Cobertura

Paisagens devastadas e devastadoras

Traçando realidades distópicas de nosso tempo, festival apostou em discursos de filmes antigos e atuais para falar do Brasil

TEXTO Alan Campos

12 de Novembro de 2018

Em 'Amor e desamor', um homem branco, rico e entediado sonha em deixar Brasília

Em 'Amor e desamor', um homem branco, rico e entediado sonha em deixar Brasília

Foto Reprodução

[conteúdo exclusivo Continente Online | nov 2018]

Como parte de uma recorrência
do Janela Internacional de Cinema do Recife em todo ano recuperar filmes desconhecidos do público, a Mostra Brasil Distópico foi composta por quatro obras sobre previsões catastróficas, fins desoladores e recomeços idílicos – Abrigo nuclear (dir. Roberto Pires, 1981), Brasília, capital do século (dir. Gerson Tavares, 1959), Amor e desamor (dir. Gerson Tavares, 1966) e Conversas no Maranhão (dir. Andrea Tonacci, 1983).

Em Abrigo nuclear, o fim já chegou e o planeta se tornou inóspito para seres humanos. Estes vivem em abrigos subterrâneos acreditando que sempre foi dessa maneira, pois a verdade é controlada, sendo privilégio de poucos (uma nova versão para o Mito da Caverna, de Platão). O filme desloca-se de um contexto particular para um comentário planetário, anticapitalista, acerca dos danos que o homem faz ao meio ambiente. Vestido em um traje espacial à la David Bowie em O homem que caiu na Terra (dir. Nicholas Roeg, 1976), Lat (Roberto Pires) vaga em seu veículo enferrujado e precário pelas areia e praias em busca de indícios de que o planeta pode suportar a vida humana.

Parte sci-fi aromatizado com pastiches europeus e norte-americanos, parte cinema da Boca do Lixo em sua precariedade estética, o filme sobrevive emaranhado de lugares, pois, no futuro, o Brasil é controlado por uma mulher baiana, Avo (Conceição Senna) – chefe da colônia subterrânea –, enquanto seu herói é demarcado por um wannabe europeu, ocasionando em uma encenação que não se leva tanto a sério e parece ausente de qualquer traço de dramaticidade. Personagens jogados no deserto, destinados a conflitos cinematográficos (o local e o global) que não se anulam, mas que correspondem a um caso curioso de tentativa séria – será? – de uma ficção científica de gênero com roupagem internacional.

Na segunda sessão, composta pelos dois filmes de Gerson Tavares, tivemos Brasília como distopia. No curta, Brasília, capital do século, a cidade está em processo de construção, sua paisagem mais remete a uma cidade fantasma de bonecos manequins que tanto rodeiam o imaginário cinquentista, como testes para bomba atômica. As imagens de Brasília, nesse caso, marcam um início, porém sua aridez e desolação emanam uma sensação de fim, algo que é evocado sete anos mais tarde pelo longa Amor e desamor. Passando-se inteiramente em menos de 24 horas, o filme evoca a presença da capital brasileira como catalisadora da impossibilidade de uma relação íntima se desenvolver. Nela, um homem branco, rico e entediado (Leonardo Villar) sonha em deixar Brasília e ater laços que considere mais “reais”. Como não consegue, passa a noite com a loira rica e entediada (Leina Krespi) em uma casa luxuosa com vista privilegiada para a cidade. O homem ora busca sexo fácil, ora uma redenção na forma do amor. Em meio a conversas existenciais – que não chegam a lugar nenhum –, o casal bebe uísque, discute, faz amor e dorme. O dia nasce e com ele, a impossibilidade de eles escaparem de Brasília. Cidade-afeto, cidade que aprisiona, condicionando-os a uma jogo desgastante em busca de controle emocional pelo outro.



O programa fechou com Conversas no Maranhão (acima), obra filmada durante cinco anos de encontros com os indígenas Canela Apãniekra, em meio a diálogos sobre a demarcação de suas terras em um Brasil de poucos homens brancos, voltado ao cotidiano de seus moradores mais antigos. Apesar de algumas passagens pouco compreensíveis (não havia legenda), o filme se atém ao lado dos povos originários, funcionando enquanto registro de suas atividades e interpretações do Brasil, do cristianismo e do que o futuro traz. Em terra onde presidente eleito promete nenhum centímetro de terra aos indígenas, um filme como o de Tonacci nos lembra que a resistência (persistência) indígena é uma condição na história deste país. Seu mérito consiste em minar os discursos sobre os índios em prol do arrebatamento de um outro cotidiano, uma outra maneira de existir e pensar. Porém, ao optar por uma visão quase etnográfica desse espaço geográfico, não há dúvidas de que o discurso engajado pelo diretor é o de apresentar tais vivências, construir memória e falar dessa distopia, que apesar de ser delimitada entre 1977-83, intui-se que ela não cessou de se atualizar.

Todos os filmes do programa encontram na paisagem suas distopias, seus terrenos ameaçadores, mostrando seus personagens como sendo produtos diretos delas. Há uma linha que atravessa o programa, fazendo com que os filmes – colocados lado a lado – elucidem uma estética que apresenta seres humanos como espelhos de seus espaços. Seja a Brasília onde nada cresce, sejam os povos indígenas que lutam para ser vistos como dignos de suas paisagens, passando pela perspectiva de recomeço em um planeta devastado por radiação. Paisagens devastadas e devastadoras.

Me parece que o Janela os distinguiu por estarem vinculados a um passado cinematográfico do Brasil – portanto, merecedores de serem recuperados – e não por uma divisão temática, tendo em vista que muitos filmes da programação desse ano parecem despontar para afetos similares. Em Los silencios (dir. Beatriz Seigner, 2018), há um diálogo entre suas paisagens de recomeço com Brasília, cidade do futuro. Assim como o espaço claustrofóbico de Inferninho (dir. Guto Parente, Pedro Diogenes, 2018) faz emanar a claustrofobia de um bunker de resistência, onde seus personagens marginalizados parecem existir no último refúgio do Brasil. Portanto, entre mostras específicas e outras sessões, o Janela apresentou que a distopia, o medo do futuro e a violência do presente são inerentes ao cinema brasileiro. Cinema como agenciador de um imaginário nacional que acredita que distopia não é uma questão do futuro, mas de um presente que se vê enquanto fim.

ALAN CAMPOS é formado em Cinema pela UFPE e atualmente está concluindo seu mestrado em Comunicação pela mesma universidade. Já atuou como crítico em alguns sites e blogs e participou de algumas produções audiovisuais locais.

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