Em uma manhã de fevereiro em Berlim, o fluxo era intenso no número 38 da Köthener Strasse. Datado de 1912, sobrevivente de duas grandes guerras, o edifício abriga o Hansa Studio. Mas não era para visitar o famoso estúdio de gravação que chegavam centenas de convidadas com seus crachás da Berlinale – International Filmfestspiele Berlin. A menos de um quilômetro dali, na Marlene Dietrich Platz, o Berlinale Palast acolhia a exibição para a imprensa de The ground beneath her feet, um dos longas-metragens na competição. Realizado pela austríaca Marie Kreutzer, era um dos sete filmes dirigidos por mulheres de um total de 17 concorrentes ao Urso de Ouro, fatia nunca antes atingida pelo evento que abre o calendário cinematográfico mundial – pois, embora o Sundance Film Festival seja em janeiro, em alcance e ressonância política e cultural não se compara à Berlinale.
Dias depois, o percentual de 41,2% de representatividade feminina na Wettbewerb, a mostra principal, pulou para 43,75% quando se anunciou que Yi miao zhong, novo longa do chinês Zhang Yimou, enfrentara problemas de finalização e seria retirado do festival. Naquele sábado, nenhuma das participantes do seminário Gender, genre, and big budgets sabia disso, nem talvez o próprio diretor-geral da Berlinale, Dieter Kosslick. Ele era um dos presentes no Meistersaal, belo salão construído para concertos de música que hoje disputa com o Hansa o posto de destino mais procurado na Köthener Strasse. E, no seu último ano à frente do festival, as questões de gênero se fincaram como viga-mestra. Naquele ato, o diretor-geral assinaria o protocolo de intenções 5050x2020, ratificando os esforços para aumentar a igualdade de gênero.
Nascida na França, a iniciativa 5050x2020 tem como alicerce a promoção de paridade em todas as veredas da indústria cinematográfica – nos sets, nos comitês de seleção das mostras, nos júris, nas equipes, nas programações. A ideia, como o nome sugere, é que em 2020 “gender equality” não seja uma ilusão, e, sim, realidade. Uma das palestrantes daquela manhã era a produtora norte-americana Gale Ann Hurd, famosa por sucessos como Exterminador do futuro (1984), Armageddon (1998) e o seriado The walking dead (2010). “A Berlinale está bem melhor do que Cannes ou Veneza. A assinatura desse protocolo evidencia a necessidade de mudanças na indústria cinematográfica para que diretoras e produtoras bem-sucedidas não sejam mais uma exceção”, resumia Hurd, sob aplausos.
O evento tinha dois propósitos: a assinatura do emblemático protocolo de intenções e o lançamento da campanha 10% for 50/50 (10percentfor5050.com), literalmente 10 por cento para cinquenta-cinquenta, idealizada pela Women in Film and Television International/WIFTI e pela companhia Chimney. A proposta é conceder descontos a qualquer projeto que promova a paridade de gênero, no cinema e na televisão, nas empresas de pós-produção que se cadastrarem. A produtora sueca Helene Granqvist, presidente da WIFTI, uma das idealizadoras da campanha, festejava a adesão de 21 empresas europeias e conclamava as representantes de outras companhias cinematográficas a “fazer história”. “A articulação é para aumentar esse número, ampliar o diálogo e incentivar mais e mais projetos com equilíbrio de gênero. Isso não é apenas uma moda. É sistêmico”, explicaria, momentos depois, à Continente.
Sua conterrânea Anna Serner, diretora-executiva do Swedish Film Institute, uma das instituições europeias mais firmes na advocacia da representatividade, reforçava: “Slogans como 5050x2020 e10% for 50/50 são pegajosos e isso é bom para que todo mundo possa entender, para que as campanhas tenham alcance global. Cada passo é importante e cada país ou instituição pode aderir da maneira que for possível para eles. Estar na Berlinale, falando sobre o empoderamento das mulheres e mostrando profissionais de sucesso que podem servir de inspiração, atesta que as mulheres não estão apenas se lamentando, e, sim, buscando formas de se posicionar melhor e exigir mais espaços”.
