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“Não existe mais realidade, a não ser a filmada”

De passagem pelo Brasil, o teórico e crítico de cinema francês Jean-Louis Comolli reflete sobre a relação das pessoas com as imagens na contemporaneidade

TEXTO Fellipe Fernandes

01 de Janeiro de 2014

Jean-Louis Comolli

Jean-Louis Comolli

Foto Ivison/Itaú Cultural/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Perfil" | ed. 157 | janeiro 2014]

CONTINENTE
 Nos protestos de junho, no Brasil, os manifestantes usavam câmeras para filmar agressões e, dessa forma, defender-se das ofensivas da polícia. O que essa espécie de instrumentalização da imagem reflete?
JEAN-LOUIS COMOLLI Precisamos nos remeter a um evento histórico de grandes dimensões, que se produziu no curso do século 20: o poder de produzir e mostrar imagens passou de uma casta de técnicos, especialistas e empresários para todo mundo. Ou seja, hoje, as imagens são do povo. O povo tem o direito e a possibilidade real de fazer imagens, porque os celulares filmam, as câmeras não custam muito caro... E isso é uma revolução. Não uma revolução pontual, no sentido de haver um antes e um depois desse fato. Mas uma revolução lenta. Ela interfere muito na maneira como vemos, como nos relacionamos com as imagens. Não há uma barreira que relega a produção de imagens a uma elite. Elas são de todos. Esse é um acontecimento político bem importante, que podemos observar nos eventos de junho no Brasil. Outra coisa que esses vídeos me fazem pensar é que não existe mais realidade, a não ser aquela que é filmada. Se alguma coisa não é filmada, é menos real, existe menos. Ao mesmo tempo, quanto mais a gente filma, mais substitui o mundo pela sua representação. Paradoxal, não? As nossas lutas, então, não ganham sentido pleno, se não são filmadas e mostradas. Se não filmamos, é como se elas não existissem para o mundo.

CONTINENTE Hoje em dia, temos uma série de curtas-metragens que são feitos para serem difundidos na internet e assistidos pelo computador. Como determinar, com todas as mudanças envolvendo a produção, exibição e distribuição de filmes, se uma obra é ou não cinematográfica?
JEAN-LOUIS COMOLLI A grande diferença, na verdade, é apenas a questão do espaço, a sala de cinema. E não tem a ver com a tela exatamente, mas com a escuridão ao redor dela. Na sala de cinema, há a tela, e tudo em volta é escuro. No computador, no celular, temos o contrário. Vemos o filme, mas também vemos todo o entorno da tela, o nosso entorno... Nós não vemos aquilo que está no escuro. E isso muda muita coisa. A multiplicação das telas nos diz que tudo é visível: tudo está passível de ser mostrado. Assim, o visível se torna a totalidade da nossa relação com o mundo. Isso pode ser observado desde a própria captura da imagem. Quando enquadramos com o celular ou com uma câmera digital menor, nós registramos uma parte, mas no momento da captura enxergamos o todo, um todo que é completamente visível. Enquanto que, com a câmera de cinema tradicional, as coisas são bem diferentes. Antes de mais nada, tem o fato de que filmamos com apenas um olho aberto. E o quadro nos impede de ver o que está ao redor. Vemos apenas o que está no quadro, assim como na sala de cinema. Lá, o espectador é confrontado com uma experiência sensível em que fica óbvio que nem tudo é visível, pois há o escuro.

CONTINENTE E como isso altera a relação do espectador com a imagem?
JEAN-LOUIS COMOLLI Gerar a ideia de que tudo pode ser mostrado reduz o mundo à dimensão do visível. E essa redução – que é falsa, obviamente – não é neutra. Marx já estabelecia uma relação entre o visível e a mercadoria. E, de maneira simplificada, poderíamos dizer que reduzir o mundo à dimensão do visível é reduzi-lo à sua dimensão mercantil. Se tudo é visível, eu posso me apropriar de tudo. Uma ideia completamente falsa e que carrega também um paradoxo. Guy Debord já mostrava que quanto mais a sociedade se espetaculariza, o que é o caso atual, mais os segredos ganham força, o que também é o caso atual, vide todos os processos contra o Wikileaks. E aí fica claro o jogo de poder implícito na visão: não só o poder de mostrar, mas também o poder de esconder. 

FELLIPE FERNANDES, jornalista.

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