Diferente do manguebeat, a atual cena musical baiana não foi apresentada como um movimento pensado e articulado, nem utilizou um manifesto com um resumo de seus conceitos. Assim mesmo, existem muitas semelhanças com o que aconteceu em Pernambuco nos anos 1990, especialmente por ter um “não-estilo” como característica, prevalecendo a diversidade e o diálogo entre a música pop mundial e elementos da cultura local, além de colocar a música como arma no enfrentamento dos problemas sociais.
Se a capital pernambucana na época era considerada como a quarta pior cidade para se viver no país, e os índices de desemprego e violência não eram favoráveis, Salvador ainda encara problemas semelhantes. A cidade mantém, há anos, altos índices de mortes por armas de fogo, possuí mais de 14 mil pessoas vivendo em suas ruas, além de 68,2% de sua população acima de 18 anos ganhando menos de dois salários mínimos de rendimento, segundo dados de 2010.
Assim como no Recife de décadas atrás, a capital baiana para muitos também parece viver uma pasmaceira artística. Esse sentimento é muito mais fruto do domínio das rádios e da mídia por uma música mais comercial e apelativa, do que da ausência de criatividade artística. Na últimas décadas, quem determinou os sucessos musicais foi a indústria da axé music, que recentemente vem encarando uma crise e perdeu muito de sua força, dando lugar ao sertanejo na mídia.
"A Bahia nunca saiu desse mapa da música brasileira, mas se o axé quase passou por cima do manguebeat, imagine dentro de casa", lembra o produtor pernambucano Paulo André. Para ele, a Bahia está mostrando finalmente sua outra música, historicamente ofuscada pelo axé, que fez 30 anos de forma decadente. “Trata-se de uma geração nem tão nova, que vem plantando, construindo, há algum tempo e os resultados demoram, mas não falham. A construção não é de hoje, mas está aparecendo hoje, a construção é antiga."
Banda IFÁ. Foto: Fernando Gomes/Divulgação
Mesmo com o domínio da axé music, essa outra produção musical seguiu ativa e fértil, com todo um cenário de bandas, músicos e produtores se mantendo à margem do grande público. A crise na indústria fez com que ela deixasse de ocupar de forma tão agressiva todos os espaços e acabou abrindo as portas para que esses artistas emergissem e passassem a ganhar espaço e audiência. Mais do que isso, permitiu também que os preconceitos diminuíssem. O antes quase proibitivo diálogo com elementos populares tornou-se uma marca nessa geração. A produção ficou mais livre, com ritmos afro, percussões e até mesmo o superrejeitado pagode baiano passando a fazer parte da realidade de uma cena mais nova e com preocupações não exclusivamente comerciais.
“Na década de 1990, quando Pernambuco estava bombando com o manguebeat, utilizando toda uma indumentária pautada na sua identidade, e como esta identidade se comunicava com o mundo, a gente aqui na Bahia tinha um muro entre a indústria do Carnaval e quem não fazia parte dela. A gente não buscava se comunicar com o mundo, porque tínhamos que nos preocupar em abrir o nosso espaço no lugar onde a gente vivia”, explica Vinde de Mira, cantor, produtor de festivais e dono de casa de shows em Salvador. Segundo ele, isso gerou muito radicalismo estético e preconceito. “Uma banda de rock não podia ouvir um som de timbal que agonizava.”
PROCESSOS Enquanto nomes como a banda O Cumbuca e o argentino Ramiro Musotto já experimentavam essas misturas anos antes, paulatinamente, artistas veteranos e importantes do rock local foram se permitindo adicionar elementos antes estranhos. Caso da banda originalmente de surf music Retrofoguetes, que criou o projeto paralelo Retrofolia, introduzindo a guitarra baiana e tocando clássicos do frevo elétrico baiano, e depois rompeu seus próprios limites e passou a trafegar por outras sonoridades. Ou de Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta, com uma azeitada mistura de rock e MPB. E mesmo a Cascadura, que lançou um disco duplo com uma sonoridade que colocava o rock com sotaque e temática baianos, colocando levadas de samba-reggae e toques de candomblé ao lado dos riffs de guitarras.
A mudança tem a ver também com mais informações circulando através da internet e tecnologias digitais recentes. “Existe uma nova geração sem vícios que absorve tudo na velocidade máxima e que colabora para que elementos da cultura popular estejam presentes nesta nova sonoridade da Bahia, mas, ao mesmo tempo, estes elementos não precisam ser executados de uma maneira tradicional”, explica Vince De Mira, cantor, produtor de festivais e dono de casa de shows em Salvador.