Navegar nas ondas da discussão de gênero foi um exercício interessante na 69ª Berlinale. Nos bastidores, as cruciais articulações que haviam trazido Gale Ann Hurd, Helene Granqvist, Anna Serner e inúmeras outras para fortalecer o debate e ampliar o que Serner descreveria à Continente como “uma rede de conscientização”. Ainda no campo invisível ao grande público que naqueles dias se dividia por Berlim para ver os mais de 400 filmes do festival, sobressaía a vinda de Kirsten Schaffer, diretora do ReFrame (www.reframeproject.org), criado pela WIF de Los Angeles como um programa para “expandir o horizonte feminino” na indústria através de uma incisiva estratégia de inserção, apoio, patrocínio. Ela apresentou dados estarrecedores: dos 1.200 filmes de maior bilheteria lançados entre 2007 e 2018 nos Estados Unidos, numa média de cem por ano, apenas 4% haviam sido dirigidos por mulheres.
“Temos um longo caminho a percorrer, as coisas não vão mudar rapidamente, mas precisamos fazer a nossa parte. Várias companhias como HBO, AMC, Amazon e Showtime já se comprometeram com o ReFrame. Outras empresas têm financiado o projeto para que possamos, por exemplo, oferecer uma espécie de bolsa, de patrocínio, para diretoras já experientes que precisam de suporte para desenvolver seus projetos. Também criamos um selo para os projetos que obedeçam aos critérios de representatividade. Como tudo foi pensado para os Estados Unidos, por exemplo, muita gente não faz ideia do que é o ReFrame. Estamos trabalhando para internacionalizá-lo, mas qualquer produtora pode começar a usar nosso kit a partir de agora. Até mesmo no Brasil”, avisava Schaffer.
Já na seara mais midiática da Berlinale, coberta por quase 5 mil jornalistas de centenas de países, as questões de gênero despontavam em equações cujas variáveis se aproximavam ou se repeliam entre polêmicas e estatísticas, entre distanciamentos e constatações. Pela primeira vez, desde 1951, a Berlinale atingia um índice expressivo não apenas na Wettbewerb, mas em todos os programas compostos por obras atuais (excluindo as mostras clássicas e as homenagens, isso resultava em um conjunto de 265 filmes, dos quais cerca de 37% traziam uma diretora nos créditos). O júri era presidido por Juliette Binoche (em toda a história do festival, apenas 19 presidentes foram mulheres; 45 foram homens) e trazia uma composição igual: três homens, três mulheres.
Porém, na coletiva de apresentação dos jurados, Binoche atraiu a indignação de jornalistas – homens e mulheres – ao contemporizar a situação do produtor norte-americano Harvey Weinstein, desde 2016 acusado de assédio sexual e estupro por dezenas de atrizes e profissionais da indústria cinematográfica. A revelação dos abusos cometidos por Weinstein catalisou o movimento #MeToo, dando força à divulgação de centenas, milhares até, de outros casos e gerando ondas de solidariedade e acolhimento em todo o planeta. Detentora de um Oscar de melhor atriz coadjuvante por O paciente inglês, em 1997, uma produção da Miramax, empresa de Weinstein, a atriz francesa se pronunciou assim:
“Eu tento me colocar no lugar dele. Ele já teve o suficiente, eu acho. Muitas pessoas se expressaram sobre o caso, agora a justiça tem que fazer seu trabalho. Nunca tive problemas com ele, mas eu podia ver que ele, sim, tinha problemas. Como produtor, ele foi maravilhoso na maior parte do tempo. Acredito que era um excelente produtor e isso não deve ser esquecido, muito embora esteja sendo difícil para alguns dos diretores e atores e especialmente para as atrizes. Eu apenas quero dizer que desejo paz para ele e que a justiça faça o que tiver que ser feito”.
