'Torre de cristal', de Francisco Brennand (Recife, Pernambuco, Brasil)
Imagem Efeito ilustrativo sobre reprodução
“Obra-prima”. “O pior filme do ano. Talvez do século”. Mãe!, o novo longa-metragem de Darren Aronofsky, que estreou no Brasil no dia 21 de setembro, despertou reações polarizadas como essas. Mas não é dessa mãe ficcional e metafórica que vamos falar aqui. E, sim, de uma de carne, osso e alma, também alvo de opiniões extremadas. Ela havia levado a filha a um museu, onde um colega de profissão, o bailarino e coreografo Wagner Schwartz, fazia a performance La Bête, inspirada em Bichos, série de esculturas de Lygia Clark. Ele estava nu, no chão. O público, sentado ao redor, podia mexer no seu corpo. Várias pessoas registravam com seus celulares a ação artística. Um vídeo chegou à internet.
Nele, uma mulher, com a filha, se aproxima do artista, numa visível tentativa de mostrar à menina que a nudez, num país fundado por indígenas desnudos, é algo natural. A garota pega brevemente no tornozelo dele, fica por perto durante uns 30 segundos e sai. Vai na direção de um conhecido, que a cumprimenta com duplo high five. Sorridente, a mãe volta à roda de espectadores para se sentar com a menina. Não sabia que, por causas daqueles poucos segundos, estava prestes a se tornar alvo de uma histeria coletiva.
Wagner Schwartz fez sua performance na abertura da 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), na quarta-feira, 27 de setembro, mesmo dia da morte de Hugh Hefner, o fundador da Playboy, rei da pornografia, que enriqueceu com a venda da nudez feminina. A nudez, não pornográfica, é uma velha conhecida das praias de nudismos, de parques europeus e das galerias de arte. Sem nunca ter gerado tamanho estardalhaço. Isso até a chegada das redes sociais. E o fato de o Facebook bloquear postagens de obras de arte com nudez é um estímulo a mais para esse conservadorismo.
Três dias depois da performance de Wagner Schwartz, 20 pessoas protestaram na frente do MAM. Agrediram física e verbalmente funcionários do museu, como a assessora de imprensa Roberta Montanari, que levou um soco e foi chamada de “pedófila”.
"A questão foi que uma criança estava na instalação tocando o artista nu, com consentimento da mãe. Também não acho a atitude adequada. Mas podemos pensar que não sabemos que educação esta mãe dá a sua criança, quais códigos ela passa. Se pensarmos ser uma família adepta do naturismo, perceba que a coisa muda de figura. Seria apenas mais uma nudez. (...) Mas daí a chamar de pedofilia, também não. (...) Uma verdade que Schwartz mostrou foi a de que estamos todos à espreita, esperando um mínimo deslize para jogarmos todo o nosso ódio e insatisfação nas redes", escreveu o psiquiatra Alexandre Loch.
Desde o vazamento do vídeo, pessoas que, há até pouco tempo, não sabiam da existência dessa mãe, entraram nos seus perfis no YouTube e Facebook para xingá-la, ameaçá-la. Alguns, sem disfarçar o machismo, perguntaram: “Cadê o pai dessa criança?”. Sites oportunistas aproveitaram para tirar vantagem do episódio com chamadas como: “Mãe votou em Dilma” e “Mãe que incentiva filha a tocar homem nu é militante do PT”. O Ministério Público iniciou uma investigação para apurar se houve violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por parte do MAM. Na terça-feira (3/10), na Câmara Federal, o episódio foi discutido calorosamente pelos deputados. Alguns até sugeriram a tortura como punição ao artista.
Diante da avalanche de ataques, a mulher se mantém afastada das redes sociais. Nos comentários, em seu perfil no Facebook, amigos tentam consolá-la, imaginando o inferno pelo qual está passando. O mesmo acontece com Schwartz. Em suma, duas vidas estão sendo afetadas por mais um exemplo do autoritarismo crescente neste país. Mais um episódio que demonstra a ausência da formação de um olhar libertário para a arte, que escancara a incapacidade que muitos demonstram em lidar não somente com a arte, mas também com a ciência, a educação, a política, o pensamento e, pior, o diálogo.
A repercussão negativa da performance no MAM vem se juntar a outros fatos lamentáveis que coincidentemente aconteceram em setembro. No dia 10, a interrupção da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural (a propósito, vai haver ressarcimento aos cofres públicos, já que a mostra foi financiada com dinheiro de renúncia fiscal via lei Rouanet?), acusada injustamente de incentivo à pedofilia, zoofilia e desrespeito a símbolos sagrados. No dia 12 de setembro, foram presas duas das pessoas que protestaram, em frente à instituição, contra o fechamento.
