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Jean-Louis Comolli: Os limites do visível

Teórico francês, da segunda geração de críticos da Cahiers du Cinéma, investiga estruturas da sociedade contemporânea, em uma reflexão sobre as relações que ela estabelece com as imagens

TEXTO Fellipe Fernandes

01 de Janeiro de 2014

Jean-Louis Comolli

Jean-Louis Comolli

Foto Reprodução

São Paulo havia amanhecido com o sol que desaparecera por trás de nuvens durante a semana anterior. Mas a temperatura não estava muito alta. Sentado no café do hotel, Jean-Louis Comolli, 72, vestia um blazer com um lenço em volta do pescoço. Tomava um copo d’água e, através da parede de vidro, observava o Bairro dos Jardins. Sem falar português, ele presta atenção no que acontece à sua volta. Ainda não tivera tempo de conhecer bem a capital paulista. E provavelmente não o faria nessa estada. Chegara na noite anterior para a palestra que daria no dia seguinte. Era sexta, voltaria a Paris no domingo: uma viagem de trabalho sem muitos momentos ociosos. Veio ao Brasil para participar da mostra Os sentidos da imagem: produção e memória.

A parceria entre o Institut National de l’Audiovisuel (INA) e o Itaú Cultural levou para São Paulo obras produzidas para a televisão francesa, como Horror da luz, de George Didi Huberman e André Fieschi, e Um dia Pina pediu, de Chantal Akerman. No texto de apresentação, a curadora da mostra, Daniela Capelato, ressalta que a filmografia do evento “é exemplo de que a televisão, como veículo de massa e meio de comunicação, pode produzir conteúdo de relevância histórica e artística”. Na palestra que aconteceria no dia seguinte, Comolli falaria sobre como a construção da sociedade contemporânea passa pela questão das imagens: quem as produz, quem as vê e quais as negociações simbólicas estabelecidas a partir delas.

Não foi a única vez em que esteve no Brasil em 2013. Meses antes, aportou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para participar de um seminário. Mantém uma relação de proximidade intelectual com pesquisadores daquele centro universitário, no qual participa de congressos, palestras e aulas especiais. Seus escritos sobre cinema-documentário são bibliografia quase obrigatória para estudos do gênero. Mas, a partir da reflexão sobre as relações estabelecidas com a imagem, Comolli vai além da arte cinematográfica e investiga as estruturas da sociedade contemporânea.

Quando me aproximo das mesas de café do hotel, ele está terminando de conversar com outro jornalista. No fim da conversa, os dois apertam as mãos. O jornalista deixa uns papéis com Comolli. Ele dobra e guarda dentro de um livro que leva à mão. Somos então apresentados. Com um ar bem-humorado e olhar atento, ele desfaz qualquer estereótipo que relaciona a figura de um intelectual a alguém sisudo e longe da realidade. Vez por outra, abre um sorriso meio rouco. Senta e pede água.


Comolli costumava frequentar assiduamente a cinemateca francesa,
na época dirigida por Henri Langlois. Foto: Divulgação


Henri Langlois. Foto: Divulgação

DA CINEFILIA À CRÍTICA
O teórico francês pertence à segunda geração de críticos da Cahiers du Cinéma, revista expoente do cinema francês fundada por André Bazin (junto com Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca). Comolli foi um dos líderes intelectuais da publicação parisiense entre 1966 e 1971, período em que atuou como seu redator-chefe. Confessa que, quando jovem, não pensava em trabalhar com cinema em nenhuma das frentes em que atuou ao longo da vida (crítica, produção e pesquisa teórica). As coisas foram acontecendo por acaso, atendendo menos a um plano e mais aos desejos que surgiam. “Antes de qualquer coisa, somos todos espectadores”, lembra, apontando a posição como ponto inicial de qualquer trajetória. Diante da espetacularização da sociedade, aspecto bastante debatido em seus textos, de fato, somos todos espectadores. Hoje, no entanto, mais que isso, somos também produtores de imagem.

Ele costumava frequentar assiduamente a cinemateca francesa, na época dirigida por Henri Langlois. Era início da década de 1960. Quando Eric Rohmer, então redator-chefe da Cahiers du Cinéma, pediu a Langlois indicação de pessoas que pudessem substituir os colaboradores que deixavam a redação para se dedicar à realização cinematográfica (o que incluía boa parte da geração nouvelle vague, como Truffaut, Godard e Chabrol), seu nome foi sugerido.

“A gente estava sempre ali, assistindo aos filmes. E Langlois acabava conhecendo todo mundo que aparecia constantemente na sala de cinema.” Assim passou da cinefilia à crítica, em 1962. Alguns anos depois, chegaria também à direção, estreando com um documentário sobre Maio de 1968. “Com a realização, compreendi coisas sobre o cinema que, até então, não tinha compreendido. E, nesse sentido, foi importante ter escolhido o documentário, porque é uma produção mais simples. Tem um número menor de técnicos e pessoas envolvidas, então fica mais fácil refletir sobre o ato e a linguagem cinematográfica.”

