Curtas

O poema se chama política

Conheça a publicação de poetas pernambucanos em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de Pernambuco (MTST)

TEXTO Luciana Veras

01 de Fevereiro de 2021

Com ilustrações de Clara Moreira, livro reúne poemas de 30 autores

Com ilustrações de Clara Moreira, livro reúne poemas de 30 autores

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 242 | fevereiro de 2021]

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“Naquele tempo era como se observássemos a vida de longe
sujeitos silenciosos diante de um quadro em um museu
escafandristas deslocados do oceano”

Os versos iniciais de Sobre aquele tempo, de Micheliny Verunschk, parecem ecoar todo o corpo poético da compilação O poema se chama política, uma publicação de poetas pernambucanos em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de Pernambuco, que será lançada neste mês de fevereiro. “Naquele tempo éramos bichos assustados em nossas jaulas/ os pelos eriçados o coração descompassado diante a armadilha/ éramos também árvores em pequeno quinhão de terra cimentada/ as raízes em sua vida subterrânea em incomum esforço para romper a pedra”, prosseguem as estrofes de Micheliny, “naquele tempo escapamos só deus sabe como/ naquele tempo não tão distante que se confunde com esse exato instante/ angariamos o dia/aquele que se vive”.

“Este livro nasce no nordeste brasileiro, em um país que enfrenta a pandemia da Covid-19 sob a presidência do governo anticientificista e de extrema-direita do presidente Jair Messias Bolsonaro. É fruto da colaboração entre poetas pernambucanos ou radicados em Pernambuco em parceria com o MTST/PE. Toda a arrecadação financeira a partir da comercialização desta publicação, seja física ou virtual, será destinada ao benefício das famílias do movimento, que, assim como grande parte da população brasileira, segue completamente desassistida em meio a uma crise sem precedentes”, detalha a apresentação da coletânea, com design de Clara Simas, ilustrações de Clara Moreira e obras de 30 autores.

Entre elas e eles, estão Miró da Muribeca, Bell Puã, Adelaide Ivánova, Samarone Lima, Letícia Simões, Maré de Matos, Priscilla Campos, Marcelino Freire, Jussara Salazar, José Juva e Carlos Gomes, autor do poema-título. Gilberto Clementino Neto, um dos organizadores do volume ao lado de Julya Vasconcelos e Fábio Andrade (cada um também com um poema também nesse conjunto estético e político), diz que a ideia surgiu no primeiro semestre de 2020. “Vi uma articulação das artes visuais de fazer uma rifa para arrecadar recursos para o MTST e pensei em fazer algo parecido com a literatura. Liguei para Julya e depois para Fábio, fomos pensando em que autoras e autores chamar, e falamos com Felipe Cavalcanti, do MTST, que teve uma participação fundamental para pensar a dinâmica do livro e da campanha”, conta o escritor e pesquisador em literatura.

Entre setembro e novembro do ano passado, houve a #ChamaPolítica, a campanha de financiamento coletivo que arrecadou cerca de R$ 12 mil, dos quais 40% serão destinados para duas ocupações do MTST/PE: Sítio dos Pescadores, no Pina, e Aliança com Cristo, no Jiquiá. “Conforme o cenário político vem piorando, estamos vendo uma inquietação e articulação maior entre os setores culturais, a sociedade civil organizada e ONGs. Acho que vínhamos de um momento anterior, de tranquilidade e avanços sociais e para a classe cultural, mas isso tudo mudou nos últimos anos. E é muito bom ver que essas articulações geram produtos que levam a reflexões, mobilizam e trazem um retorno financeiro também, como é o caso do livro. Sabemos que muitas questões que são papel do Estado, sobretudo a garantia de alimentação e da moradia, estão ainda mais precárias durante a pandemia, então, nesse contexto, uma iniciativa como essa nos ajuda a fazer o mínimo básico para que as pessoas sobrevivam”, situa Felipe, da coordenação do MTST/PE.

O restante dos recursos foi usado para viabilizar a impressão, dividida entre as editoras Titivillus e Impressões de Minas. Dos 500 exemplares da primeira tiragem, uma parte vai para quem já apoiou a campanha, mas restam vários que podem ser vendidos. “No site do MTST nacional, que é o mtst.org, temos uma campanha permanente, com possibilidade de assinaturas, inclusive, para contribuições mensais ou doações pontuais. E vamos disponibilizar uma loja virtual onde as pessoas vão poder comprar tanto o livro como as camisetas. Quem quiser, pode entrar em contato conosco no perfil do Instagram @mtstpernambuco”, detalha Felipe.

“Essa antologia chegou como uma oportunidade de seguir agindo e criando coletivamente nesse contexto tão hostil de isolamento e pandemia”, observa a poeta Gianni Gianni, que aparece com Primeiro mandamento, um poema do seu ainda inédito primeiro livro, É feito em círculos, que deve sair ainda neste primeiro semestre. “É meu primeiro poema em uma antologia e fico muito contente que seja um projeto como esse, gestado lado a lado por Gilberto, Julya e Fabio com o pessoal do MTST. Ao mesmo tempo, você costura vozes de poetas pernambucanos contemporâneos que são muito diferentes. O projeto tem essa força de trazer vozes tão distintas, mas alinhadas no posicionamento diante do mundo, e isso é algo que me encanta.”

Com E a insanidade reina ruidosa, renata pimentel sinaliza para a importância da arte em “momentos de exceção”. “Esse poema não foi escrito durante a pandemia, mas já trazia uma relação estreita com esse estado de exceção. Sempre que pensamos nesses momentos de exceção, vemos como a literatura e a arte sempre estão a iluminar os vãos mais escuros do humano. Vi uma coincidência grande entre esses versos, que estarão no meu próximo livro, que está no prelo, e o interesse da coletânea. Acho que nós, humanos, somos uma espécie contraditoriamente fracassada, mas existem as solidariedades nos momentos de extrema necessidade, como este”, alinhava. Não deve ser à toa, então, que a chama da poesia há de sempre rimar com luta por moradia.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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