Cobertura

O percurso imprevisível de Zama

Ambientado no século XVII, quarto longa-metragem de Lucrecia Martel faz abertura do X Janela Internacional de Cinema do Recife, com presença da diretora argentina

TEXTO Luciana Veras

03 de Novembro de 2017

Filme é uma coprodução Argentina/Brasil com participação de outros oito países

Filme é uma coprodução Argentina/Brasil com participação de outros oito países

FOTO Divulgação

Zama, filme que abre oficialmente a X Janela Internacional de Cinema do Recife, nesta sexta (3/11), às 21h, no Cinema São Luiz, é uma coprodução Argentina/Brasil com participação de outros oito países, incluindo a Espanha, por meio da companhia fundada pelos irmãos Agustin e Pedro Almodóvar. Tem o selo da Bananeira Filmes, de Vania Catani, produtora brasileira de filmes como Narradores de Javé (2003), de Eliane Caffé, e A festa da menina morta (2008), de Matheus Nachtergaele, e também de outras parcerias com os vizinhos portenhos, a exemplo de Jauja (2014), de Lisandro Alonso.

Há outros predicados relevantes: a fotografia é do português Rui Poças, o mesmo de Tabu (2012), de Miguel Gomes, e  O ornitólogo (2016), de João Pedro Rodrigues, e a direção de arte é da pernambucana Renata Pinheiro, uma realizadora que emprega o mesmo rigor e a mesma criatividade nos filmes que comanda (vide Açúcar, que dirige ao lado do marido e parceiro Sérgio Oliveira, a ser exibido na segunda, na Janela) e naqueles que embala em com seu olhar preciso para a cenografia. 

E tudo que se vê na tela resulta da adaptação cinematográfica para o romance homônimo do argentino Antonio Di Benedetto, publicado em 1956 e lançado, no Brasil, em 2014, pela editora Globo. São, de fato, muitos aspectos dignos de nota em Zama. O principal deles, contudo, é que se trata do quarto longa-metragem de Lucrecia Martel. E que, como um luxuoso cartão de visitas desta cineasta argentina e um presente para o público recifense, será apresentado em uma sessão com a presença da diretora.

Zama teve estreia mundial em setembro, no Festival de Veneza. Em seguida, foi ao Festival do Rio e, depois, à 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Lucrecia esteve na capital carioca, não foi a São Paulo e chega a Pernambuco um ano depois de cancelar, de última hora, a sua participação na IX Janela. A apreciação de cinéfilxs por seu trabalho é inversamente proporcional à quantidade de obras em sua filmografia –  são três longas ficcionais, O pântano (2001), A menina santa (2004) e A mulher sem cabeça (2008). 

Pois Zama soma-se a essa tríade para, de uma certa forma, chacoalhar certezas e percepções acerca do cinema de Lucrecia Martel. O filme traz diversos ineditismos. É a primeira vez em que ela opta por trabalhar com uma história que não tenha escrito, a primeira vez em que se afasta do contemporâneo e ambienta seu filme num tempo passado, já longínquo, e a primeira vez em que sai da esfera urbana. Zama, o personagem-título, defendido pelo ator mexicano Daniel Giménez Cacho, é um funcionário da Coroa Espanhola que, século XVII, vive em alguma das terras – uma encruzilhada entre a Argentina e o Paraguai - cindidas entre os que lá chegaram sob pretexto de colonização e os “selvagens” que são, na verdade, os povos originários. 

E Zama está isolado. A sequência de abertura, aliás, denota isso com maestria: na beira de um rio, ele mira o horizonte até ser atraído pela algaravia de mulheres que se banham, entre risos, sem pudor. Zama olha, é descoberto e chamado de “voyeur”. Não tarda para o espectador perceber que Zama, além de isolado, está deslocado. Ele anseia por retornar à cidade onde estão sua mulher e os filhos que nasceram e cresceram quando ele já havia saído em missão para a Coroa. Há a promessa de que o governador, logo,  logo, sancionará sua partida, e Zama, de fato, chega a cobrar isso do encarregado de representar a Espanha.

Em vão. Zama não vai embora e não é exagero pensar nele como uma espécie de alegoria sul-americana para Joseph K., o protagonista de O processo, livro de Franz Kafka que evidencia o sofrimento de um homem acusado de um crime que não cometeu e condenado a penar em um processo do qual não faz a menor ideia de como se livrar. O tempo passa, em seu corpo operam mudanças físicas e ele mesmo parece se abrir para as circunstâncias ainda mais exóticas que o cercam – a exemplo de uma relação improvável com Vicuña Porto, um temível bandido com fama de violador de mulheres (Nachtergaele, em atuação iluminada). 

Zama, por fim, preconiza a indecisão e a ruptura: ficar à espera da Coroa ou partir em busca de algo que talvez ele nem saiba o que é? Ocorre que a vida, e à sua existência entre negros e índios, colonizados e colonizadores assistimos como voyeurs, nem sempre vai trilhar o caminho mais óbvio. “Não se trata apenas de uma indecisão entre duas situações distintas ou opostas, mas simultâneas. As situações sucessivas, cada uma das quais já é equívoca por si mesma, vão por sua vez formar umas com as outras, e com os instantes críticos que se suscitam, uma linha quebrada de percurso imprevisível, embora necessário e rigoroso”, escreve Gilles Deleuze em Cinema – A imagem-movimento. Zama, o filme, percorre o mesmo percurso imprevisível do seu protagonista. E dele ficam suas imagens, a paisagem corporal de um homem aferrado às suas convicções e das pessoas com quem se mistura e a condução hipnótica de uma diretora mais próxima da imprevisibilidade do que das convenções. 

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