Diva (2020), intervenção de Juliana Notari na , em Pernambuco, é uma ferida. Uma ferida aberta que há tempos tem sangrado na obra da artista.
Faz exatos 20 anos que ela encontrou, na sede da Trapeiros de Emaús (associação voltada à venda de objetos usados, localizada em Água Fria, no Recife), 22 espéculos de metal: um instrumento milenarmente utilizado pela medicina para sustentar hiatos no corpo, mantendo cavidades abertas para que sejam vistas, acessadas e tratadas.
Familiar com o instrumento por portar uma vagina – uma das cavidades na qual ele é costumeiramente utilizado, tal como ânus e narinas –, a memória do incômodo de ser penetrada por um metal frio, abrindo caminho para os olhares especulativos e curativos da ciência, somou-se a um novo dado. Todos os espéculos tinham o nome de sua antiga proprietária neles gravados: Dra. Diva.
Assim nomeado, o instrumento que até então carregava a memória de uma ação invasiva sobre seu próprio corpo passou a acionar outros sentidos para Juliana Notari. Empunhados por suas mãos, aqueles 22 espéculos potencialmente transferiam para seus novos usos o que de Diva carregavam, empoderando-se. Com eles, a artista se pôs a abrir outras cavidades. A partir de 2003, os tais espéculos e algumas marretas se encontraram. As duas ferramentas, sob o trabalho e a força do corpo da artista, passaram a abrir buracos em paredes de galerias e museus: espaços ficcionais e costumeiramente “branquinhos, lisinhos, limpinhos” e, por isso, pretensamente “neutros”. Igualmente vestida de branco, emulando os tecnocientificismos que historicamente têm sacralizado tanto os procedimentos da medicina quanto as operações da arte, Juliana marretou aquelas paredes. Sob o nome de Dra. Diva (performance, 2003-2008), arreganhou-as com os espéculos que anos antes encontrara.
Escavadas, quebradas, fendidas, as paredes receberam sangue e, a cada buraco, um espéculo na intenção de sustentá-las como feridas abertas e encarnadas. Algodões ensanguentados e uma pequena pecinha de vidro que alude a um espermatozoide compunham a ferida, dando a ver que a neutralidade da arte e seus espaços de sagração são um mito: a arte tem gêneros, tem corpos – como, aliás, todo campo de conhecimento. A arte tem e produz traumas. Como exclamava a imagem de uma parede tornada ferida aberta e especulada, a arte, tal qual outras corporeidades, tanto viola quanto é violada.
Dra. Diva (2003-2008). Imagens: Divulgação
Da mesma maneira que já vinha investigando em obras como Symbebekos (2002) – uma performance na qual a artista, descalça, abre passagem por entre um caminho de cacos de vidro, produzindo possibilidades de vida e de saúde por entre um território cortante –, a obra de Juliana Notari encontrava-se sobremaneira no âmbito da violência, do que nos fala, por exemplo, a série Ferida da Bienal (2008).
Foi em 2004, enquanto atuava como montadora na 26ª Bienal de São Paulo, que a artista testemunhou a desmontagem da instalação que Paulo Climachauska fizera para a ocasião: um desenho em perspectiva da arquitetura do Pavilhão da Bienal, cujas linhas são uma conta quase infinita de subtração, numa provocação à dicotomia emoção-razão sobre as paredes emassadas e embranquecidas da exposição. Na desmontagem, Juliana Notari recolheu seus arrancados restos e, sob a brancura que lhe servia de pano-de-fundo, realizou um exercício de prospecção.
Numa escala bem menor e, desta vez, utilizando um bisturi ao invés de uma marreta, a artista foi retirando camadas acumuladas de tinta: memória física das exposições e eventos que, ao longo de anos, se passaram naquele pavilhão. Nessa prospecção, Juliana Notari encontrou um vermelho que, diferentemente do que acontecera com a performance Dra. Diva, não foi acrescentado, senão desvelado pela artista. Uma ferida que já estava lá; recoberta, contudo, por camadas de branco que não foram capazes de cicatrizá-la.
Ferida da Bienal (2008). Imagens: Divulgação
Juntas, Dra. Diva (2003) e Ferida da Bienal (2008) evidenciam – desde o embate com a experiência traumática do legado euroetnocêntrico da arte, seu machismo (lembrando o quanto as mulheres seguem sofrendo discriminação) e suas brancuras tão arquitetônicas quanto etnicorraciais – os fundamentos ético-políticos do que, mais recentemente, a ação Amuamas (2018) perfaz em meio à Floresta Amazônica.
Foi num grande e ancestral corpo de uma Samaúma (árvore sagrada para muitos dos povos da floresta, com a capacidade de absorver água de grandes profundidades e distribuí-la para plantas da vizinhança) que Juliana inscreveu outra de suas feridas. Desta vez, não numa parede, mas num corpo vivo; nas gigantes raízes aéreas da árvore. Por isso, para a artista, Amuamas foi essencialmente um rito.
