No último sábado (23/11), havia uma expectativa no ar para a primeira noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e razões não faltavam. Na noite anterior, quando da exibição hors concours de O traidor (uma coprodução Itália, Brasil, França e Alemanha dirigida pelo italiano Marco Bellocchio), a leitura de uma carta pelo ator Marcelo Pelucio, em nome do Movimento Cultural do Distrito Federal e contra os desmontes em curso na cultura, gerou protestos contra a censura – de fato, ao cortar o som do microfone, o festival assumiu uma postura autoritária frente àquela situação, em atitude combatida com fervor pela plateia. O que se esperaria, então, da exibição de Piedade (Brasil, 2019), o novo filme de Cláudio Assis?
Porque a relação estabelecida entre o realizador pernambucano e o Festival de Brasília é tão epidérmica e intensa quanto a que se desenha entre seus personagens neste quinto longa-metragem de sua carreira. Em 2002, Amarelo manga foi exibido aqui e acolhido com ardência e entusiasmo. Cláudio saiu da capital federal com o prêmio de melhor filme, o que se repetiria quatro anos depois com Baixio das bestas e, em 2016, com Big Jato. Ou seja, natural que existisse uma ansiedade quase palpável no ar, perceptível no modo como o diretor e seu numeroso elenco se preparavam para a noite e também nas mais de 800 pessoas que compareceram ao Cine Brasília para ver Piedade, uma produção da República Pureza, de Marcello Ludwig Maia, parceiro do diretor deste Amarelo manga, e da Perdidas Ilusões, de Cláudio e Camila Valença. A espera pelo reencontro do cinema dele com esse festival era como um elemento cinematográfico a mais.
Piedade foi apresentado por um diretor emocionado. “Um filme que deu trabalho, deu prazer, deu sensação...”, assim disse Cláudio, e “no momento que estamos passando, com a invasão do petróleo nas praias do Nordeste”. Pois é: rodada em janeiro de 2017, quase três anos atrás, a obra se revela espantosamente atual, tanto porque a fictícia cidade de Piedade é espelho e sombra do Recife, metrópole cindida pelas desigualdades do capital, como porque, na trama, o mar é território interditado. As razões: ataques de tubarão e descontrole ambiental causado pela ação da Petrogreen. Por isso, não se pode mergulhar no oceano que banha a Praia da Saudade, paisagem crucial para o desenvolvimento da narrativa.
É lá onde moram Carminha (Fernanda Montenegro) e seu filho Omar (Irandhir Santos), com o sobrinho deste, Ramsés (Francisco de Assis Moraes, filho do cineasta e da diretora-assistente Júlia Moraes), e é lá onde ainda se mantém um bar de delícias marinhas agora não mais pescadas, e sim compradas. E é lá para ainda onde converge o interesse da companhia petrolífera representada pelo seu executivo Aurélio (Matheus Nachtergaele), ícone neoliberal por excelência com seu figurino meio yuppie, meio clean. A Petrogreen quer comprar a área e indenizar os moradores. Omar não aceita a proposta e assim Aurélio busca outro caminho para impor a vontade do dinheiro: ele descobre um vínculo entre a família de Carminha e Sandro (Cauã Reymond), dono de um cinema pornô no centro de Piedade, pai de Marlon Brando (Gabriel Leone), por sua vez integrante de um grupo de ativistas que pratica uma guerrilha contra a petrolífera.
Cena do filme com Matheus Nachtergaele. Foto: Still/Divulgação
É como a ouroboros, a cobra a morder o próprio rabo, e como se dá no cinema de Cláudio: tudo se interliga, pele sobre pele, sexo e desejo, “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, ciclos que se repetem... O esteio de Piedade é o afeto e como nos permitimos afetar por decisões que nos escapam, por erros cometidos lá atrás por quem reputávamos como referências e por questões prementes que se insurgem e pedem que nos posicionemos. No debate, já na manhã de domingo, pude representar a Continente na mediação e assim perguntar ao diretor de onde vinha aquele filme em que vários elementos do Recife aparecem liquidificados com o sumo da ficção, mas ainda assim reconhecíveis.
