Quando a Continente visitou o set de Curral (Brasil, 2020), o único longa-metragem pernambucano na programação da 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, era o último dia de filmagens em Gravatá, no agreste pernambucano. Animado com a perspectiva de encerrar a rodagem, o diretor Marcelo Brennand comentava sobre o que motivou seu retorno, agora sob as tintas ficcionais, para o universo da micropolítica em uma eleição municipal – seu primeiro filme, o documentário Porta a porta, era uma investigação sobre as relações entre candidatos a vereador e seus cabos eleitorais. “Entendi que precisava ir para a ficção, pois teria a liberdade para aprofundar essas dinâmicas que havia encontrado no documentário, só que agora com mais densidade e por outros ângulos”, nos explicou.
Produção da Zéfiro Filmes em parceria com a Querosene Filmes, com as pernambucanas Bárbaros Produções e Jaraguá Produções no rol de produtoras associadas, Curral é testemunho do que Marcelo disse naquele já longínquo novembro de 2018. No enredo, os amigos de infância Joel (Rodrigo Garcia, o Paulete de Tatuagem) e Chico Caixa (Thomás Aquino, que faz Pacote em Bacurau) passam a trabalhar juntos quando o primeiro se lança candidato a vereador na cidade que se projeta como a Suíça Pernambucana. Chico, que trabalha com abastecimento de água na zona rural do município, passa a ser uma espécie de “fiel da balança” para Joel conseguir penetrar em redutos eleitorais, em um cotejo e confronto de interesses que há de gerar tensão e questionamento.
O jogo das alianças, a falta d’água, o vínculo que se forja entre Joel e Caixa justamente para se angariar um maior capital político (ou seja, votos), as práticas anacrônicas inerentes às campanhas no Brasil e as tensões intrínsecas entre o que se vende como “nova política”, personificado na figura de Joel (impossível não se lembrar de candidatos das últimas eleições presidenciais, ou mesmo dos pleitos municipais de agora) e aquela postura de caciques da “velha política”, representada em Vitorino (José Dumont), o atual prefeito que busca a reeleição – tudo isso é combustível que turbina a narrativa de Curral, bastante apropriada para os tempos atuais.
Por telefone, conversamos sobre o filme com Marcelo Brennand. Curral pode ser visto na Mostra Play até o próximo dia 5. “Da Mostra, o filme vai para um festival na Espanha e espero que rode por alguns outros festivais, mesmo que de forma híbrida, online, antes de pensarmos em estrear, o que acredito que só vá acontecer no primeiro semestre de 2021. Essa experiência da Mostra é super nova e é como se o filme estivesse no streaming: as pessoas já estão assistindo e nos dando um feedback”, conta.
Still do filme. Foto: Daniela Nader/Divulgação
CONTINENTE Curral está sendo exibido pela primeira vez na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Se a pandemia não tivesse ocorrido, imagino que o filme já estaria circulando há mais tempo. Como foi o percurso para finalização neste 2020 pandêmico?
MARCELO BRENNAND Cerca de 80% da finalização se deu em março e a gente estava dando continuidade para lançar no cinema neste ano, mas aí começou a pandemia e tudo parou. Quando as coisas começaram a voltar a um “normal”, surgiu a oportunidade de aparecer na Mostra e retomamos a finalização. Curral ficou pronto em agosto. A gente estava se programando para finalizar no PortoMídia, no Recife, até porque toda a equipe do som é do Recife. Mas isso era ainda com o cronograma de lançar nos cinemas. Quando fechou tudo, tivemos que esperar e trazer a finalização para São Paulo.
CONTINENTE O filme foi rodado em 2018 e pensado para ser lançado nos cinemas antes, claro, da pandemia. Muito aconteceu no Brasil nesse período e agora a estreia, na 44a Mostra de São Paulo, surge muito próxima das eleições municipais. Isso repercutiu de alguma forma no resultado final? Você mexeu na montagem?
MARCELO BRENNAND Não. Não mexi em nada. O que acontece é que o filme vai se tornando cada vez mais atual. Em relação ao roteiro... Veja a nossa situação desde o início: filmamos em 2018, então o roteiro ficou pronto no começo daquele ano. Não tínhamos como saber tudo isso que aconteceria hoje. Acredito também que, quando a história nasce, já não tomo mais conta dela. O roteiro foi mudando, sim, nas filmagens, pois cinema é coletivo e os atores agregaram muito. Apesar de todo mundo ter uma função específica, no final todo mundo é um pouco cineasta. E havia muita gente com mais bagagem no set e de filmagem do que eu, então buscava dividir tudo. Mas, de fato, não teve nenhuma mudança no filme, nenhum corte para que ficasse com similaridade maior o que estamos hoje.
CONTINENTE Mas o enredo já traz muitos elementos semelhantes ao que estamos vivendo, principalmente porque estamos em ano eleitoral e as eleições serão justamente municipais.
MARCELO BRENNAND Curral é uma ilustração, em escala menor, do jogo político que acontece em qualquer lugar do mundo. Quando a carência leva as pessoas a negociarem seus direitos, a abrir mão dos seus ideais e perspectivas de mundo, acontece o que vemos no filme e no nosso cotidiano. Acredito que o debate dos protagonistas do filme é universal, não apenas do lugar ou da cultura a que pertencemos. Mas no Brasil tudo isso acontece numa proporção maior.
