizar o nosso ódio. Mas calma. A Síria fica tão longe, não é?
Com a redução da narrativa ao jogo essencial do teatro, a peça convida o público a múltiplas leituras, que podem passar desde a cidade em foco à relação amorosa entre pessoas. Por qualquer caminho percorrido, encontraremos a reflexão que remete a uma espécie de sadismo infantil: “Vocês percebem como tudo é tão louco? Tão infantil? E por que não conseguimos fazer nada em relação a tudo isso? Por que martelamos e destruímos tudo em nosso entorno?”.
A Loucura de Erasmo é a porta-voz da verdade. Essas duas obras nos convida a pensar sobre a complexidade do quanto desejamos que justamente esta loucura nos atravesse.
PEDRO VILELA é diretor, curador, ator e um dos idealizadores da Trema! Plataforma de Teatro.