A novela é sobre uma família portuguesa que, fincada em meio à floresta, só se interessa em caçar e comer as "comidas típicas" e em matar os indígenas que "ameaçam" invadir e roubar suas terras. O texto escrito pelo também diretor Jorge Andrade põe o espectador em uma vertiginosa situação de looping, repetindo as cenas, as frases e situações. Uma "reciclagem" da história, como brincam em cena os atores (inclusive, eles reciclam cenário, figurino e até iluminação de peças anteriores da companhia), dando conta de criticar não só falsa ideia de ecologia embutida no argumento do programa como também de reaproximar o passado colono da atualidade capitalista.
Curioso é ver essa história contada com um sotaque português. E, se a princípio pode despertar algum "pé atrás" de nós, brasileiros, logo já percebemos que não se trata de uma leitura distanciada, mas, com certeza, uma autocrítica. E nesse sentido Jorge Andrade se aproveita completamente do sarcasmo para estabelecer conexões com o passado e impor incômodos. Ele pinça, por exemplo, questões ligadas à capitalização do politicamente correto, como criar um elenco de artistas negros e brancos sob o discurso de "pluralidade", premissa dos apoiadores, mas deixando de lado indígenas – algo tão comum às empresas que adequam às suas publicidades a ideia de inclusão, mas não abrem mão, nas entrelinhas, de passar seu trator econômico por cima das classes e grupos historicamente excluídos.
Amazônia foi criada como continuação de outro espetáculo do Mala Voadora, Moçambique, de 2016, quando Jorge Andrade decidiu criar uma espécie de autobiografia. No espetáculo passado, ele voltava ao país onde nasceu e de onde saiu logo recém-nascido para redescobrir a história da independência daquele povo e também se reencontrar com parte dos seus antepassados. Depois desse olhar pessoal sobre si, o diretor decidiu, então, lançar um novo olhar sobre colonização, desta vez a partir da floresta amazônica.
Nesta entrevista à Continente, o ator, diretor e dramaturgo fala sobre Amazônia e o papel da obra na releitura contemporânea sobre o "prolongamento do passado"
Montagem usa acidez para falar de colonização FOTO José Carlos Duarte/Divulgação
CONTINENTEParte dos espetáculos em cartaz no Mirada, nesta edição, de uma forma ou de outra suscitam reflexões acerca das marcas da colonização – e nisso estão incluídas questões relativas não só ao espaço geográfico, mas também a corpo, memória e identidade. E sempre como discurso de decolonização. Como pensar Amazônia dentro dessa perspectiva? JORGE ANDRADEMoçambique era bastante autobiográfico. Era uma história pessoal minha e me colocava a possibilidade de voltar a Moçambique, onde nasci [ele se mudou para Portugal na infância]. Eu fiquei sempre com uma curiosidade, desde criança, de saber como teria sido minha vida se eu tivesse ficado lá. Eu lembro de quando ouvi minha tia conversar com minha mãe e pedir para que me desse a ela. Sempre pensei sobre isto: Como seria se eu tivesse ficado? Mas também pensava que se minha mãe me desse a minha tia, era porque ela não gostava de mim. Mas não foi só isso. Apesar de meus pais terem vivido lá muitos anos, durante meu crescimento não se falou sobre aquele momento, enquanto colonos em Moçambique [o pai de Jorge era soldado e participou da Guerra de Independência de Moçambique, defendendo Portugal]. Eu voltei para lá sobretudo porque me interessava a história pós-independência, de um período que Moçambique virou um palco indiretamente da Guerra Fria. E fazer aquele espetáculo autobiográfico me interessava. (...) No caso de Amazônia, eu quis ter acesso a diferentes vozes. (...) Se Moçambique foi para ver a história pós-independência, Amazônia me interessa como pretexto para escrever essa ficção da Amazônia (...) e ir procurar lá atrás, mais antes de Moçambique, a presença do português nas colônias. (...) Eu gosto de fazer uma espécie de reconstituição histórica, mas envolvendo no corpo essa montagem da arqueologia. Por exemplo, na versão apresentada em Portugal, eu não entrava no espetáculo. Não me sentia bem. Na possibilidade de mostrar para o Brasil, fiz um jeito para estar como parte dele. Sinto que é uma história minha também. E assim legitima o espetáculo, ao meu ver, porque podem surgir críticas de "Quem é esse que não é brasileiro e vem falar do Brasil?". Mas o que me importa é falar do lugar do colono. Se resulta vira caricatural, é pela nossa estupefação sobre o que o ser humano pode fazer no sentido de explorar.