CONTINENTE Em uma das sequências do filme, quando Joel e Chico Caixa vão até um assentamento, me chamou a atenção a participação da uma senhora bem combativa. Fiquei curiosa para saber quem era aquela atriz e, ao indagar a Anna Luiza Müller, que faz a assessoria de Curral, ela me respondeu que o nome dela era Gisleine e que, na verdade, não era atriz, e sim moradora do local. Como foi a experiência de incluir moradoras como ela em cena?
MARCELO BRENNAND O filme se passa em Gravatá e eu escolhi filmar em Gravatá mesmo. Queria que Curral tivesse uma narrativa com estética documental e que o elenco tivesse conhecimento do filme não só através do roteiro, mas com os personagens reais que iriam interpretar, com aquelas pessoas que vivem a realidade ficcionalizada no filme. Então, existia uma troca entre os atores e os não-atores, como se um desse o tom para o outro. Aliás, preciso falar do trabalho espetacular de Renê Guerra na preparação do elenco. Acho que o trabalho dele foi uma extensão da direção e conseguiu imprimir o que eu gostaria, que era trazer essa pegada documental.
CONTINENTE Mas como era essa química no set? Você ensaiava muito com o elenco e com os moradores que contracenavam?
MARCELO BRENNAND Não, era praticamente não ensaiado. Eles foram super espontâneos e naturais e reagiram muito bem. Na cena em que Gisleine aparece, por exemplo, ela e outros moradores vieram com força e eu fiquei preocupado em seguir o roteiro do filme, em não perder a linha narrativa, mas quando percebi a energia daquelas pessoas, a naturalidade com que faziam seus questionamentos, disse a Beto (Martins, o diretor de fotografia): “Vamo focar neles e trazer esse realismo para o filme”. Nada daquilo foi ensaiado, o que, para mim, só mostra a qualidade do trabalho de Renê. É como ele mesmo costuma dizer: a preparação do elenco foi não ter preparação. E me impressionei ali com cada pessoa que não se intimidou com a câmera e com o elenco, que seguiu em frente com o roteiro.
CONTINENTE Os personagens de Joel e Chico são amigos de longa data, e é essa amizade que os leva a trabalhar juntos na campanha de vereador do primeiro. Mas, durante esse processo de imersão na política, se percebem as contradições dos dois e a complexidade daquela relação. É interessante que Curral não idealiza nada. Não tem nenhum inocente.
MARCELO BRENNAND Os personagens, assim como a própria cidade, são contraditórios. Você vê que em Gravatá existe uma zona rural, onde falta água, mas a cidade é também chamada de Suíça pernambucana. Tudo é muito contraditório porque os personagens e a cidade vivem em contradição. Curral é um filme com um olhar humano para a política, não é um filme político em si. Para me inspirar para fazê-lo, assisti a muitas falas de políticos e percebi como os valores morais dos candidatos eram ressaltados nas entrelinhas. Eles viravam personagens em cena. Acredito que a política deveria privilegiar o senso comum em torno das ideias e dos ideais transformadores, mas no Brasil a campanha termina sendo predominantemente em todo da moral da pessoa, dos dilemas e paradoxos daquele candidato. Curral retrata bem esse aspecto, na minha opinião, e é um drama pessoal e essencialmente humano.
Cena com Chico Caixa (Thomás Aquino) e o candidato Joel (Rodrigo Garcia).
Foto: Daniela Nader/Divulgação
CONTINENTE Ainda sobre a relação entre os personagens de Rodrigo Garcia e Thomás Aquino, à medida que Chico Caixa vai se envolvendo no jogo político, também vemos como os recortes de classe e raça se aplicam à amizade deles, como, aliás, em todo o Brasil.
MARCELO BRENNAND Sim, você vai descobrindo novas tensões entre eles. A ideia inicial era que os personagens são o que são. Vivem o seu paradoxo e eu não nego aquela realidade. Aliás, como diretor, não protejo Joel nem Caixa. Joel, quando sai do palanque depois de fazer um discurso carismático, tem uma postura machista, preconceituosa e homofóbica. Caixa vai entrando na política e agindo conforme as circunstâncias. É paradoxal: até que ponto é certo fazer o errado? Caixa é um homem que tem uma relação de subjetividade com a água, é sensível, mas, ao mesmo tempo, representa uma estrutura patriarcal.
CONTINENTE Curral tem um desfecho que percebo como aberto, como se não importasse muito o resultado eleitoral, e sim a travessia daquelas pessoas. Quando o filme termina, tudo pode ter acontecido com os personagens.
MARCELO BRENNAND Tem uma frase de Amos Gitai em que ele diz que é quando se acende a luz do cinema, que começa a reflexão. Acredito que é por aí, sim. O filme aborda a cultura política brasileira com uma visão antropológica e simbolismo forte entre os personagens. Mariana, a personagem de Carla Salle, tem uma relação afetiva com a terra, com raízes indígenas, e Joel é um outsider da política, que se diz um representante da nova política, enquanto Chico Caixa é negro e está esmagado por esses dois universos. E são pessoas contraditórias como a própria cidade em que elas vivem e como o nosso país.
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.
EXTRA
Onde ver: mostraplay.mostra.org
Todas as infos: 44.mostra.org
Preço do ingresso: R$ 6