Se os detratores da mostra queriam evitar que as pessoas vissem as telas, conseguiram o efeito contrário. Muitos dos quadros, que passariam despercebidos pela maioria da população brasileira, foram mais vistos após o encerramento precoce do que se tivessem permanecido expostos normalmente até o dia 8 de outubro. Agora, a exposição enfrenta o preconceito e o estigma para seguir o seu calendário. O Museu de Arte do Rio (MAR) não abrigará a Queermuseu por decisão do prefeito-pastor do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.
Na sequência do efeito-Queermuseu, no dia 14 de setembro, uma comitiva de deputados estaduais do Mato Grosso do Sul resolveu ir, na companhia de policiais, ao Museu de Arte Contemporânea, em Campo Grande. Lá acontecia a mostra Cadafalso, da artista plástica mineira Alessandra Cunha (Ropre). Seu nome entrou na lista de pedófilos apenas porque o título da tela, que era, na verdade, uma denúncia, se chamava Pedofilia. O quadro – singelo, a propósito – foi apreendido.
Ainda no fatídico mês de setembro, no dia 15, a peça O evangelho, segundo Jesus, Rainha do Céu foi suspensa em Jundiaí. Uma liminar judicial atendeu ao pedido de entidades religiosas, políticos e da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). O magistrado chamou de “mau gosto” e escreveu que figuras religiosas não poderiam ser “expostas ao ridículo”. O “ridículo” era porque a história mostrava como Jesus Cristo seria tratado, se vivesse nos tempos atuais e fosse travesti. A decisão judicial já respondeu a questão inicial do espetáculo. Protagonizada pela atriz transsexual Renata Carvalho, que interpreta o papel de Jesus, a montagem apresenta o contraste entre a violência sofrida por pessoas LGBT (entre 2015 e 2017, foram 3.093 mortes) e os valores cristãos, como amor ao próximo e solidariedade.
Esses acontecimentos despertaram, nos conservadores, a sede de “justiça” e ânsia de controle. O deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) apresentou um projeto de lei que proíbe a “profanação de símbolos sagrados” nas manifestações artísticas. Em meio à crise política e econômica em que se encontra o país, o texto tramita na Câmara dos Deputados como “prioridade”. Se essa lei já estivesse em vigor, o filme Mãe!, que apresenta diversas referências bíblicas, poderia ter sua exibição proibida no Brasil, assim como aconteceu com Je vous salue, Marie (1985), de Jean-Luc Godard.
Todo esse retrocesso que atinge as artes está longe de ser o pior dos problemas do Brasil hoje, mas integra e simboliza o contexto tenebroso que vive o país (reformas trabalhista, previdenciária, “distritão”, privatização, cura gay, ensino religioso nas escolas, escola sem partido, desmonte das universidades públicas, perdão da dívida bilionária das igrejas, censura à internet...).
A arte, que era o refúgio de toda essa desventura, foi atingida em cheio. E principalmente porque nela se encontram muitos dos questionadores da engrenagem política e econômica do país. Essa agenda moralista contra a arte, além de afetá-la, também contribui para desviar a atenção do povo brasileiro para as ações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. E ainda serve de discurso pronto, fácil e eficaz para ser utilizado por alguns presidenciáveis que visam as eleições de 2018, a exemplo do prefeito de São Paulo, apoiado pelo grupo juvenil que esteve à frente do protesto contra a exposição Queermuseu. As peças do quebra-cabeça vão se encaixando...
Como será a pauta cultural no futuro? Os projetos e as obras de artes terão que ser avaliados por uma comissão antes de chegarem ao público, como acontecia na ditadura militar? Se sim, isso tem um nome terrível: censura. A batalha do avanço social, intelectual e cultural está sendo perdida. O que pode ser feito? Curadores, artistas e diretores de instituições culturais sérias tentam reagir. Por enquanto, assistimos a tudo isso como um filme. O pior do ano. Talvez do século.
Desbravadora das performances de nudez interativa, a artista sérvia Marina Abramovic escreveu uma carta aberta a Darren Aronofsky, mas um trecho dela pode servir para os artistas que são rechaçados no Brasil de hoje: “Na minha vida, meus primeiros trabalhos dos anos 1970 foram destruídos quando ficaram prontos. Eu era tão mal-avaliada pela crítica, mas agora aqueles mesmos trabalhos são considerados ‘históricos’ e ‘pioneiros’. Você teve a coragem de expor o lado mais sombrio da natureza humana e do amor incondicional. (...) Acho, se não esta geração, mas a próxima entenderá. Uma boa obra de arte tem muitas vidas”.
------------------------------------------------------------------------------------
*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.