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Peregrinações musicais

TEXTO Leonardo Martinelli

01 de Julho de 2011

Imagem Reprodução/Gravura de Eugène Delacroix, para 'Fausto'

[conteúdo vinculado ao especial | ed. 127 | julho 2011]

O século 19 testemunhou uma enorme
mudança no status da música. Se, anteriormente, músicos das mais diversas categorias tendiam a ser tratados como serviçais, a partir de então eles seriam alçados à condição de verdadeiros rock stars no período que ficou conhecido como Romantismo. Na época, o crítico inglês Walter Pater chegou mesmo a afirmar que “toda arte aspira constantemente à condição de música”.

Um dos resultados dessa verdadeira apoteose sonora foi uma inédita autonomia experimentada pelos mais célebres músicos do período, principalmente econômica, que se constituiu base para a independência artística, a partir da qual os compositores passaram a realizar seus projetos guiados mais por suas experiências e sentimentos íntimos do que pelos desejos e caprichos de um nobre ou monarca.

Projetado ao estrelato por seu incrível talento como pianista, a estrada era o caminho natural para o jovem húngaro Ferencz Liszt. Conforme foi ganhando idade e maturidade artística, o menino-prodígio do piano passou a realizar suas primeiras composições, testamentos gráficos de sua excepcional habilidade técnica.

Analisando as centenas de títulos que integram o catálogo de sua extensa e diversificada obra – além de peças para piano, compôs sinfonias, poemas sinfônicos e uma série de composições vocais –, é notória a estreita relação existente entre seus trabalhos e os temas e questões que interessaram Liszt ao longo de sua vida. Não faltam associações de suas realizações artísticas com os diversos amores (quase sempre proibidos) que teve em vida, tal como a condessa Marie d’Agoult e a princesa Carolyne von Sayn-Wittgenstein. Porém, outros temas mostram-se igualmente essenciais em sua vida e obra, em especial, reflexões de caráter místico e religioso e a perigosa proximidade da humanidade com forças maléficas.

Entre as composições de caráter místico, estão – além daquelas notoriamente sacras, como o seu Pai nosso – as meditativas, tais como suas Harmonias poéticas e religiosas, a suíte Árvore de Natal, asConsolações e as Légendes, verdadeiro oratório pianístico em honra a São Francisco de Assis e São Francisco de Paula. Essa cultura religiosa de Liszt foi vastamente alimentada ao longo das diversas amizades que travou com místicos e religiosos católicos de seu tempo, inclusive o papa Pio XI, de quem foi amigo, quando radicado em Roma.

O lado oposto dessa faceta celestial são as peças de natureza diabólica, nas quais reina a figura de Mefistófeles, o famoso satã de Fausto, obra máxima do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. O tema, verdadeira obsessão em Liszt, surge em sua forma mais grandiosa na monumental Sinfonia Fausto, mas de forma igualmente impactante no ciclo de quatro Valsas Mefisto, que compôs para piano solo. Em Liszt, o monstruoso e o sublime ocupavam o mesmo espaço criativo, e não raro ele se dedicava de forma simultânea a projetos conceitualmente antagônicos.

Outro testemunho dos encontros e experiências vividas por Liszt está na extensa série de transcrições e paráfrases de obras de outros compositores, todos eles pessoas que conheceu em vida. Numa época em que, para ouvir música, era necessário tocar um instrumento (e não apenas apertar o play de um aparelho elétrico), Liszt não se cansava de fazer arranjos, para piano, de peças de seus colegas, entre os quais se destacam aqueles sobre óperas da Rossini, Verdi e Wagner (de quem também foi amigo e que se tornaria marido de sua filha, Cosima).

Entretanto, é com os três volumes de seus Anos de peregrinação que Liszt coroa a simbiose entre experiência de vida e atividade artística. Compostas entre 1848 e 1867, as diversas obras contidas neste ciclo constituem verdadeira crônica sonora nas quais as impressões de viagens a países como Suíça e Itália (que batizam os dois primeiros volumes) ganham corpo em forma de partitura.

À época, ovacionado como pianista, ao estreitar a relação entre vida e obra, Liszt confere profunda dimensão emocional à sua música, destacando-se entre outros compositores-pianistas de sua geração (à sua altura estão apenas Schumann e Chopin), o que torna a sua obra, ainda hoje, moderna e instigante, seja por sua exuberante sonoridade, seja pelos traços de uma vida intensa que elas evocam. 

LEONARDO MARTINELLI, Compositor e professor, com graduação e mestrado pelo Instituto de Artes da Unesp.

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