É inegável: este longa-metragem de Nora Fingscheidt, o seu segundo, é um dos filmes que podem ser catalogados como “definidores de 2019”. Na Berlinale, venceu o Prêmio Alfred Bauer, em uma edição marcada pelas discussões sobre paridade de gênero na indústria cinematográfica (a diretora, inclusive, foi fonte de matéria nossa, publicada na Continente de março). Na 43ª Mostra Internacional de São Paulo, dividiu o troféu de melhor ficção, dado pelo júri internacional composto pelos cineastas Beto Brant e Lisandro Alonso, pela diretora e atriz Maria de Medeiros e pela produtora Xénia Maingot, com o australiano Dentes de leite, de Shannon Murphy. E é fato (triste, bom ressaltar): ainda não foi comprado para distribuição no Brasil.
O que faz System crasher (Systemsprenger, Alemanha, 2019) tão potente é o modo corajoso e furioso, até, com que trata a vida de Benni (Helene Zengel), uma menina de nove anos que parece congregar, dentro de si, toda a agressividade e a revolta do mundo. Se a vida é feita de som e fúria, como diz algum personagem de Shakespeare em Macbeth, é de som e fúria, então, que Benni se arma para enfrentar o cotidiano. Sua mãe não tolera sua incapacidade de se encaixar, ela foi expulsa de todas as escolas e dos lares para os quais foi mandada e uma última tentativa é feita quando Micha (Albrecht Schuch), cuja especialidade é justamente tentar controlar raiva, é contratado pelo serviço social para acompanhar Benni.
Nora Fingscheidt não se dobra ao que poderia ser a via mais fácil: seus personagens desfilam na tela com os matizes contraditórios da vida, carregando, em si, sentimentos que nem sempre são fáceis de experienciar, que dirá de colocar em palavras. Benni não se ajusta, o filme tampouco. É uma jornada excruciante essa que a realizadora nos propõe: acompanhar, durante quase duas horas, a travessia de alguém que simplesmente não se encaixa em lugar nenhum. Porém, como diria Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, não é justamente no meio da travessia, nunca na chegada nem na saída, que se apresenta o real?
FRANKIE
Foto: Paris Filmes/Divulgação
Isabelle Huppert é Isabelle Huppert. É o público é fiel, como poderia rezar alguma cantilena em homenagem, nas manchetes de jornal, em sites ou mesmo em rabiscos. Em Frankie (França/Portugal, 2019), o diretor norte-americano Ira Sachs nos apresenta uma protagonista que poderia, facilmente, ser confundida com a própria intérprete: Frankie (Hupper) é uma atriz consagrada em todo planeta, admirada, famosa, que no entanto se encontra numa fase da vida em que não quer lá saber muito de trabalho, podendo se dar ao luxo de reunir família e amigos próximos para férias em Sintra, em Portugal.
A ação se desenrola em um único dia. Nele, o que Frankie almeja? Estar com seu marido (Brendan Gleesan) e seu filho (Jérémie Renier), com a enteada (Vinette Robinson, uma luz) e com a amiga Ilene (Marisa Tomei), que ela mandou vir da Espanha (momento divertido: onde estava sendo rodado o novo episódio de Guerra nas estrelas), andar pelas pequenas ruas de pedra e bairro, passar pelo casario medieval e por memórias que lhe chegam através de cada um e cada uma.
Ira Sachs tem um pendor para filmar situações pungentes com uma naturalidade que impressiona – a luz, os diálogos, o baile no qual os atores e atrizes dançam na encenação -, vide Deixe a luz acesa (2012). Há uma melancolia subjacente, correndo como lençol freático por baixo de cada interação de Frankie com aquelas pessoas que são suas, só suas, mas também do mundo para o qual ela parece estar prestes a dizer adeus. Isabelle Huppert, por si só, valeria o ingresso (até para vê-la trafegar entre palavras em francês e inglês, com o idioma português ao redor), mas o filme, com um ritmo meio descompassado, como nos instantes em que vida nos apresenta rupturas, também cativa. Boa notícia: foi comprado pela Paris Filmes e deve estrear em fevereiro de 2020.
DEUS É MULHER E SEU NOME É PETÚNIA
Uma produção da Macedônia, Deus é mulher e seu nome é Petúnia (Gospod postoi, imeto i' e Petrunija, Macedônia/ Bélgica/França/ Croácia/Eslovênia, 2019) foi a primeira obra do país a concorrer ao Urso de Ouro na última Berlinale. Tomou de assalto jornalistas e convidados da 69ª edição do festival, porém de lá saiu sem prêmio algum, mas com muito reconhecimento. Tanto que chegou a Mostra de São Paulo já com aquela credencial de filme disputado (suas primeiras sessões, de fato, foram muito concorridas.