Foi desse ambiente que despontou o BaianaSystem, que, depois de alguns anos de trabalho, se transformou em um acontecimento, arrastando multidões sem precisar tocar nas rádios e ocupar espaço na mídia. O grupo conseguiu atrair tanto o público chamado de alternativo quanto o carente de shows e artistas novos ligados ao universo carnavalesco baiano. Os shows lotados e o concorrido trio elétrico no Carnaval logo ultrapassaram as fronteiras e a banda passou a circular regularmente pelos principais palcos do país.
Em sua música, um misto de sound system jamaicano com ritmos baianos, fazendo dub, dancehall, reggae se encontrar com samba-reggae, ijexá, arrocha e pagode, aliado com afrobeat, rock, cumbia e um forte discurso sociopolítico. Tudo isso, com um tempero especial da guitarra baiana, instrumento que caracterizou o frevo elétrico nos anos 1970/80, e que retornou ao centro das atenções. “A guitarra baiana no contexto do BaianaSystem já está bem longe de ser a guitarrinha que toca brasileirinho e grita: 'CAETANOOOO!' (embora eu adore). A guitarrinha do Baiana já caminha pela música africana e latina envenenada de space echo”, explica Vince.
Esse encontro de referências marca o trabalho de outro dos nomes que também já vem chamando atenção fora da Bahia: a Orkestra Rumpilezz.
O grupo segue por um caminho menos pop, mesclando o tradicional jazz norte-americano com os toques do candomblé e a música de matriz africana. Comandada por Letieres Leite, o grupo se inspira nas big bands para produzir uma espécie de afro-jazz, que remete também à Orquestra Afro-Brasileira e ao pernambucano Moacir Santos. No nome uma alusão aos três atabaques dos terreiros, o Rum, o Rumpi e o Lê, o dois “zz” tirados do jazz. Na formação, a percussão dos terreiros à frente, com um naipe de sopros no fundo. O resultado é um “acontecimento musical com a força de criação dos grandes e abençoados”, como descreveu Ed Motta assim que conheceu o grupo.
Essa diversidade e diálogo trafega por outros ambientes. Com origem nos sound systems jamaicanos, por exemplo surgiram, diversos projetos, bandas, Djs e festas locais, como o Ministereo Público (de onde surgiu Russo Passapusso do BaianaSystem), Dubstereo, Dendê Dub, entre outros. Outra turma bebia nessa fonte, mas também na eletrônica, criando um gênero que batizaram como Bahia bass, tendo à frente o DJ Mauro Telefunksoul. Todos eles colocando num mesmo balaio as bagagens de sonoridades pop com samba-reggae, ijexá, blocos afro e samba de roda.
QUEBRADEIRA Diferente do pagode conhecido no Brasil, o pagode baiano ou quebradeira (que muitos fora da Bahia tratam na mesma categoria do axé) tem características próprias e também acabou sendo absorvido por esse atual cenário. Herdeiro do samba de roda, popular e altamente discriminado, o pagode já pode ser visto injetado nessa cena. Mas é em nomes como ÀttooxxÁ e SomPeba que ele ganhou ares ainda mais contemporâneos. As bases e efeitos eletrônicos servem de base para que as levadas, linhas de baixo e cavaquinhos tracem um novo cavaquinho dentro da linha evolutiva do ritmo que definitivamente é o mais ouvido nas periferias de Salvador atualmente.
Além de citar o ÀttooxxÁ, Vince destaca outros nomes que seguem consolidando seus trabalhos e ganhando público em Salvador. “No rabo do cometa do Baiana, eu vejo trabalhos como ÀttooxxÁ, IFÁ e Larissa Luz que também são artistas e coletivos que estão ressignificando a música popular da Bahia com identidade própria”. Ex-cantora do grupo Ara Ketu, a cantora foi indicada ao Grammy Latino 2016 por seu álbum Território conquistado, que une música pop, eletrônica, ritmos afro-baianos e um discurso de empoderamento feminino e a exaltação da mulher negra.
Já a IFÁ mescla ijexá, afrobeat e funk (origem inclusive do nome da banda), e vem ganhando espaço na cidade, com shows lotados, mesmo sendo música instrumental. Já tocaram em várias partes do Brasil, inclusive no Festival Rec Beat, no Recife, além de ter sido uma das atrações do Festival de Inverno de Garanhuns deste ano. O evento foi, por sinal, uma ótima chance de ver de perto artistas baianos. Além da IFÁ, passaram por lá nomes como Lucas Santtana, BaianaSystem e Marienne de Castro, além dos veteranos Mestre Lourimbau e Bule-Bule.