Ele falou da construção do Porto de Suape e de como tudo impactou no ecossistema e nas relações das pessoas com as praias. “Os tubarões vêm e comem as pessoas. Aquela história daquela mulher, naquele terreno, aconteceu, com aquela família, de forma eloquente”, respondeu, acrescentando que “é uma história recorrente na minha família”. Outro elemento extremamente pessoal que ele levou para Piedade foi descortinado às lágrimas no debate: “É a minha história. Passei muitos anos de minha vida procurando meu irmão. Quis retratar nesse filme... Cauã faz um papel de um irmão meu, que foi perdido, roubado da maternidade, entendem? Fernanda faz a minha mãe e Irandhir sou eu”.
O próprio diretor dando spoiler de Piedade? A revelação não atrapalha. Ele pode fazê-la; ele que, ao arregimentar sua “trupe”, como Nachtergaele descreve, faz o que Irandhir classifica como um “chamado”, e dessa vez teve a participação de “dona Fernanda”, como o ator pernambucano se refere à veterana atriz. “Eu estava procurando a atriz, mas não encontrava. Queria ver as atrizes de Almodóvar, porque o filme é dedicado à minha mãe e minha mãe vem da Espanha. Conversando com Matheus, falei em Fernanda, mas eu disse: 'Ela não vai querer fazer nada comigo'”, comentou Cláudio.
“Pelo que lembro, Claudão disse algo do ‘quem sou eu para fazer filme com ela, ou algo humilde travestido do jeito pernambucano, e eu liguei para Carmem, a produtora dela, e disse que tinha um roteiro dele e perguntei se poderia mandar, a resposta dela foi: 'Agora, a Fernanda é muito fã dele'. O que senti foi uma alegria enorme da Fernanda querendo vir para essa trupe”, contou Nachtergaele. Ele ainda deu um depoimento de bastidor: em todos os cinco filmes do diretor, nos quais esteve presente, nunca houve uma leitura de mesa do roteiro. "Mas Fernanda queria uma leitura e assim improvisamos uma mesa num terraço para ler com ela."
A presença dela em cena é de impressionar: há uma verdade em cada gesto de Carminha a amplificar o potencial dramático, melodramático até, do roteiro que partiu do argumento do diretor para ser escrito por Hilton Lacerda, Ana Carolina Francisco (roteiristas de Big Jato) e Dillner Gomes. “Teve vezes em que ele me disse: ‘Rapaz, você tá se abaixando demais para ela’”, brincou Irandhir – em cena, o talentoso ator que é faz uma performance não tão exuberante como o Zizo de Febre do rato, mas de tanta força quanto o Maninho de Baixio das bestas (“Considero que ali Cláudio me descobriu e me revelou o cinema”, me diria depois).
Fernanda Montenegro e Irandhir Santos fazem mãe e filho em Piedade. Foto: Still do filme/Divulgação
VIVÊNCIAS “Verdade” foi uma palavra muito usada pelos atores para aludir à relação entre eles na tela e também ao foge dela e transborda para a vida. “Cláudio nos convidou a nos aproximar do Recife e esse encontro que aconteceu com todos nós, com a realidade da cidade, nos levou para dentro da história e fez com que encontrássemos esses personagens. Trabalhamos as nossas relações como irmãos, como parceiros, já com a leitura de roteiro na locação, e a história e a cidade nos abraçaram”, pontuou a atriz Mariana Ruggiero, que vive Fátima, a filha mulher de Carminha, que abre mão da criação do filho Ramsés para não estar na comunidade praieira onde vive a família. "Acho que Ramsés talvez seja a maior vítima de tudo isso", opinou seu intérprete, o jovem Francisco.
“Nesses 20 anos de Retomada, me parece que o material que me aparecia como ator eram os personagens arquetípicos da brasilidade, que me levavam a tatear o Brasil profundo: os nordestinos, os travestis dos cortiços, os traficantes do morro, os motoboys... Hoje, percebo que, na verdade, o brasileiro mais típico é o Aurélio. Foram eles que venceram as eleições. Foram eles que neste momento ganharam o round. Inclusive agora que, na realidade, a indústria petrolífera está invadindo as praias, como se a praia fosse o lugar do nosso afeto. O filme demorou a estrear e, quando surge agora, depois desse acidente estranho do vazamento do óleo, ganhou uma camada que eu não supunha. Esse golpe achei um dos mais fatais: além de tudo, você não pode entrar no mar”, sustentou Nachtergaele, ator presente em todos os cinco longas de Assis. “Sei bem a essência do cinema que faço com ele, é algo de verdade, em que acredito”, me acrescentaria depois.
