Curtas

The good place

Sitcom americano que leva as narrativas da vida real para outro plano está disponível na Netflix

TEXTO Manu Falcão

01 de Fevereiro de 2019

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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"Bem-vindo! Tudo está bem." No primeiro plano de The good place, sitcom criado por Michael Schur, uma mulher (Kristen Bell) abre os olhos. Ao contemplar seu entorno, ela se vê sentada sozinha no sofá de uma sala semelhante à recepção de um consultório médico qualquer. Apesar de parecer alheia ao lugar e como fora parar ali, a moça ergue a cabeça em direção à parede e encontra esses dizeres em um chamativo letreiro verde – algo que, para a estranheza do espectador, a faz esboçar um sorriso, respirar em alívio e seguir aguardando mecanicamente o que ainda lhe é um mistério.

Enfim, chega sua vez de ser atendida. Ted Danson surge em cena, emergindo de uma porta. O ator americano, consagrado por papéis em seriados como Cheers e CSI, evoca uma figura reconfortante e pitoresca, com seu sorriso simpático, cabelos brancos e gravata borboleta. “Eleanor Shellstrop, entre”, diz ele, apresentando-nos à personagem. “Você está morta.”

Enquanto os demais sitcoms nos quais Schur atuou como roteirista ou produtor – The Office, Parks and recreation, e Brooklyn 99 – eram situados nas mais mundanas das ocasiões, geralmente tendo o ambiente de trabalho como cenário, The good place leva as narrativas da vida real para outro plano – literalmente. A trama é desenvolvida a partir do falecimento de seus personagens centrais, e suas respectivas passagens para onde quer que viverão o post mortem: em tradução livre, o “bom lugar” que intitula o seriado, aludindo à concepção religiosa de um suposto céu. Exceto que este céu em particular não se prende a qualquer religiosidade, sendo mais a representação utópica de uma vizinhança moldada minunciosamente para os seus residentes.

O inferno, ou o “lugar ruim”, também existe; mas conseguira ser evitado por Eleanor, como foi explicado pelo personagem de Danson, a quem logo conhecemos como Michael – o anjo que atua como arquiteto do “bom lugar.” Bem como pelos seus vizinhos: a filantropa anglo-indiana Tahani (Jameela Jamil), o monge budista taiwanês Jyaniu (Manny Jacinto) e o professor de filosofia moral senegalês Chidi (William Jackson Harper), que é apresentado a Eleanor como sua “alma gêmea”, com quem ela deve passar a eternidade.

Uma vez unidos pela força cármica, a qual, a princípio, não se pode compreender por completo, os quatro indivíduos de países e etnias diferentes aparentam ser a alta-roda da boa índole. Entretanto, há mais incongruências entre o céu e a Terra do que sonha a vã filosofia – e é nesta premissa que The good place progressivamente quebra a atmosfera orgânica de um ecossistema divino, para então questionar seus maniqueísmos. Uma inquietação moral desvelada desde o princípio, quando Eleanor, ex-vendedora de medicamentos placebo para idosos doentes, e pessoa comicamente terrível em contraste com seus conterrâneos de natureza aparentemente bondosa, chega à conclusão de que está ali por engano.

Em um enredo quase beckettiano, de poucos personagens e cenários, estranhezas veladas e burocracias insólitas, a série vai adquirindo como força motriz o ensejo de tornar-se bom o suficiente para estar à altura do “bom lugar”, e assim permanecer. Mas o que é ser bom? E onde está a virtude que os prende a um céu repleto de intercessões humanas? Ainda que o caminho seja uma grande incógnita, Chidi, o professor, mantém seus vizinhos sob a luz constante de Kant, Hume, Aristóteles, os contratualistas e quem mais oferecer uma visão sobre ética que possa eventualmente ser assimilada.

Contudo, essa é a artimanha de The good place, e da ética em si – nada é inteiramente um subproduto moralista. Essa noção tende a ser diluída pelas experiências de vida (ainda que após a morte), e as lições suscitadas delas. O charme do seriado, que surgiu na televisão americana poucos meses antes de Donald Trump assumir a presidência do país, é que ele subverte várias convenções de sitcons, mas não foge ao mote de ser um escape otimista ao mundo moderno. Enquanto narrativas distópicas são cada vez mais recorrentes, esta faz o oposto, mantendo-se alheia aos pontos de conversas contemporâneos, dado que os personagens também estão. Ao invés disso, propõe reflexões sobre todo o resto – essencialmente, sobre crescimento e aprendizado. Algo cujo resultado poderia ter sido piegas, embora seja excelente em sua execução, despontando simultaneamente como sintoma e cura para a zona crepuscular que atinge o Ocidente e fomenta nossa busca pelo que é certo.

The good place está atualmente em sua terceira temporada, com novos episódios disponíveis às quintas-feiras pela Netflix.

MANU FALCÃO é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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