God exists, her name is Petrunya, primeiro filme da Macedônia a disputar o Urso de Ouro. Foto: Sisters and brother mitevski/Divulgação
Sua declaração foi recebida com incredulidade e seria relembrada dias depois, no mesmo salão das entrevistas coletivas no hotel onde funciona o centro de imprensa da Berlinale, quando outra perspectiva – essa mais integrada ao feminismo e aos pleitos de igualdade defendidos pelo próprio festival – foi dada pela equipe de God exists, her name is Petrunya. Esse filme da Macedônia – o primeiro do país a participar da disputa pelo Urso de Ouro – recontava a história verídica de uma mulher que rompeu com uma secular tradição católica na sua cidade e imediatamente se tornou um dos favoritos da imprensa. Vivida por Zorica Nusheva, Petrunya mergulha num rio congelado para procurar uma cruz jogada por um padre e, ao resgatá-la antes de qualquer homem, passa a ser hostilizada por todos – família, igreja, polícia. A única que a defende é a repórter televisiva vivida por Labina Mitevska.
“Há uma solidariedade entre elas, e isso é um ponto importante nos tempos em que vivemos. Porque, se estamos juntas, somos mais fortes”, respondia a diretora Teona Strugar Mitevska à Continente. A pergunta era sobre o filme e sua narrativa de emancipação numa perspectiva de correlação ao que se percebia em vários países, não apenas nos Bálcãs onde a história se passa, mas também no Brasil, sob a presidência misógina de Jair Bolsonaro. “Para o desenvolvimento da história, era muito rica a ideia dessa mulher pulando no rio e se metendo nos assuntos dos homens. Isso não está escrito em nenhum lugar, mas é tradicionalmente um assunto dos homens. A ideia era poderosa, incrível e bastante cinematográfica. Mas o filme tem muitas camadas e a jornada de Petrunya mostra a crueldade do mundo. Sabemos o que está acontecendo no Brasil, mas os problemas que compartilhamos, e enfrentamos, são comuns. Nessa conexão, o mundo é cruel”, complementava a roteirista Elma Tataragic.
O mundo dos homens e de sociedades machistas seria cruel também com as protagonistas de Elisa y Marcela, longa que trazia a realizadora espanhola Isabel Coixet de volta à competição. Lastreada em fatos históricos, a ficção resgatava o escandaloso romance entre duas mulheres que, no início do século XX, na Galícia, ousaram viver juntas, com uma delas (Elisa, personagem de Natalia de Molina) chegando a se passar por um homem para se casar com a outra (Marcela, interpretada por Greta Fernandes). Na trama, como na vida real, as duas foram hostilizadas, agredidas e presas. Coixet foi mordaz ao ser indagada sobre suas escolhas, como se a repudiar a pecha de “mulher que só quer fazer filme sobre mulheres”: “Não vivo atrás de histórias sobre mulheres fortes, essas histórias me encontram. A primeira vez que ouvi falar desse caso foi há 10 anos, ao conversar com uma pesquisadora que investigava o assunto, e decidi ir atrás. Bem, já que não faço parte do time da National Geographic, não faço filmes sobre elefantes fortes, então só posso fazer filmes sobre mulheres fortes”.
Já a diretora Nora Fingscheidt, cujo System crasher era um dos três títulos alemães na Wettbewerb, também se ancorava em potentes figuras femininas para costurar sua trama ficcional sobre uma garota de nove anos (Helena Zengel) que não se encaixa em casa, nos abrigos, na escola, ou seja, em lugar algum do sistema. “Quando nos referimos a crianças que escapam de rótulos e não conseguem se enquadrar nos lares adotivos, é comum pensarmos em meninos e eu achei mais interessante adotar a perspectiva de uma menina”, comentaria a propósito de suas escolhas.
System crasher, de Nora Fingscheidt, foi uma das obras dirigidas por mulheres exibida na competição da Berlinale. Foto: Yunus Roy Imer/ Kineo Film/Divulgação
Sobre as questões de gênero, assim se posicionaria, ao responder à Continente: “Estou em uma posição sortuda por pertencer a uma geração que teve muitos postos de trabalho abertos. Devo isso a gerações anteriores de mulheres que lutaram e ainda lutam por isso. Acredito que esse é um debate necessário, mas, para mim, pessoalmente, meu gênero nunca foi um obstáculo. Sou feliz por ser mulher, por ter feito esse filme e estar aqui na Berlinale. Acho essencial que o debate continue, mas minha contribuição é nesse sentido”.