Até mesmo o rap baiano ganhou uma personalidade própria, inserindo outros elementos em sua linguagem de beats e poesia. O trio Opanijé, por exemplo, rima seus discursos sobre bases percussivas vindas dos terreiros, utiliza beats permeados por cânticos para orixás. O nome dá uma boa pista da proposta, é tanto um toque quanto uma dança sagrada do candomblé, além de uma sigla: Organização Popular Africana Negros Invertendo o Jogo Excludente. Vindo de Ilhéus, OQuadro é outro grupo de rap que prima por utilizar outros elementos em sua música. De cara, já se diferenciam por terem uma formação mais clássica de banda do que um DJ soltando bases. Mas estão lá os MCs, o discurso e a estrutura do rap, só que misturado com dub, afrobeat, funk, jazz, rock e samba.
“O destaque para estes artistas não se dá de uma forma isolada. Já há alguns anos está sendo construída uma nova cena na Bahia. Esta cena vem se desenvolvendo de forma orgânica através de iniciativas complementares aos trabalhos dos artistas, como, por exemplo, o surgimento dos festivais de porte médio que hoje são muitos na Bahia (veja lista abaixo) e das casas de shows que suportam entre 50 e 400 pessoas. Este é um conjunto de fatores que oxigena uma cena. Além disso, uma nova geração de produtores surge para empreender nestes diversos eixos da cena”, explica Vince.
ÀttooxxÁ e sua quebradeira. Foto: Pedro Marighella/Divulgação
Paulo André segue um discurso semelhante, ressaltando como a cena baiana é diversa, incluindo ainda bandas de rock e uma nova geração de cantoras, como Manuela Rodrigues, Jadsa Castro e Lívia Nery, além de outras iniciativas fundamentais, como a rádio pública local, Educadora FM, que costuma tocar vários destes artistas em sua programação normal. “Não adianta ter uma cena, sem espaço no dial da rádio local, pelo menos uma. O gargalo histórico do 'Hellcife'”, diz o produtor recifense.
Dentro desse universo musical, anualmente, têm sido lançados mais de cem discos, entre CDs, LPs, EPs e discos digitais. A produção de clipes também segue em ritmo industrial. A agenda de shows em Salvador, por sua vez, mostra a força dessa cena: atualmente é mais fácil assistir a um desses artistas mais novos do que à apresentação de um nome da axé music. Num caldeirão que cabe mesclar toques de candomblé, quebradeira, ijexá, arrocha, guitarra baiana, blocos afro, com rock, rap, jazz, dub, funk, reggae, eletrônica, pop e até cumbia, o que menos parece importar são limites artísticos e preocupação com sucesso fácil. Viva a diversidade.
DEZ DISCOS ESSENCIAIS: - Ramiro Musotto: Civilizacao & barbarye (2007) - Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz: Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (2009) - Retrofoguetes: Cha Cha Cha (2009) - Cascadura: Aleluia (2012) - OQuadro: Oquadro (2012) - Opanijé: Opanijé (2013) - Coletâneas Bahia Bass I, II e II (2014/2015) - BaianaSystem: Duas cidades (2016) - ÀttooxxÁ: #BLVCKBVNG (2016) - IFÁ: Ijexá Funk Afrobeat (2016)
FESTIVAIS: - Lado BA Próxima edição: 21 a 23 de setembro de 2017
- Radioca Próxima edição: 7 e 8 de outubro de 2017
- Zona Mundi Próxima edição: 28 e 29 de outubro de 2017
- Sangue Novo Próxima edição: 18 e 19 de novembro de 2017
PARA SABER MAIS:
- Radio Educadora A rádio pública, gerida pelo Governo do Estado da Bahia, toca em sua programação normal diversos artistas dessa nova cena musical baiana, como BaianaSystem, Márcia Castro e Maglore. Além disso, programa como Outros Baianos, Radioca e Evolução Hip Hop, cada um dentro de sua proposta, apresentam novos artistas do estado. Ouça online: www.educadora.ba.gov.br
- el Cabong Oriundo de um blog de mesmo nome, o site é focado na chamada música independente, mas tem como destaque o cenário baiano, com matérias, entrevistas, clipes, coberturas de shows e festivais, e uma agenda do que melhor acontece em Salvador no universo musical. Acesse: www.elcabong.com.br
- Lá em Casa Sessions Programa de TV que a cada episódio apresenta um novo artista e mostra o que está acontecendo na música baiana. Com apresentações em estúdio e bate-papo, o Lá em Casa Sessions faz um bom apanhado da cena musical baiana. Assista: Canal Music Box Brazil (Net, Claro Tv, SIM TV, CTBC), quartas (22h) e domingos (19h) ou no Youtube (http://goo.gl/s51YNo).
LUCIANO MATOS, jornalista baiano, responsável pelo site el Cabonge um dos nomes por traz do programa e festival Radioca.