O Fasp surge justamente para celebrar essa peculiaridade local. Tanto é que as barreiras terrestres entre Corumbá e Puerto Quijarro, onde também há programação, estão liberadas até domingo (27/5), quando o festival chega ao fim. “Paraguai é Corumbá, e Corumbá é Paraguai também. Nos integramos através da cultura. Não pelo que definiram os políticos em algum momento da história. Estamos nos expressando e a arte é significativa para essa integração da América do Sul”, disse o poeta, escritor e jornalista paraguaio Mário Rubén Alvarez, ao que emendou o secretário estadual de Cultura e Cidadania do MS, Athayde Nery: “Fronteiras são geográficas, não humanas”.
As falas se deram no contexto de uma palestra de Mário Rubén, na quinta pela manhã (25/5), sobre um dos homenageados desta edição do festival: o músico José Asunción Flores (1904-1972), paraguaio criador da guarânia (homenagem aos guaranis), nos anos 1920. Trata-se de um gênero musical melancólico e hoje profundamente arraigado à expressão cultural do nosso país vizinho, tendo se popularizado na América do Sul e sido gravado, inclusive, pelo brasileiro Moacir Franco.
Aliás, a presença de músicos e canções paraguaias figura como parte intrínseca desta terra “que um dia foi Paraguai”, como disse o poeta Paulinho Simões citado no prólogo do livro Prata da casa, do jornalista e músico Rodrigo Teixeira. Profundo conhecedor da música do estado, Rodrigo foi um dos responsáveis pela curadoria do festival e ressalta essa ligação do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, embora pondere existir hoje uma menor presença de músicos paraguaios na capital Campo Grande. “De toda forma, é difícil separar isso, porque já está no nosso DNA musical e cultural”, afirmou Rodrigo à Continente.
Inaugurando a programação do Palco Rio Paraguai, no porto de Corumbá, o instrumentista Marcos Assunção, de Campo Grande, deu uma demonstração bonita de como a noção de “fronteiriço” vibra por aqui e nas cordas de sua viola. Por sinal, um instrumento personalizado, de dois braços, que mandou confeccionar na intenção de sintetizar a sonoridade da guitarra semiacústica, da viola caipira e do violão brasileiro. Com instrumento, compôs músicas como a Polca pantaneira, que apresentou ao público no cair do sol, mencionando sua cultura fronteiriça, sua alma híbrida por cultura e cultivo, pois a polca, sendo um gênero europeu, chegou ao Paraguai e se espalhou por estas terras.
Uma das figuras-síntese desse espírito da região esteve no palco principal na noite de abertura (quinta, 24/5). Entrou animado, imponente, apresentando sua harpa como “meu ‘pequeno’ instrumento que gostaria de chamar de mundo”. Fabio Kaida veio de Campo Grande e é considerado um entusiasta e difusor da música paraguaia, embora tenha feito questão de homenagear a Bolívia, o Chile e a Colômbia em seu show, além dos ritmos caipiras de “raiz” que costuram a música sul-mato-grossense às de fronteira. Cantou em português, em castelhano e, com alma de roqueiro, evocou até o parceiro musical Michel Teló (conhecido pelo sertanejo universitário). A harpa cheia de reinvenções, acompanhada de baixo, bateria e violão dos demais integrantes da banda, agradou ao público que aguardava, em seguida, o show de Martinho da Vila. “Cabeludooo! Rapunzel, toca mais uma”, gritou um homem da plateia, referindo-se aos cabelos de Fabio Kaida, com cumprimento até o joelho.
Pouco mais de uma hora antes do músico subir ao palco, Elaine Ortiz assistia à solenidade oficial de abertura do festival, com a presença de políticos de várias partes do continente - do ministro de Cultura do Paraguai, Fernando Griffith, ao ex-secretário de Cultura de Medellín, Jorge Melguizo, presenças importantes nesta edição. Elaine é herdeira de uma das manifestações populares de Corumbá, o Cortejo de Andores do Banho de São João, que também se fez presente na abertura. Segurava seu andor todo enfeitado, em homenagem ao santo, enquanto conversava com a revista. Contou ter sido o "banho" uma festa criada por sua avó há mais de 80 anos, quando o filho dela (o tio de Elaine), encontrava-se enfermo. A senhora, então, pediu a melhora e o “santo milagreiro” concedeu, ao que ela retribuiu em forma de um ritual sacro e profano.
De lá para cá, a festa teve continuidade, mesclando procissão, música e comidas típicas juninas na noite de São João (de 23 para 24 de junho), que também coincide com o início da diminuição do nível das águas do Rio Paraguai na cidade e para onde o cortejo se dirige na intenção de banhar os andores. Ela contou que esta foi a primeira vez deles se apresentarem no festival com a tradição, atualmente em luta para se transformar em Patrimônio Imaterial Brasileiro – hoje, são mais de 200 andores cultivados por diferentes famílias corumbaenses. Na curta apresentação, deu para sentir o propósito e ver a beleza de expressões espontâneas como esta.
Interessante perceber como o Fasp busca tratar com seriedade a importância da produção e da gestão cultural na sua potência crítica e construtiva. Está trazendo artistas e pensadores que contribuem nesse sentido, a despeito dos percalços, velhos companheiros dos festivais de cultura – já não há novidade nisso. Como o restante do país, enfrenta-se aqui problemas com a situação brasileira deste momento. Falta combustível (na Bolívia também, porque depende dos brasileiros na fronteira) e houve cancelamento de atração. Mas, de forma geral, o clima é de paz e celebração à cultura pantaneira e sul-americana. Além disso, encontramos um povo receptivo e uma cidade bem-cuidada. E somando-se a tudo isso, encontramos verdade na realização do festival, que atualmente prega a diversidade em seu discurso e a realiza na prática – com a ressalva de que a participação dos indígenas e das mulheres poderia ser bem maior e melhor.
OLÍVIA MINDÊLO é jornalista e editora da Continente Online.
*A repórter viajou a Corumbá (MS) a convite da Secretaria de Cultura e Cidadania do Governo do Mato Grosso do Sul