De volta ao Meistersaal e ao seminário Gender, genre, and big budgets na manhã do primeiro sábado da Berlinale, Helene Granqvist pedia a centenas de mulheres (entre os participantes, numa contagem rápida, os homens não contabilizavam nem 20) que fizessem fotos com um coração com os dedos e postassem em seus perfis de redes sociais com a hashtag#5050together. Um brinde era distribuído, um chaveiro com a logomarca da campanha que brilhava no escuro. “Precisamos ser mais visíveis dentro da indústria”, conclamava a produtora sueca. Perto dela, enquanto as luzes de fato apagavam, Anna Serner carregava uma caneta na mão, o chaveiro na outra. “O momento de conscientizar e mudar é agora. Estamos apenas no dia dois do festival, é cedo para avaliar as tendências, mas tanta gente aqui discutindo iniciativas é um bom sinal. É um ato político”, resumia a diretora executiva do Swedish Film Institute.
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A Gender Evaluation Berlinale 2019, documento compilado pelo festival e disponibilizado à imprensa e a todos os profissionais credenciados, reunia apontamentos históricos como a quantidade de mulheres vencedoras do Urso de Ouro (de 1956, quando o festival passou a contar com um júri internacional, a 2018, foram apenas seis, em contraste com 56 diretores premiados) e dados como a composição das equipes dos filmes selecionados. Preencher um questionário com essas informações era obrigatório ao se inscrever, como recorda a produtora pernambucana Nara Aragão, corresponsável por dois títulos selecionados para a Panorama, a segunda mostra mais relevante do festival – o documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, do pernambucano Marcelo Gomes, e Greta, do cearense Armando Praça.
Nara Aragão, sócia da Carnaval Filmes, reconhece que os preconceitos velados ainda existem. Foto: Victor Alencar/Divulgação
Com quase duas décadas de atuação no audiovisual, primeiro como estagiária e depois sócia da REC Produtores Associados, agora ao lado de João Vieira Jr. na Carnaval Filmes, ela observa uma paisagem diferente: “Estamos vendo um cenário bem distinto do que quando eu comecei, lá atrás, em 2001. Acredito que as mulheres conquistaram um espaço maior, e o que antes era feito na intuição hoje é buscado com objetividade na hora de compor as equipes. Vejo isso como um reflexo de todas as conquistas. Na Carnaval, por exemplo, na hora de pensarmos quais os talentos que poderemos chamar para determinada função, sempre perguntamos: quem são as mulheres que poderiam fazer isso?”.
Porém, Nara reconhece que os preconceitos velados ainda existem. “Mesmo quando eu já era sócia da REC, pelo fato de a produtora ter outros três sócios, todos homens, às vezes as pessoas chegavam para me pedir para falar com os outros sócios. Eu também era sócia. Hoje, podemos dizer que a Carnaval já é uma produtora 50/50, pois somos eu e João, e isso nos abre ótimas possibilidades de pensar tudo, mas ainda tem gente que chega querendo falar apenas com ele”, pontuava à Continente, num café perto do Sony Center, horas antes de uma das sessões de Greta.
Nos créditos de ambos os filmes produzidos por ela aparecia o nome da montadora Karen Harley. “Historicamente, a montagem sempre foi uma função feminina, basta lembrarmos as montadoras de Fassbinder, Scorsese e Tarantino. Acho que deve ser porque corte e costura se assemelhavam com a moviola”, ironiza a pernambucana, que começou a montar filmes e seriados televisivos na década de 1990, iniciando em suportes já extintos, como VHS e U-Matic. Karen é parceira habitual de diretores pernambucanos como o próprio Marcelo Gomes e Cláudio Assis, mas tem trabalhado com muitas mulheres – Lina Chamie, Anna Muylaert, Lucrecia Martel. “Fico feliz em perceber que, de fato, aumentou o número de projetos com mulheres na direção. Antes, as mulheres estavam como continuístas, figurinistas, na edição como eu, agora isso tem mudado muito. Tenho recebido cada vez mais convites para montar filmes dirigidos por mulheres. Em geral, acredito que as realizadoras estão mais abertas à escuta, mais propensas a esse exercício de escutar o outro”, afirma.
