Cobertura

"Menos glamour, mais cinema"

'Cine Ceará' alcançou equilíbrio de conteúdo e contemplou questões pertinentes da contemporaneidade, mas ainda transparece contradições, principalmente por adotar um formato solene

TEXTO Júlio Cavani

14 de Agosto de 2017

O Cinema São Luiz, de Fortaleza, não chegou a lotar em nenhuma noite, ao contrário do Dragão do Mar às tardes

O Cinema São Luiz, de Fortaleza, não chegou a lotar em nenhuma noite, ao contrário do Dragão do Mar às tardes

Foto Rogerio Resende/Divulgação

Ao longo dos últimos 27 anos, as formas de produção e circulação de filmes se transformaram no mundo. No Brasil, multiplicaram-se e diversificaram-se as mostras de cinema. O Cine Ceará*, mais antigo festival do Nordeste, precisou passar por reformulações para tentar manter a relevância. Em 2017, na edição que se encerrou na sexta passada (11/8), a programação alcançou um bom equilíbrio de conteúdo e contemplou questões pertinentes da contemporaneidade (especialmente o tema da homoafetividade), mas o evento ainda transparece contradições, principalmente por adotar um formato solene em busca de uma questionável aparência de luxo e de certa megalomania.

Dos sete longas-metragens que participaram da mostra competitiva do 27º Cine Ceará, quatro eram protagonizados por personagens homossexuais ou transsexuais. A identidade LGBT, além disso, foi contemplada de forma aparentemente natural e despretensiosa, sem que fosse necessário enfatizar essa opção da curadoria (assinada por Rodrigo Fonseca, Wolney Oliveira e Margarita Hernández). Essa característica parecia estar nos filmes espontaneamente, como um reflexo da sociedade, e não como a delimitação de algum tipo de "edição especial temática" (o último Festival de Vitória, por exemplo, foi bastante criticado ao criar uma mostra especial para a diversidade sexual, separada das demais mostras).

Em relação ao contexto do cinema internacional, o Cine Ceará funcionou para trazer ao Brasil filmes latino-americanos que se destacaram em alguns dos principais festivais do mundo (honrando o seu subtítulo de Festival Ibero-americano de Cinema). Estiveram no evento, por exemplo, produções premiadas em Berlim (o chileno Uma mulher fantástica), Roterdã (o dominicano O homem que cuida) e Tribeca (o argentino Ninguém está olhando).

O cinema nacional, por outro lado, não estava bem-representado. Em parte, isso ocorre porque os realizadores preferem estrear os filmes em outros festivais mais prestigiados e menos contraditórios. O Cine Ceará optou por privilegiar longas brasileiros totalmente inéditos e conseguiu dois. Um deles, Malasartes e o duelo com a morte, foi incluído apenas porque o ator principal (Jesuíta Barbosa) começou a carreira em Fortaleza. A escolha, portanto, teve uma intenção mais voltada para a cerimônia de apresentação, com a presença pessoal do artista, do que para a obra em si. Esse tipo de decisão já foi alvo de protestos, por exemplo, no Cine PE, no Recife, quando cineastas ergueram uma faixa com a frase: "Menos glamour, mais cinema".

Como resultado, Malasartes ficou deslocado em meio à seleção. Além disso, é um produto claramente voltado para o público infanto-juvenil, mas foi exibido no Cine Ceará em uma sessão proibida para menores de 18 anos, na mesma de um curta pornográfico (Vênus: Filó, a fadinha lésbica). Para os responsáveis pelo filme (com efeitos especiais inspirados em Harry Potter, Piratas do Caribe e O senhor dos anéis), a participação pode ter sido interessante, pelo menos, como reforço grátis para a campanha de divulgação do lançamento no circuito de cinemas, que ocorreu quatro dias depois (mas isso não acrescentou nada ao festival).

Um bom festival de cinema tem que valorizar, sobretudo, a apresentação de filmes. Na última sexta (11/8), entretanto, o Cine Ceará contrariou essa lógica também na noite de encerramento. A solenidade de premiação durou uma hora e meia, com a participação de políticos que fizeram discursos no microfone diante de uma plateia de cerca de 400 espectadores. Logo em seguida, às 22h, apenas 30 pessoas ficaram para ver o genial documentário O botão de pérola, do consagrado cineasta chileno Patrício Guzmán (simplesmente o melhor filme da programação). Ou seja, naquela noite, houve menos valorização real do cinema do que uma tentativa frustrada de glamour. Afinal, naquele contexto, ver filmes deveria ser mais importante do que acompanhar discursos e formalidades.

O Cinema São Luiz não lotou em nenhuma noite. Na penúltima sessão, estudantes de uma escola pública (fardados) foram levados ao festival de ônibus e a plateia ficou melhor preenchida, mas eles tiveram que abandonar a sala no meio do filme Últimos dias em Havana por conta do horário. Durante a tarde, contudo, uma mostra de curtas cearenses era exibida no espaço cultural Dragão do Mar, sempre lotada, com ingressos esgotados e pessoas do lado de fora. Essa diferença de público demonstra que há algo a ser invertido na lógica da programação.

Talvez para agradar apoiadores e atrair patrocinadores, o Cine Ceará ainda sofre daquela tentativa de ser chique correndo o risco de ser brega. Os holofotes na fachada do Cinema São Luiz são um indício. O cartaz deste ano foi mais publicitário do que artístico. O design das peças gráficas fez referência a um dos lustres do salão de entrada, mas as belas escadarias do espaço foram poluídas pela presença de banners de propaganda – ficou feio. "O maior festival de cinema do Norte-Nordeste" era uma frase que aparecia na tela todas as noites, apesar de outros eventos, como o Janela Internacional de Cinema do Recife e o Panorama de Salvador, atualmente apresentarem números maiores de filmes e de público.

Apesar do momento atual vivido pelo Brasil, o Cine Ceará teve poucas manifestações de ativismo (exceto por alguns "Fora Temer" e por uma denúncia sobre a situação cultural do Rio de Janeiro, feita pela curta-metragista carioca Mariana Kaufman). Sérgio Sá Leitão, novo ministro da Cultura, esteve indiretamente presente ao participar de um seminário da Associação de Produtores e Cineastas do Centro-Oeste, Norte, Nordeste (Conne), realizado no mesmo hotel onde estavam hospedados os convidados do festival. A passagem dele pelo evento transcorreu sem turbulências. 

A apatia política também foi verificada em relação a uma polêmica municipal. Todas as noites, antes dos filmes, eram exibidos trabalhos do projeto Curta-Cocó, um concurso de vídeos feitos com celulares inspirados no parque ecológico do Cocó, que está em processo de demarcação. Ninguém, entretanto, transpareceu a existência de uma série de protestos em Fortaleza contra a forma como essa questão foi negociada com construtoras e empreiteiras (uma espécie de movimento Ocupe Estelita cearense, chamado Frente Cocó).

JÚLIO CAVANI, jornalista, crítico e realizador. Dirigiu os curtas Deixem Diana em paz (2013) e História natural (2014). Atualmente, é também curador do festival Animage.

* O jornalista viajou a convite do festival, realizado de 5 a 11 de agosto em Fortaleza (CE).

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