No enredo, a diretora Teona Strugar Mitevska redesenha uma história verídica: Petúnia (Zorica Nusheva) implode uma tradição católica de Stip, sua pequena cidade, ao se esconder entre os homens que mergulham, a cada ano, em um rio congelado para recuperar uma cruz jogada pelo padre. Ao resgatá-la antes de qualquer macho, Petunya explode todas as convenções – sociais, políticas, afetivas. Ganha a hostilidade de todos, é chamada para depor, quase agredida dentro da delegacia, porém recebe a sororidade da repórter televisiva vivida por Labina Mitevska.
“Há uma solidariedade entre elas, e isso é um ponto importante nos tempos em que vivemos. Se estamos juntas, somos mais fortes”, me disse, em Berlim, a cineasta. Seu filme erige uma narrativa de emancipação que poderia acontecer não apenas nos Bálcãs mas em qualquer lugar do mundo. Petúnia é a mulher que se imiscui nos “assuntos dos homens”, como diria a roteirista Elma Tataragic, não porque quer implicar, e sim porque ser quem pode ser, ser quem é, ser o que quiser. “Para o desenvolvimento da história, era muito rica a ideia dessa mulher pulando no rio. Isso não está escrito em nenhum lugar, mas é tradicionalmente um assunto dos homens. A ideia era poderosa, incrível e cinematográfica. A jornada de Petrunya mostra a crueldade do mundo. Os problemas que compartilhamos, e enfrentamos, são comuns. Nessa conexão, o mundo é cruel”, complementava Elma.
O mundo é cruel, disso bem sabemos, porém se Deus for uma Deusa, é bem capaz de ter a tenacidade e a ternura desta incrível personagem. Deus é mulher e seu nome é Petúnia tem distribuição da Pandora Filmes e deve entrar em cartaz no primeiro semestre de 2020.
CASA
Foto: Carnaval Filmes/Divulgação
Por onde passou, o documentário da baiana Letícia Simões amealhou não apenas elogios, boas críticas, recomendações, mas também um genuíno sentimento de admiração. Tanto que, já no 8º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, de onde saiu com o prêmio da crítica, Casa (Brasil, 2019) suscitava discussões sobre a forma – um filme em que sua realizadora está no quadro praticamente em cada cena; sobre a temática – uma investigação sobre as relações entre mãe e filha; e sobre as personagens – a própria Letícia, sua mãe Heliana e sua avó Carmelita, em contínuas e constantes conversas sobre si mesmas e os laços de família que as unem.
E Casa faz o convite para entrar, porém sem pressa. “Foram quatro anos com o projeto. Comecei a fazer em 2015. Quando escrevi, era um amálgama, uma investigação de relações familiares, uma arquelogia… A partir de um desejo muito forte de investigar esses pontos, todos esses laços da família do meu pai, por exemplo”, me disse Letícia em Curitiba. O projeto foi selecionado para o laboratório do Porto Iracema das Artes, no Ceará, e no meio desse processo de um ano, monitorado pelos realizadores Marcelo Gomes, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, a realizadora se deu conta de que havia algo a puxar, ao seu roteiro e a si mesma, como uma força gravitacional. “Os três identificaram rapidamente que tinha uma coisa muito forte ali que era a relação com a minha mãe”, relembra. “Minha mãe é uma grande contadora de histórias e atravessou momentos-chave da História contemporânea do Brasil, então eu queria também falar dela, dessa mulher que nasceu em Salvador nos anos 1950 e foi morar no Rio de Janeiro nos anos 1970”.
Ela complementa: “Comecei a filmar minha mãe para investigar tudo isso, mas quando eu voltava com os resultados dessas filmagens, e levava para o Porto Iracema, ficava muito claro que o filme era sobre a tessitura da nossa relação”. A partir dessa tessitura, Letícia cria uma narrativa que radiografa os elos entre ela mesma, uma mulher recém-separada que está longe de casa há dez anos, Heliana, lidando com uma crise depressiva porque decidiu colocar sua mãe em um asilo, e essa mãe mais velha, Carmelita, agora tendo que buscar uma outra referência para uma “casa”.