Numa noite em Berlim, Karen Harley ilustrava a necessidade de não silenciar, ao evocar o tempo em que ainda era jornalista: “Trabalhei numa mostra chamada Olhar feminino, no FestRio, isso no final dos anos 1980, e exibimos filmes de Laurie Anderson, por exemplo. Me lembro das pessoas ficarem falando assim ‘o que é isso que essas mulheres estão fazendo’, ‘que danado é um olhar feminino’. Trinta anos depois, ainda passamos por isso. Ou seja, enquanto isso for uma questão, o debate precisa ser constante. O ideal é que não fizesse diferença se o filme tivesse uma mulher ou um homem na direção, mas a verdade é que ainda faz. Gênero ainda é uma questão e portanto, enquanto for, temos que continuar falando”.
Numa perspectiva de lutar por representatividade e oportunidade, e de não deixar o debate esmorecer, o Coletivo de Diretoras de Fotografia do Brasil – DAFB foi fundado em 2016. Um dos longas brasileiros exibidos na Berlinale, o documentário Chão, de Camila Freitas, selecionado para a mostra Forum, estampava nos créditos a informação de que todas as fotógrafas integram o DAFB. No site do coletivo, os preceitos que lhes servem de norte: “A direção de fotografia é uma profissão vista como masculina, e por isso tem sido dominada por homens quase que totalmente. Mas a única coisa que difere um homem de uma mulher é a oportunidade. É necessário que as pessoas que trabalham com audiovisual percebam e se sensibilizem com essa situação pra que alguma mudança ocorra”.
Membro do DAFB, Aline Belfort era uma das 253 participantes do Berlinale Talents, braço formativo do festival, no qual os selecionados vivenciam workshops e trocam experiências. Segundo a Gender Evaluation Berlinale 2019, 55,7% eram mulheres, como a diretora de fotografia cearense. Entre os 16 selecionados para cinematografia, categoria em que Aline estava inserida, sete eram mulheres. Animada com as janelas de diálogo abertas na capital alemã, ela reforçava a importância de articulações como o DAFB. “No Brasil, as pessoas costumavam dizer que não contratavam mulheres para fotografar porque não sabiam que existiam diretoras de fotografia. O DAFB criou essa rede essencial, até porque muitas vezes nem nós mesmas sabíamos quem eram as profissionais de outros estados”, situa. Há quase três anos, por meio de parcerias com instituições como o Sesc em São Paulo, o DAFB vem investindo em formação. “A seleção vai atrás de gente da periferia, de mulheres negras, que não teriam condições de pagar para participar das oficinas. É uma rede de solidariedade e de força”, comenta Aline.
Numa noite de fevereiro, quando Chão foi exibido no Cubix, perto da icônica torre de televisão da Alexanderplatz, símbolo da Alemanha oriental nos anos em que havia um muro a cindir a metrópole, entraram em evidência os ideais de solidariedade e força do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Durante anos, a diretora Camila Freitas teve acesso a ocupações no estado de Goiás e construiu seu filme em cima dos “trabalhadores que, com sua luta, mudaram e seguem mudando a vida de milhares de brasileiros”. Dessa convivência, resulta o documentário, defendido por uma das líderes do MST, Elizabeth Conceição, que também viajara a Berlim: “Muitas lutadoras e muitos lutadores foram criminalizados e presos, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e por último tivemos a eleição do que há de mais retrocesso na história da luta brasileira e do Brasil em si, de um presidente incitador da violência, da opressão e de tudo que é de mais retrógrado numa democracia”.
Depois da sessão, não foi difícil encontrar com espectadores que conversavam sobre as semelhanças entre Chão e O processo, documentário de Maria Augusta Ramos exibido na Panorama em 2018. Era como se os dois filmes jogassem luz sobre as turbulências do Brasil a partir do que acontece com expoentes femininas – Elizabeth e suas companheiras no primeiro, Dilma Rousseff, enquadrada durante seu rito de impeachment, no segundo. As antológicas exibições de O processo em Berlim, de onde o documentário saiu com o terceiro lugar entre os prediletos do público da Panorama, gestaram um percurso de excelente acolhida: no Brasil, o filme chegou a 65 mil espectadores, como lembra Anna Luiza Müller, jornalista e assessora de imprensa que há 25 anos trabalha exclusivamente com o cinema nacional.
