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Milton Nascimento em louvor aos indígenas

Voltando ao estado onde foi rebatizado pelos povos originários como "semente ancestral que germina na terra", o artista fez, em Bonito, seu mais recente show para a plateia da Praça da Liberdade

TEXTO ERIKA MUNIZ, DE BONITO (MS)*

29 de Julho de 2018

Milton Nascimento no show 'Semente da Terra', especial para os bonitenses

Milton Nascimento no show 'Semente da Terra', especial para os bonitenses

Foto André Patroni/Divulgação

Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais com as coisas do momento. (…) Os Yanomami querem defender sua terra porque desejam continuar vivendo nela como antigamente. Assim seja! Se eles não a protegerem, seus filhos não terão lugar para viver felizes. Vão pensar que a seus pais de fato faltava inteligência, já que só terão deixado para eles uma terra nua e queimada, impregnada de fumaças de epidemia e cortada por rios de águas sujas! Trecho de A queda do céu, palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert

Se temas como escassez de água, sustentabilidade e alternativas para o lixo conduzem a linha de cidadania cultural deste 19º Festival de Inverno de Bonito, como sugeriu a Secretaria de Cultura e Cidadania do Mato Grosso do Sul, é impossível dissociá-los das questões indígenas, principalmente num estado que ainda abarca uma das maiores concentrações populacionais dos verdadeiros donos da terra brasileira. A cosmologia dos povos originários está intrinsecamente associada à relação com a terra (tekoha), a flora, a fauna e os mananciais, que abrigam milhares de espécies, como é o caso de Bonito. Os pensamentos indígenas, por tradição, tendem a seguir caminhos outros que o das mercadorias.

Na terceira e penúltima noite do festival sul-mato-grossense, sábado (28/7), o palco principal da Praça da Liberdade serviu de espaço para questões de ordem social, política e ambiental ecoadas pela voz de um mestre: Milton Nascimento e seu concerto Semente da Terra. “Esse show foi inspirado nos Guarani-Kaiowá, tem tudo a ver com o Mato Grosso do Sul. Para mim, a gente estava esperando Bonito há muito tempo. Estou com o coração batendo forte”, disse o artista em entrevista. Trazer o espetáculo para terras sul-mato-grossenses – apesar de não ser a primeira vez no estado, foi a primeira em Bonito –, tem uma importância distinta de outros locais. O artista nascido no Rio, mas criado em Três Pontas, município mineiro, já havia levado Semente da Terra a Corumbá e Campo Grande.

Com tom político, o título do espetáculo surge do nome de batismo com que a etnia presentou Milton, que guarda fortes laços com diversos povos. “Desde que eu era rapazinho, sempre fui muito chegado aos indígenas, uma coisa que continua até hoje. Em 2010, em Campo Grande, fiz um show com várias nações indígenas e quando vejo, chegaram no meu show com uma foto minha. Nunca tinham ouvido falar de mim. Subiram no camarim, ficaram discutindo várias horas. Antes de eu fazer o bis, o chefe deles pintou minha cara de preto e os outros vieram: eles falaram que, a partir daquele dia, eu me chamaria Ava Nheyeyru Iyi Yvy Renhoi [em português, “semente ancestral que germina na terra”].

“Uma época em que fui ao Acre conhecer os Ashaninka. Aquilo foi uma coisa tão forte, que não tenho nem jeito de falar. Fiquei na casa do cacique dos Ashaninka. A gente estava vindo pelo rio Juruá, quando vê vem um menino, pulou no rio, atravessou o rio e eu falei: ‘Meu Deus! Como pode uma coisa dessa? Um menininho!’ Fui para a casa do cacique. Uma mão aqui atrás [aponta pro ombro esquerdo]. Era o mesmo menino com um coco na mão, ele perguntou: ‘Quer?’. Eu falei: ‘Quero!’. Fiz uma música para ele. Quando a gente falou com ele mais tarde, ele disse que o beija-flor é o pássaro que o rege. Hoje ele é o cacique”, contou à Continente o artista, que até Bonito, não havia apresentado o show Semente da Terra em um espaço aberto, só em teatro, neste caso com o público da cidade sentado ao ar livre.


Público na Praça da Liberdade, em Bonito. Foto: Eduardo Medeiros/Divulgação

O clima menos frio que nas noites anteriores do evento e a programação destinada às artes cênicas contribuíram para que o público se ocupasse não apenas da atração principal, mas fosse mais cedo à Praça da Liberdade, uma espécie de coração do festival bonitense. Lá pelas 18h, a companhia gaúcha De Pernas pro Ar chamava a atenção com a instalação-espetáculo Automákina, universo deslizante.

Com sete metros de altura e confeccionada com metais e materiais diversos, a apresentação se utiliza da linguagem teatral e circense para fazer um convite: refletir sobre o tempo e o espaço público com muita música. É de prender a atenção de crianças e adultos, como visto durante esse sábado (28/7). Logo em seguida, desta vez, no próprio palco destinado às artes cênicas, situado mais à direita do principal, a cidade de Curitiba foi representada pelo Balé Teatro Guaíra com o espetáculo Carmen.


A instalação-espetáculo
Automákina, universo deslizante.
Foto: André Patroni/Divulgação

A itinerância das pessoas de um canto a outro do local dialoga com a proposta de convivência e ocupação do espaço público do festival sugerida por Athayde Nery, secretário de Cultura e Cidadania do estado. No entanto, a costura com a participação de um maior número de companhias e espetáculos encenados pela população local seria interessante. Como nos dias anteriores, o público, formado por diversas gerações, aguardava o redline Semente da Terra visitando outros espaços disponibilizados pelo evento.

A apresentação de Milton Nascimento teve início com um repertório carregado de canções que são parte da história da música brasileira e ilustram outros períodos políticos do Brasil, a exemplo de Coração de estudante, considerada hino da campanha das Diretas já e a qual Milton dedicou à vereadora carioca Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, brutalmente assassinados este ano. Houve gritos de “Marielle Presente” na plateia. Em 2017, Travessia (1967) completou cinco décadas e foi com a música que dá título ao álbum que a apresentação teve início; no entanto, cantada inicialmente pela cantora mineira Bárbara Barcellos. Ela, que é uma “representante direta dos Guarani-Kaiowá”, como disse Milton, era a única mulher em cena, sentada do lado esquerdo do palco.


Bárbara Barcellos (dir.), descendente direta dos Guarani-Kaiowá, é a única mulher em cena. Foto: Eduardo Medeiros/Divulgação

Algo simbólico a um show dedicado ao povo indígena. Desde o início com a própria Travessia – composição de Milton e Fernando Brant, seu parceiro que homenageou diversas vezes –, a artista chamou a atenção e os aplausos do público na Praça da Liberdade. Entre versos da poeta Adélia Prado, homenagem a Naná Vasconcellos, seu amigo e parceiro de longa data. Aliás, para Milton, a amizade é o mais importante. “Tudo o que aconteceu na minha vida é por causa de amigos”, disse durante show emendando com Nos bailes da vida.

Apesar de demonstrar descrença quanto ao futuro próximo da política no Brasil, ao ser questionado sobre o tom de esperança que muitas de suas músicas têm, como Canção da América, ele disse: “Como eu digo nos shows. Este show não tem todas as músicas, mas fiz de coração e que o povo continue sonhando”. E que a gente siga escutando Milton.

*A repórter viajou a Bonito a convite da Secretaria de Cultura e Cidadania do Governo do Mato Grosso do Sul

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