Mas essa mesma narrativa é turbinada pelo jogo de cena entre real e ficcional, entre o que o enquadramento captura, o que vemos na lente da câmera, e o que a tudo isso escapa. “Mas não estamos sempre a nos reinventar, a cada instante, ainda mais na frente de uma câmera?”, indaga Letícia Simões. Se a memória é uma das matérias de que é feita a vida, e uma casa pode ser apenas onde o coração está, essa produção da pernambucana Carnaval Filmes, com distribuição da Pandora, merece estar na lista do que ver ainda em 2019 (está na programação dos longas da Janela Internacional de Cinema do Recife!) ou esperar para 2020.
MEU EXTRAORDINÁRIO VERÃO COM TESS
Foto: Picture Tree International/Divulgação
Ritos de passagem são combustível para grandes obras de ficção. Nesse filme holandês, Sam (Sonny Coops Van Utteren) é um menino que se preocupa tanto com as relações entre vida e morte que a possibilidade de extinção lhe impele a indagar: “Será que o derradeiro dinossauro a morrer sabia que ele era o último?”. Bem, o fato é que Sam, de férias com a família na ilha de Terschelling, decide se impor um treinamento de solidão, já antecipando que, em determinado momento da vida, seus pais e seu irmão não mais estarão ao seu lado. É nesse momento que surge a outra figura central de Meu verão extraordinário com Tess (Alemanha/Holanda, 2019): Tess (Josephine Arendsen), uma menina que tem uma maneira peculiar, extravagante até, de lidar com ausências.
Ao adaptar o livro infantil de Anna Woltz, o diretor Steven Wouterlood e a roteirista Laura van Dijk encontram um caminho dramático porém divertido para compor uma trama sobre família, mortalidade e a busca por significados na vida. O vínculo entre Sam e Tess é crível, muito embora já tenhamos visto antes essa ideia de um garoto ensimesmado atraído como mariposa para a luz irradiante da menina que burla as convenções (não é um pouco isso o elo entre Mike e Eleven em Stranger things?). E o mais interessante é que juntos os dois vão percebendo, entre ternura e raiva, que achar seu lugar no mundo é mais legal quando podemos partilhar tal experiência.
Outro ponto de destaque em Meu verão extraordinário com Tess é a bela fotografia de Sal Kroonenberg. Não apenas é a luz do verão europeu a envolver os corpos em cena, mas o enquadramento a apreender o mar, as dunas, montanhas, como se a natureza também fosse um personagem crucial para que Sam e Tess atravessem o verão e saiam, de todas as formas, modificados não apenas pela imersão naquele lugar, mas principalmente por terem achado um ao outro. Um lamento: o filme não tem distribuidor no Brasil.
O PARAÍSO DEVE SER AQUI
FOTO: Imovision/Divulgação
"Sempre esquecemos que a linguagem verbal é apenas uma das formas de comunicação. Existem muitas outras linguagens com as quais podemos nos comunicar. Talvez o silêncio seja dos modos com que consigo me expressar". Assim Elia Suleiman falou à Continente sobre seu mais recente longa-metragem, um dos filmes mais celebrados da 43ª Mostra de São Paulo, onde chegou após receber uma menção honrosa no Festival de Cannes, em maio. Em O Paraíso deve ser aqui (It must be Heaven, França/Catar/ Alemanha/Canadá/Turquia/ Palestina, 2019), ele está o tempo todo em cena como ele mesmo: um cineasta palestino a observar a vida e seus desdobramentos com seus olhos expressivos e sem nada falar.
E um cineasta que viaja: da sua Palestina natal, ele vai a Paris, depois a Nova York. Em todas essas cidades, o que será que ele busca? Não espere explicações, Suleiman adverte. “Porque a vida acontece sem legendas, não é mesmo? Não vejo por que explicar tudo para o espectador”, ele acrescenta em uma conversa comigo num hotel na capital paulista. Em O Paraíso deve ser aqui, as cenas se encadeiam como esquetes com humor fino, inteligente e por vezes mordaz (atenção para a sequência com a participação de Gael Garcia Bernal) e tem momentos em que parecemos estar assistindo a um (delicioso) filme de Jacques Tati ou Buster Keaton – semelhanças que o diretor acolhe sem problema algum.
Mas é o estilo de Suleiman que vemos, assim como vimos em Intervenção divina (2002) e O que resta do tempo (2009): um olhar aguçado para o mundo de hoje, com suas contradições, suas complexidades, a necessária empatia para conseguirmos sobreviver e, claro, os sopros de resistência. “A cena final do filme surgiu para mim quando fui em Haifa, que hoje é a cidade onde os palestinos querem estar, e fui, já de madrugada, a um bar LGBT, onde gays e lésbicas dançavam como se não houvesse amanhã. Pensei: não poderia ter um lugar melhor para estar agora”, diz o diretor. Enquando houve dança, ele sabe, haverá esperança.