“Os campeões de bilheteria de documentários em 2017 e 2018 foram, respectivamente, Divinas divas, de Leandra Leal, e O processo, dois filmes com os quais trabalhei. É uma realidade já bem diferente de 1997, quando lancei Pequeno dicionário amoroso, de Sandra Werneck. Só quatro anos depois é que cheguei ao próximo longa de mulher, Amores possíveis, também de Sandra”, diz Anna Luiza, que considera “intuição e afeto” ferramentas indissociáveis dos projetos que se prepara para lançar: “Para 2019, temos três filmes nacionais de diretoras mulheres, com equipes praticamente todas femininas: Los silencios, de Beatriz Seigner; L.O.KA, de Claudia Jovin, uma produção de Carolina Jabor, com quem já lancei três filmes; e a coprodução com a argentina Família submersa, de María Alché. Em 2020, chega o novo filme da Laís Bodansky, Pedro, com duas produtoras mulheres por trás, Bianca Villar e Karen Castanho”.
Isso tudo, claro, se o horizonte se mantiver aberto para cinema, arte e cultura. Pois, enquanto longas seguiam em finalização na América do Sul e questões de gênero eram rebatidas ou aprofundadas em filmes, coletivas, seminários e mesas em Berlim, ventos que sopravam do Brasil carregavam sinistras redefinições paradigmáticas. Estatal que durante anos teve robusta atuação no incentivo à cultura, a Petrobras terá sua atuação reavaliada, como o próprio presidente Jair Bolsonaro anunciou em sua conta no Twitter em 7 de fevereiro, mesmo dia em que teve início a Berlinale: “Reconheço o valor da cultura e a necessidade de incentivá-la, mas isso não deve estar a cargo de uma petrolífera estatal. A soma dos patrocínios dos últimos anos passa de R$ 3 BILHÕES. Determinei a reavaliação dos contratos. O Estado tem maiores prioridades”.
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A realizadora pernambucana Déa Ferraz é uma das componentes do Mape – Mulheres no Audiovisual de Pernambuco. Enquanto transcorria o festival berlinense, ela decantava o material de Agora, seu quarto longa rodado em dezembro, e acompanhava o noticiário. “Mais do que falar e manter a disputa por paridade de gênero dentro do cinema, temos que pensar se vamos, até, continuar a fazer cinema ou como faremos em um governo que não dá valor a isso. Avançamos muito nas discussões sobre lugares de fala, mas temos que nos juntar para defender um cinema mais autoral e político que, claramente, esse governo não vai mais incentivar”, opinava.
O Mape nasceu no mesmo ano em que Déa lançava seu documentário Câmara de espelhos, no qual discutia a naturalização do machismo. “Era 2016, afastamento de Dilma, e a mulherada se juntou para fazer os vídeos da Marcha das Vadias e tomar consciência do lugar da mulher no mundo machista. Fomos além nas discussões sobre a construção da imagem da mulher. Construir imagens é formar uma ideia simbólica de mundo, é construir subjetividades, e dessa forma era cada vez mais importante pensar nas narrativas que estávamos construindo, nas personagens e na mulher que queríamos compor com essas imagens. Essas são questões que discutimos fortemente no Mape. E, quando pensamos isso, pensamos também no set, em como as mulheres são assediadas ou violentadas, e em toda a estrutura de mercado do cinema brasileiro”, aponta.
A cineasta pernambucana Déa Ferraz é uma das integrantes do Mape – Mulheres no Audiovisual de Pernambuco. Foto: Beto Figueiroa/Divulgação
Em julho de 2018, no seminário internacional Mulheres no Audiovisual, organizado pela Agência Nacional do Cinema – Ancine em São Paulo, foram divulgados os dados mais recentes sobre o mercado brasileiro: dos 160 filmes lançados no parque exibidor nacional em 2017, apenas 16% foram dirigidos por uma mulher. O maior percentual – 77% – era de projetos exclusivamente realizados por homens, enquanto 7% tiveram direção mista. Nos poucos filmes assinados por diretoras, não havia nenhum realizado por uma cineasta negra. Os dados figuram no Mulher no Cinema (http://mulhernocinema.com), criado pela jornalista paulistana Luísa Pécora em 2015.