Após entalhar a Samaúma, revelando sua madeira avermelhada, Juliana pintou a ferida aberta com seu próprio sangue menstrual, coletado ao longo de nove meses. Do encontro entre os rubros da árvore e os da artista, forjou-se uma ferida em comum, comungando dores e identificando, no corpo uma da outra, traumas compartilhados. O gesto da artista – que novamente incrusta um espéculo, algodão embebido em sangue, um vidro-espermatozóide e, desta vez, também uma semente – conta, mais adiante, com o tempo enquanto matéria ritual.
Não sendo uma ação com a intenção central de ferir, senão de curar, é fundamentalmente o tempo que é convocado na ação da artista. É na passagem do tempo que aquelas feridas hão de se regenerar, implicadas na força viva da floresta, da Samaúma e do corpo mesmo de Juliana. Seu rito singular fere a partir da consciência da pequenez de seu gesto diante da magnanimidade das forças dessa natureza da qual fazemos parte.
Assista à videoperformance:
Se, quando feria o cubo branco, Juliana Notari sabia que, no dia seguinte, sua fissura seria emassada e novamente embranquecida – pouco podendo diante da estrutura que a mantém silenciada –, agora a artista convoca a temporalidade do depois enquanto cura, força que regenera e fecha feridas outrora em aberto. Como uma artista da performance, o interesse e a confiança na duração segue habitando sua obra. E é ele, o tempo, que perfaz a inflexão fundamental que leva o trabalho da artista de Dra. Diva (2003) a Diva, instalação de 2020 que ressoa no início deste 2021.
Num solo maculado pela monocultura do açúcar e seus traumas sociais – as terras da Usina Santa Terezinha, desde 2015 transformada em Usina de Arte (no município de Água Preta, em Pernambuco) –, Juliana Notari inscreve outra ferida. Diva, uma prospecção-buraco-escultura de 33 metros de comprimento, é a maior das feridas já abertas pela artista, abcesso que elabora uma visualidade fotogênica para chagas imensuráveis que, contra a invisibilização, seguem lutando por reparação.
Sua mácula sobre aquelas terras é, como sabemos, infinitamente pequena diante dos traumas da escravidão, da precarização do trabalho, do epistemicídio, do ecocídio e de outras violências sobre as quais aquela usina, como outras propriedades privadas oriundas da colonialidade, se estrutura tanto histórica quanto contemporaneamente.
Enquanto ferida, a própria Diva segue reencenando – posto que revira feridas abertas – as desigualdades raciais sobre as quais se assenta o Brasil, como sublinha uma importantíssima parte do debate em torno da obra, que questiona a divisão racial do trabalho entre a artista branca e os operários negros, sintoma de um campo da arte que, tal qual outros âmbitos da sociedade, historicamente exclui corpos não-brancos.
É na condição de abcesso nessas terras já embebidas de sangue que Diva agirá no tempo, ao passo que o tempo agirá sobre Diva. Se hoje a imensa vermelhidão daquela fenda arroga-se na imanência do presente, há que se confiar no devir do tempo, quando Diva será tomada pela força das plantas, das raízes, dos animais, das chuvas, do limo etc., produzindo cotidianamente um embate ético e institucional entre “limpar a obra e, assim, manter a ferida aberta”, e/ou permitir que ela se arruíne, entregando-se a forças que, tal como em Amuamas, podem, de alguma forma, regenerar ou recriá-la. Politicamente, Diva nos pergunta quando – e a quem – serve manter uma ferida viva.
É dado o risco de escamotearmos o alicerce, a intencionalidade e a performatividade traumáticas que Diva carrega e impinge que sublinho o quanto a obra que tanto tem “causado polêmica” por ser uma “vulva de 33 metros” não é, primordialmente, um “bucetão” gravado sobre as terras patriarcais e misóginas do nordeste brasileiro. O que as críticas à suposta ausência de mimetismo da obra (na inexistência de clitóris, grandes lábios ou sei lá mais o quê) terminam por negligenciar é o fato de que aquele orifício é, antes e fundamentalmente, uma ferida.
A obra Diva (2020) em seu habitat, em Água Preta, Pernambuco. Imagem: Divulgação
E se, a despeito de uma anatomia que autoriza outras interpretações à Diva, persistir a ênfase exclusiva sobre a ideia de um “bucetão de 33 metros”, que não seja omitido o que, nessa vulva, é carne viva.
Em um dos países mais feminicidas, transfóbicos, homofóbicos e racistas do mundo, ser um corpo não-macho, que reivindica o pleno direito a outras topologias que não o falocentrismo masculinista do pau-duro é, sem dúvida, lidar com o trauma de um corpo historicamente violado que segue sendo cotidianamente ferido de muitas – e, a depender de sua cor ou gênero, de distintas e assimétricas – maneiras.
Entre espéculos e outros modos (quase sempre silenciosos e invisíveis) de produzir hiatos muitas vezes intransponíveis, que possamos encarar o que, em Diva, tanto fere quanto é ferida.