Mas se, por um lado, essas feridas são elos de similitude entre países ibero-americanos, por outro lado são também chaves na busca contemporânea por reestabelecer narrativas históricas através de um processo decolonial. Assim, os subalternos – aqueles que um dia foram oprimidos e excluídos da história – têm buscado subverter e desconstruir os padrões hegemônicos eurocêntricos, dando novos sentidos aos direitos humanos, à cidadania, à economia e à cultura, por exemplo.
Essa ideia de “pensamento fronteiriço” se torna o principal norte de movimentos sociais e políticos latino-americanos de lutas por independência e ressignificação da história. Assim, evidentemente, respinga em parte da produção teatral do continente apresentada no festival Mirada, organizado bienalmente pelo SESC Santos, no litoral de São Paulo. A quinta edição do evento começou no dia 5 e segue até o próximo sábado (15), reunindo 41 trabalhos do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Portugal e Uruguai.
A investida na desconstrução da narrativa colonial eurocêntrica parte sobretudo do campo das subjetividades, e, sobretudo nas montagens a que a Continente assistiu no final de semana passado, diz respeito a questões de gênero. Na obra do jovem coletivo equatoriano Funeral Para Una Idea, Funeral para la idea de un hombre (Funeral para a ideia de um homem) são as masculinidades contemporâneas o centro da discussão.
Num ambiente em ruínas, com areias que cobrem o palco e pequenos tijolos espalhados em cena, quatro atores montam pilhas de blocos e tentam se equilibrar sobre eles. Escorregam, evidentemente, espalhando os entulhos. A certa altura, com texto confessional os artistas experimentam desabafar seus desejos sobre aquilo que pretendem, diante da morte, deixar para trás. Na partida, abandonam ideias e conceitos violentos, machistas e misóginos que compõem a carcaça histórica e falaciosa do homem viril.
Assistimos ali a um inquieto grupo de artistas jovens expurgando seus conceitos de masculino na tentativa de restabelecer novas conexões entre si, revendo padrões dominantes. A masculinidade é a representação de valores simbólicos acumulados ao longo do processo de colonização e preservados até hoje no jogo de supremacia de gênero. No caso da peça, juntar esses “tijolos”, se equilibrar nas pilhas e cair dá conta de expor a instabilidade do conceito de virilidade.
Embora seu título tenha conotação de morte, o espetáculo é, essencialmente, sobre nascimento – ou, como escreveu o colega e crítico amilton azevedo, “um funeral do construído para o nascimento do possível”. Essa “nova vida”, porém, tem como carta de virada da peça e cerne da reflexão a única mulher no elenco: Zully Guamán. A presença dela falando sobre violência ao corpo feminino transfere ao feminismo o papel decisivo na mudança de comportamento opressor do homem contemporâneo.
Enquanto Funeral para la idea de un hombre aborda a masculinidade, outro espetáculo apresentado no Mirada se debruça sobre o feminino. Corpos opacos, trabalho brasileiro que estreou no evento, tem direção de Marco André Nunes e Yara de Novaes, com atuação de Carolina Virgüez e Sara Antunes. A obra resgata a história das freiras colombianas que viviam enclausuradas no mosteiro de Santa Inés de Montepulciano, em Bogotá, e quando morriam tinham seus cadáveres pintados em quadros, depois expostos como arte, como retrato do encontro delas com o divino.
A peça parece inacabada, com cenas ainda a serem alinhavadas num processo de depuração. Mas em geral, é um espetáculo com discurso bastante oportuno e imagens fortes. Carolina Virgüez se coloca como uma guia da exposição das obras no mosteiro; e Sara Antunes faz seis performances diferentes para contar a história de seis freiras cujas faces estão estampadas nos quadros. Novamente a ideia de colonização volta aos olhos dos espectadores, desta vez sobre o questionamento do controle e poder dos corpos.
Durante parte das suas vidas essas mulheres estiveram rigorosamente sujeitadas às rédeas da religião, tendo tolhidas das mais singelas às mais importantes possibilidades de prazer e liberdade. Elas escolheram ser freira, mas a justificativa de uma busca pela “pureza” fez com que estivessem, na verdade, envoltas às regras de silêncio sobre seus corpos. Assim, a cenografia do espetáculo é incisiva ao deixar um buraco central, num pano na parte alta do palco, sobre as atrizes, como simbólico olhar celestial que acompanha as mulheres nas dores e no gozo.
No sentido de “pensamento fronteiriço” é inevitável associar a clausura daquelas mulheres ao abismo das desigualdades de gênero, marcas inerente ao processo de colonização. O mosteiro é qualquer ambiente de prisão, física ou simbólica, do corpo feminino; a fé, que pauta os comportamento, é também a mesma que ainda justifica decisões sobre esse mesmo corpo. E a peça se apropria disso ao utilizar o contraponto das mutilações ao corpo feminino enquanto vivo e da plasticidade das pinturas do corpo feminino morto, opaco.
O que estes dois espetáculos nos fazem refletir, mesmo que por caminhos estéticos dissonantes, é, no final das contas, sobre como o corpo assume singularidade no processo de decolonização da história e se torna um espaço da performatividade individual da pessoa-artista. E o teatro faz isso pela ideia foucaultiana de um corpo utópico, ligado a todos os outros lugares do mundo, e, na verdade, em outro lugar que não o mundo; corpo de onde se olha o entorno e de onde se cria tudo que está disposto em sua volta. Corpo capaz de nos ajudar a reconstruir a nossa História.
MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador, crítico de teatro e mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.