“Fiz o site que eu mesma queria ler”, conta Luísa, que desejava “tanto dar voz às mulheres que fazem cinema quanto colocar o público em contato com o trabalho delas”, como explica. “Eu sempre gostei de cinema e sentia falta de ter um site ou blog em português que pudesse democratizar essa discussão. Trabalhei anos em um portal e, em 2013, ao fazer uma série de reportagens sobre mulheres no cinema, percebi que não tinha nada falado sobre isso no Brasil. A Ancine não tinha esses dados, eu lembro que contei um a um, com meu marca-texto, os filmes que naquele ano tinham saído lançados por uma diretora”, rememora.
2015, ano em que o site estreou, foi a temporada em que Patricia Arquette ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante e exigiu paridade na remuneração. “Mudou bastante coisa e não mudou muito”, brinca a jornalista e editora do Mulher no Cinema. “A discussão está mais frequente e mais pública, sociedade e mercado já identificaram que existe desigualdade no cinema e que as oportunidades não são as mesmas, mas temos o desafio de falar além da bolha. Acho que, no mundo, de uma forma geral, existe uma atenção maior a isso do que no Brasil. Aqui vamos precisar de muito investimento e muita vontade de mudar, mas esse não pode ser só o assunto do momento, sabe? Tem que ser o assunto sempre, até não ser assunto mais.”
Hoje, o Mulher no Cinema é uma referência em visibilidade para as questões de gênero cinematográficas. Sua base de dados é comparada, em relevância, ao trabalho de difusão empreendido no podcastFeito por elas (soundcloud.com/feitoporelas), encabeçado por Isabel Wittmann, antropóloga e doutoranda catarinense com pesquisa sobre gênero, corpo e cinema. Cavar um nicho para se falar sobre o cinema feito por mulheres, sejam elas realizadoras consagradas como Jodie Foster e Lynne Ramsay, sejam elas brasileiras em ascensão, como Gabriela de Amaral Almeida, ou veteranas em atividade, como Lúcia Murat, surgiu naturalmente, como diz Isabel: “Eu escrevia uma coluna sobre direção de arte e gostava de explorar, por exemplo, de que forma o uso de cores ou o figurino criava imagens sobre a sexualidade das personagens. Com o tempo, percebi que não adiantava refletir sobre esse resultado sem pensar nos processos por detrás das câmeras. Passei a prestar mais atenção a quem escrevia e dirigia e sempre que possível trazia a discussão de gênero para o podcast de que eu participava então”.
Ela decidiu fazer o desafio #52FilmsByWomen, lançado pela Women in Film (mesma organização por trás dos seminários na Berlinale) para instigar qualquer pessoa a ver, em cada semana do ano, uma obra dirigida por uma mulher. “Nunca cumpri dessa forma: entre 2015 e 2016, vi 72, computando somente os longas. No segundo, foram 91, no terceiro, 147. A ideia de pensar gênero, corpo, autoria e cinema se tornou inevitável. Conversando com Angélica Hellish, veterena na podosfera, criadora do Masmorracast, resolvemos criar um podcast somente sobre as mulheres no cinema. Criamos a página em março de 2016 e o primeiro programa foi ao ar em 2 de julho.”
A vastidão da internet propicia o acesso à obra de profissionais que, décadas atrás, permaneceriam escondidas. É nessa trincheira, pois, que a luta por gender equality ganha um escopo maior de sustentação, ao possibilitar que mais e mais pessoas conheçam o trabalho de Ava Duvernay, Claire Denis, Juliana Rojas, Andrea Arnold, Patty Jenkins, Ida Lupino, Chantal Akerman, Marina Person ou Kathryn Bigelow, para citar algumas já analisadas no Feito por elas. “E o bonito é isso: ver quantas mulheres com filmografias de peso podemos colocar na roda”, celebra Isabel, que apresenta o podcast ao lado de Samantha Brasil, Camila Vieira, Stephania Amaral e Raquel Gomes.