Boa notícia: foi comprado pela Imovision e deve entrar em cartaz no primeiro semestre de 2020.
MR. JONES
FOTO: Film Produkcja/Divulgação
Na Berlinale, quando exibiu este que é seu mais recente filme, a cineasta polonesa Agnieszka Holland foi aplaudida pelos jornalistas na coletiva de imprensa ao alertar para a repetição dos perigos enfrentados pelo seu protagonista, o Mr. Jones (Polônia/Inglaterra/Ucrânia, 2019). “Não podemos baixar a guarda, pois o fascismo é uma ameaça real e concreta. É preciso falar sobre o que está acontecendo no mundo agora, pois corremos o sério risco de que a História se repita”, sentenciou.
Em Mr. Jones, James Norton vive Gareth Jones, um jornalista galês que viaja para a União Soviética nos anos 1930. Ele começa a investigar o que ficou conhecido como Holodomor, considerado o holocausto russo: a fome e a devastação do plantio após mudanças perpetradas por Stálin na agricultura, matando milhares de camponeses. Jones, que havia chegado ao país de dimensões continentais com o intuito de entrevistar comandante comunista, decide reportar os horrores que encontra.
Há no filme uma interessante reconstituição de época e sólidas atuações de Norton e Vanessa Kirby (com um Peter Sarsgaard um tanto enviesado, por assim dizer, no papel de Walter Duranty, um correspondente norte-americano na corte de Stálin). Se por um lado Holland acerta em paralelizar o que Norton vê com a criação de Animal farm, clássico de George Orwell, por outro o filme pinta uma cisão entre o Ocidente, como se os poderes do oeste não se interessassem pela tragédia em curso na URSS, e os soviéticos – por sua vez divididos entre os moscovitas, a apreciar a vida em festas de pura lascívia, e os esfomeados que vão morrendo sem que ninguém faça nada.
Ao falar do fascismo, a cineasta, no entanto, reafirma-se como uma voz importante, que desde cedo tem apreço por retratar os dramas dos conflitos mundiais – vide Filhos da guerra (1990). Detalhe: o filme não foi comprado para o Brasil.
BECO
FOTO: Aurora Cinema/Divulgação
Camilo Cavalcante volta ao documentário nesse “filme feito com dinheiro para um curta-metragem, mas que não caberia num curta, embora seja um longa curto”. Beco (Brasil, 2019) é uma incursão a uma área específica no bairro de Afogados, ali, numa espécie de encruzilhada, perto da feira, da estação de metrô. É nesse beco que o cineasta nos lança a seguinte questão: “O que seria a verdade?”. A partir de conversas – Camilo prefere não chamá-las de entrevistas – transcorridas nas mesas, com copos de cervejas, homens de diversas origens, marcados por diversas tragédias ou mágoas profundas (há um que cumpriu pena na prisão por dois assassinatos, outro que ficou cego já na meia idade, um outro que agrediu a mulher e se arrepende), falam de si e do mundo.
“Eu queria fazer um registro. A ideia não era conversar com ninguém, mas a natureza do trabalho, a equipe, uma câmera e um microfone – tudo isso de uma certa forma atraía as pessoas. Repelia também, mas também atraía. Então nunca foi uma entrevista, foi sempre uma conversa, mas era algo muito etílico também. A própria equipe também bebia durante o processo. E na bebedeira a gente se abre, né?”, comentou o diretor durante a primeira exibição de Beco em São Paulo.
Para ele, o beco é “um divã popular”. “Quem tem amigo não precisa de psicólogo ou psiquiatra, mas sim de sorrisos, de uma bebida, de uma conversa”, lembra o diretor, aludindo à abertura que os personagens lhe deram depois que Camilo e sua reduzida equipe de 5 pessoas passaram a frequentar o espaço com regularidade. O interessante é que a narrativa não condena, tampouco absolve aquelas pessoas – apenas as vê, as ouve. São seres que, no corre-corre da vida contemporânea de grandes cidades como o Recife e São Paulo, talvez se tornassem invisíveis para quem apenas cruza aquele bairro no caminho de volta do aeroporto, em seus carros de vidros fechados.
“Vejo o beco como uma astronave colada no mercado. Uma astronave colada no mercado, que baixou ali. E o filme é muito vivo”. Sendo vivo, como a vida, sabemos que nele o que fica, de fato, não é que se controla, como as histórias que Cícero conta e reelabora para ludibriar Camilo e a nós, mas justamente a possibilidade de reinvenção, ou seja, aquilo que escapa.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.