A experiência prática o levou para a produção teórica. Hoje, professor das universidades Paris 8 (França) e Pompeu Fabre (Espanha), além de colaborador das revistas Trafic e Images documentaires, ele diz que é difícil separar as atividades de crítico, realizador e pesquisador. Elas fazem parte de um mesmo todo: fazer cinema. “Fazer filmes e pensar cinema é a mesma coisa”, garante. “A gente pode pensar com as palavras, mas também pode pensar com os gestos, com os atos, com as escolhas... E eu acredito que o cinema é uma máquina de pensar, para o realizador e para o espectador, porque a todo momento somos obrigados a fazer escolhas e tomar decisões diante da imagem que fazemos ou vemos.”

O ESPECTADOR
Parte fundamental do pensamento expresso nas obras de Comolli gira em torno da figura do espectador. A partir da reflexão sobre como são vistas as imagens produzidas pela sociedade contemporânea, sejam elas cinematográficas ou não, compreendemos um pouco das forças estéticas e políticas envolvidas em sua produção e exibição. Em seu livro mais popular, Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário (lançado no Brasil em 2008 pela Editora UFMG, uma compilação de artigos e discursos em palestras e debates), ele discute a própria crença nas imagens e o posicionamento do espectador em relação a elas. Publicados juntos em 2004, pela primeira vez, os textos investigam as relações estabelecidas na imagem do cinema-documentário, bem como na televisiva, numa tradição analítica que remete a pensadores como Karl Marx e Guy Debord.


Crítico atuou como redator-chefe da revista Cahiers Du Cinéma
entre 1966 e 1971. Imagem: Reprodução

O livro, por pouco, não testemunha fenômenos que centralizam discussões presentes em seus escritos, como o YouTube. O site de compartilhamento de vídeos foi criado um ano após a primeira edição francesa de Ver e poder. A popularização de celulares com câmeras capazes de gerar vídeos com imagens bem-definidas também é mais recente. Juntos, os vídeos produzidos por celular e o compartilhamento online ecoam profundas transformações na relação do espectador com a imagem, já anunciadas por Comolli. “Com a multiplicação das telas, passamos a acreditar que tudo é visível.” A inocência em relação à imagem é cada vez mais rara e o espetacular parece alcançar de vez sua máxima expressão, superando publicidades e programas televisivos, com os posts e compartilhamentos de vídeos na internet.

“Para além da capacidade de registrar, o cinema inventou a capacidade de transportar a vida filmada. Essa foi uma grande novidade”, lembra o pesquisador. Esse fato ganhou outros contornos e potências ainda mais delineados com a simultaneidade gerada pela televisão. Uma imagem passa a ser transmitida para vários lugares ao mesmo tempo. E a internet nos insere num novo cenário: “Estamos todos ligados, espectador e realizador. Era o que sonhava Dziga Vertorv, ligar toda a população russa através das imagens”.

Vemos, então, ao esforço de um clique, o vídeo de um bebê que se emociona ao ouvir a mãe cantar, de um tsunami que devasta uma cidade, ou de um policial militar que arbitrariamente ataca pessoas com gás lacrimogênio, num dos episódios das manifestações ocorridas nas capitais brasileiras, em junho do ano passado. Registrada e passível de ser transportada, a imagem se torna memória. Assim, ao olharmos imagens dos protestos, é possível que lembremos não apenas aquilo que presenciamos, mas também as cenas às quais assistimos pelo computador, televisão ou celular. E essas talvez nos passem tanta sensação de realidade quanto as testemunhadas pessoalmente. “Estamos reduzidos à dimensão do visível. Só existiu, só é real, aquilo que pôde ser registrado”, pontua Comolli.

Diante disso, uma questão pode ser elaborada: existe algo irrepresentável, algo que não pode ser mostrado? Para o teórico francês, isso nos leva a dois pontos. Primeiro é preciso lembrar que nem tudo referente ao poder é acessível e, portanto, mostrável. “Quanto mais a sociedade se espetaculariza, mais os segredos são reforçados.” O segundo ponto que impõe limites ao visível é a ética. Não a do espectador, pois esse responde a uma pulsão escópica. Mas a do produtor da imagem. “Há uma responsabilidade no gesto de mostrar, assim como há no de esconder, no de escrever, no de falar... E, nesse momento em que há uma abundância de imagens, a responsabilidade de mostrar alguma coisa é ainda maior”.

Depois de uma hora de conversa, Comolli finalmente está livre dos compromissos oficiais, o jornalista que falaria com ele na sequência desmarcou. Ele avisa à assessora que vai voltar para o quarto, está cansado. Os cabelos grisalhos, penteados para trás, parecem arrumados com um tipo de creme que não deixa fio algum fora do lugar. Cortês, despede-se sorrindo. Na saída do hotel, lembro que não tiramos fotos da entrevista. Nenhuma imagem daquela manhã. Lamento. Lá fora o sol está ainda mais forte e faz a temperatura subir. 

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