Há muita verdade, também, nas cenas de sexo entre os personagens de Matheus e Cauã Reymond. Ao escalar um galã global no papel de um gay que vive de mostrar filme pornô e alugar quartos em um ambiente com cheiro de "gala" seca, o diretor subverte clichês e dá oportunidade ao ator construir um personagem matizado. "Eu também me surpreendi com o convite e com o personagem, que, a princípio, não era o mais óbvio para o qual eu poderia ter sido convidado. O filme é feito por homens, mas tem muito do feminino desses homens, inclusive do meu personagem. E com relação ao que acontece entre os dois personagens, a gente tem um cinema super sensual, erótico, e tesão não tem cara. Às vezes, dá tesão o jeito que a pessoa move a mão. Às vezes, é o jeito de a pessoa falar... Nós somos seres humanos, muito ricos, pelo menos gosto de acreditar nisso, e acho que construímos com delicadeza e humor essa relação", comentou Cauã.
Tanto ele como Gabriel Leone, que interpreta seu filho em cena (com direito a um diálogo tipicamente pernambucano, na linha do “eu sou seu pai, não seu pareceiro”), concordam: “Não poderia ter um momento melhor para lançar esse filme”. “Acho que é uma questão de energia, que veio da vivência com a cidade, não turisticamente falando, mas de conviver com as pessoas, de estar lá, mas também do tema que o filme aborda”, disse Gabriel. É como se, em Piedade, o forma e tema se interligassem e ganhassem novas camadas de significados a partir da própria experiência do Brasil e do seu realizador. “Sofri um AVC e o filme demorou a estrear. Agora, veio a se tornar mais importante ainda”, corroborou Cláudio.
O ator Gabriel Leone e o diretor Cláudio Assis em debate no Festival de Brasília. Foto: Divulgação
OS TONS DO FILME Para a corroteirista Ana Carolina Francisco, o filme se estrutura a partir de dois eixos a serem trabalhados conforme o diretor havia pensado: “A paternidade da busca do irmão e a ideia da petroleira e, com isso, começamos a imaginar uma cidade fictícia, Piedade, muito parecida com o Recife, mas com uma geografia construída pelo filme, completamente cooptada por essa empresa. Essa cidade é gerida pela Petrogreen, que vai se esvaziando de vida, tirando seus moradores dali. Tem uma cena com Sandro no cinema que ele diz ao filho dele: ‘As pessoas que você critica são as que nos dão dinheiro’. Ou seja, queríamos falar de contradições que temos que viver todo dia no capitalismo”.
Uma cidade perdida para o capital, uma família espatifada entre a vontade de resistência e a constatação de que talvez seja inútil persistir, homens a trafegar entre as ondas do destino e a cor do desejo: Piedade tem muito do cinema de Cláudio Assis, mas em um tom mais soturno, melancólico, impresso tanto na fotografia de Marcelo Durst como nas falas dos personagens e no próprio tom do filme. “Quando estávamos filmando, vimos os moradores da Ilha de Tatuoca, que fica perto de Suape, sendo expulsos covardemente. Estávamos ali com uma sensação muito grande de que alguma coisa de ruim iria acontecer... Um ataque de tubarão em que morresse alguém, ou algo dessas grandes empresas que negligenciam a vida das pessoas. Era uma sensação nítida e agora vemos que é mais do que uma ficção. As pessoas já estavam sofrendo na Ilha de Tatuoca e agora estamos todos sofrendo”, observou a diretora-assistente Júlia Moraes.
Piedade tem estreia prevista para 9 de abril de 2020. Nos seus créditos iniciais, “parceiros que não existem mais, como o Fundo Setorial do Audiovisual e BNDES”, como fez questão de lembrar o produtor Marcello Ludwig Maia. “A gente filmou numa realidade (para o cinema) completamente distinta da que está passando agora.”
A pergunta que permaneceu, após a sessão nesta 52ª edição do Festival de Brasília, era: o que será que falta acontecer ao Brasil nesses quatro meses que separam essa primeira exibição do lançamento comercial? “Piedade? Temos que ter de nós. Não seria tarde demais para o país deixar de ser um negócio para ser um lar?”, levantou Matheus Nachtergaele.
Francisco de Assis Moraes, filho do cineasta e da diretora-assistente Júlia Moraes, vive Ramsés. Foto: Still do filme/Divulgação
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.