CONTINENTEÉ inevitável, ao falar em Amazônia, não pensar nas questões intrínsecas na história de colonização do Brasil, uma vez que é também um espetáculo feito em Portugal. Mas neles vocês fazem críticas ao genocídio dos povos originários da américa, a exploração das terras, a destruição da floresta etc. Mas em algum momento você percebe o espetáculo como uma mea culpa? JORGE ANDRADE A dívida que o colono tem com as ex-colônias não é pagável. O que não implica que essas colônias não exijam ser ressarcidas dos danos. Não dá como não apontar o dedo – sobretudo quando vozes de pessoas que não tinham lugar de fala passam a ocupar seu lugar de fala, passam a fazer teses de doutorado, conseguem furar certos bloqueios de visibilidade através das redes sociais. E isso, penso eu, é importante para que não se continue um prolongamento do passado. Porque há muitas maneiras de se continuar o neoliberalismo, até pelas empresas que citamos em Amazônia, que são patrocinadoras daquela "novela ecológica" da peça. Porque o homem é essa coisa voraz que não descansa até devorar tudo. Como dizia há pouco, há visão do mal que se foi feito – quando digo em cena que o espetáculo não tem nada de novo, tudo foi reciclado, é que tudo aquilo já foi feito, toda aquela exploração. Entretanto, esse pedaço da história que não pode ser esquecido foi prolongado de alguma maneira, e há agora, por exemplo, as explorações feitas pelas empresas. Ao fazer uma montagem se referindo ao passado, nos faz perguntar como quebrar o ciclo. Em Amazônia, a solução que encontramos foi: "Vamos nos matar todos, porque quem está errado é o homem". E essa é a minha mea culpa, com ser humano. Nós, artistas, temos responsabilidade de pelo menos ir à procura para saber como foi o passado. E termos esse conhecimento é a única redenção que posso fazer; e, como artista, propor o extermínio da humanidade. A arte não é para dar lições às pessoas; a arte serve para pôr a nu a realidade. Não é para indicar um caminho, mas apontar para que as pessoas sigam outro caminho que não esse autômato.
CONTINENTEO elenco do espetáculo une traços de miscigenação. Como as histórias dessas pessoas também influenciaram na construção do texto, no que diz respeito à questão de colonização? JORGE ANDRADE Este é o mesmo elenco de Moçambique. E ele foi escolhido assim porque a história se passava em Moçambique. Nós jogávamos um pouco com ideia de aparência, de preconceito: "Basta ser preto para se passar como moçambicano", mas só um deles é moçambicano (Bruno Huca). Amazônia queríamos fazer com o mesmo elenco, porque queríamos que fosse não só uma representação do colono branco – apesar disso ser grande parte do texto – mas que com os dos nossos corpos houvesse uma variedade. Por outro lado, queríamos por em evidência a ausência dos povos originários da Amazônia, que infelizmente continuam sendo os últimos a falar. É mais representativo da nossa realidade, o extermínio do povo indígena. Em termos do processo de trabalho, ele foi pensado como um grupo – ao contrário de Moçambique, que era mais eu a inventar uma história. Quando nós estivemos em residência no Brasil e no Acre [em 2017, o grupo passou um mês na região Norte do Brasil], rendemos muito material. E cada ator ficou com livros, filmes, e depois partilhávamos informações entre todos. O texto surgiu daí. Não de uma filtragem minha, mas dos artistas. E eu então escrevia o texto a partir do que achávamos importante. Isso diz que cada ator tem sua história e passado, e cada um achou uma coisa importante sobre material.
CONTINENTEE, sendo assim, o que Amazônia acrescenta na sua revisão de si? JORGE ANDRADE Acaba sempre sendo uma frustração. Porque aquilo que me acrescenta é a percepção de que sei muito pouco sobre o passado. Mas de alguma forma Moçambique indicou caminho para iniciar um novo espetáculo, o próximo depois de Amazônia, e que será sobre dinheiro. E queria fazer um espécie de remake de Dinastia [série norte-americana da década de 1980 sobre a história do empresário petroleiro Blake Carringnon e sua família problemática], mas tudo com cenários feitos com dinheiro. As notas tem sempre paisagem dos países, e queria fazer vertigem na volta do mundo, com cenografia de dinheiro. Uma provocação com algo bonito como dinheiro, mas a narrativa ser atroz. A solução de fato é saber mais sobre o passado para perspectivar um futuro mais comum.
CONTINENTEA ironia e o sarcasmo são marcas bem comuns no seu teatro. Foi assim em Protocolo [apresentado no Trema! Festival, no Recife, em 2015], e é assim em Moçambique e em Amazônia. É um humor bem ferino. E me parece ser uma forma que você passou a usar para olhar as situações absurdas. JORGE ANDRADE Eu sou assim como pessoa. Fui pai muito recentemente, então fiquei mais doce [risos]. É a minha forma de lidar com esses assuntos. Eu compreendo quando as pessoas dizem: "É um assunto sério para brincar dessa maneira". Eu gosto de dizer que meus espetáculos são um ovni [objeto voador não identificado] no quintal das pessoas: causa incômodo. E isso é porque se eu fosse colocar na primeira pessoa [do singular, o "eu"] os eventos, ficava mais perto de uma teatro didático, que não quero seguir. (...) Não estou ali para dar aulas; estou para causar incômodo. Não é falta de respeito com as vítimas; é uma homenagem. Se eu lido com forma ácida e irônica, é que os eventos são surreais. Se há coisas no termo da sintaxe que apontam para ironia, é mesmo para favorecer um distanciamento. Eu não gosto de ser catártico; lido com entranhas de forma racional, não de forma irracional. O humor para fazer rir é preciso se conhecer um certo número de elementos. Obviamente não é rir e caminhar para frente. Seria maravilhoso que algumas coisas deixassem de ser piada – como as "piadas" racistas e homofóbicas deixassem de ser "piadas". Não, meu teatro não é um riso para esquecer.