Isabel Wittmann e Luísa Pécora pertencem ao Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema, cuja gênese se deu em 2016, quando uma primeira reunião ocorreu no âmbito do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Hoje, são mais de 100 integrantes, com críticas de todas as regiões do Brasil. A propósito do nome: Elvira Gama era uma crítica que mantinha a coluna Kinetoscópio no Jornal do Brasil, entre 1894 e 1895. E do porquê: pensar equidade de gênero no cinema é ponderar, também, sobre quantas vozes femininas existem a pensar e escrever sobre os filmes, como explica a jornalista e crítica Neusa Barbosa, editora do Cineweb (www.cineweb.com.br) e uma Elvira que, em 2017, integrou o júri da Fédération Internationale de la Presse Cinématographique – Fipresci no Festival de Cannes.
“Nos anos 1990, quando comecei na crítica, havia pouquíssimas mulheres atuando e, mesmo assim, éramos olhadas com condescendência por alguns colegas homens. Vejo com muita satisfação o fato de que hoje há um número enorme de jovens críticas atuando, conquistando espaços e isso se deve especialmente aos meios digitais. A intenção da própria criação do coletivo Elviras foi encorajar nossas colegas jovens a saírem da toca, escrevendo e se assumindo como críticas, assumindo o direito de usar o nome ‘crítica’. Sim, pois não poucas relataram que chefes – em geral, homens – diziam a elas que não eram críticas, que o que faziam era só um ‘comentário’, uma ‘reportagem’, como ser relegada a um tipo de ‘menoridade’ permanente. Enquanto isso, qualquer colega homem, depois de três meses escrevendo, já era tratado como crítico. O machismo assume muitas formas, não é?”
Um dos motes do ReFrame, programa apresentado na Berlinale para promoção de paridade de gênero na indústria, era categórico: change the culture. E, para mudar uma cultura de práticas arraigadas, é preciso se ramificar em várias frentes. Wendy Mitchell, jornalista britânica que moderou a conversa com Gale Ann Hurd e Anna Serner no Gender, genre, and big budgets daquele sábado de fevereiro, alertava para isso: “Precisamos arranjar mais financiamento para projetos dirigidos por mulheres, é fato, mas elas precisam também estar em outros lugares, na paisagem dos festivais, nos comitês que decidem os filmes, nas equipes que pensam a divulgação e nos veículos que, no final do processo, vão divulgar essas obras”.
Diretora-executiva do Swedish Film Institute, Anna Serner pontua: “Estar na Berlinale é um gesto de empoderamento das mulheres na indústria e um ato político”. Foto: Per Myrehed/Divulgação
No Brasil, Neusa Barbosa tem consciência de que a existência das Elviras, como elas se chamam, ajudou a redefinir alguns pontos. “Além de termos melhorado a representatividade na área, em quantidade e qualidade, percebo como uma vitória uma presença maior de mulheres em curadorias de festivais e júris. Hoje, o coletivo é procurado para indicar nomes para essas atividades e nos esforçamos para dar a maior rotatividade possível a essas nossas representantes, assim redistribuindo as oportunidades a todas. Penso que a própria existência do coletivo motivou festivais em geral a levar mais a sério as questões de gênero, formando júris com paridade e preocupando-se em ter filmes dirigidos por mulheres. Isso leva a mudanças, mas cabe a nós, profissionais femininas e feministas, não deixar que este interesse seja temporário.”
Na manhã de fevereiro em que esta reportagem se fechava, em Berlim, Agnès Varda exibia seu Varda par Agnès fora da competição, no mesmo Berlinale Palast que mostrara todos os sete longas-metragens realizados por mulheres no páreo pelo Urso de Ouro. “Inspiração, criação, partilha” eram os eixos que a belgo-francesa entregava às espectadoras no início da narrativa. Em seu caso, e no de tantas outras cineastas, produtoras, fotógrafas, montadoras, poderiam ser acrescentados “resistência” e “perseverança”. Aos 90 anos, Agnès foi recebida com alegria e admiração no salão das entrevistas coletivas. Defendeu valores libertários, se disse “de esquerda, sempre à esquerda” e rechaçou elogios rasos: “Eu não sou uma lenda. Ainda estou viva!”.
Foi embora sob aplausos, talvez em sua última aparição na Berlinale, talvez não. Sua presença ali, contudo, indicava uma certeza já incontornável: não há lugar – no cinema, na vida – que uma mulher não possa reivindicar.