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Livro infantil é responsabilidade social

TEXTO Lourival Holanda

01 de Outubro de 2011

A obra de monteiro Lobato 'Sítio do Pica-pau amarelo' é responsável pela formação de várias gerações de leitores brasileiros

A obra de monteiro Lobato 'Sítio do Pica-pau amarelo' é responsável pela formação de várias gerações de leitores brasileiros

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 130 | outubro 2011]

Hoje, nas grandes livrarias, há sempre um espaço
reservado às crianças. Resta saber se ele foi conquistado por nossa responsabilidade social, ante a importância dessas figurinhas, ou mais uma conquista de um mercado – que ali melhor se alarga: são cifras consideráveis. Qualquer produto, caindo no campo do negócio, perde essas ambiguidades. No mundo editorial, não é muito diferente, no caso. O mercado administra todos os gêneros que circulam sob a rubrica infantojuvenil. Se um texto tem maior ou menor qualidade? Venda-se primeiro: o sucesso de venda serve de consenso; portanto, faz as vezes da qualidade; mesmo se, quase sempre, ali ausente.

Depois do mercado, vem a legitimação: os prêmios, os simpósios, o espaço nas diretrizes curriculares, os congressos. A rapidez de tal manobra deu um curto-circuito em nossa capacidade de pensar o fenômeno? A infância era vista como uma nebulosa, coisa distante desprendendo fulgor sobre a vida adulta exangue; lugar de peregrinação onde cada qual voltava para se refazer. (Tanto no sentido da reorganização de si, do divã psicanalítico, quanto na acepção poética de reencantamento potencial).

E, no entanto, a literatura infantil é um trunfo e uma aposta formidáveis: ali se repassam os sistemas de valores, costumes, crenças, enfim, uma visão de mundo legada por dada organização social, política. Pensar em literatura infantojuvenil é estar atento ao ideológico que subjaz no direcionamento mercadológico. Afinal, são valores transformados em narrativas. (… a menos que valores fique apenas em seu sentido imediato, de cifras). O grande público traz incrustadas em si formas de sentimento que circulam na primeira infância. Os textos dessa idade, enquanto informam sobre o mundo, formam nossa sensibilidade.

Literatura infantojuvenil, formação, pedagogia: tudo variação de nossas primeiras viagens. A Odisseia deu ao jovem grego o desejo de sair de si, de ver o mundo; isso fez Ulisses mais esperto. O mundo árabe do século 9 traz a Adab, um código social aprendido já desde a escola, veiculando valores, crenças, costumes que fundam aquele grupo social. Julio Verne ou Monteiro Lobato formaram gerações, e serviram de plataforma de voo para muitas criações posteriores. E nem os entusiasmos delirantes de um nem as ocasionais limitações do outro, nada disso os diminuiu. Porque tinham uma concepção muito clara da importância da literatura infantojuvenil na formação de leitores permanentes de literatura.

É claro que a noção de literatura infantojuvenil é moderna, só aparece no século 19, editoras e capitalismo crescentes. Os textos anteriores não eram pensados exclusivamente para crianças. Havia as fábulas de Esopo, as historietas bíblicas e o fértil imaginário da oralidade. A literatura tem aqui seu chão. Tudo o mais é expansão; do conto com marcada pretensão moralizante até os games, na larga videosfera atual.

Em 1695, Charles Perrault (A bela adormecida) defendia já esse tipo de registro dedicado aos menores. Via ali uma aposta preciosa. Talvez um dos primeiros textos com dimensão global tenha sido Alice no país das maravilhas, em 1865. O encantamento já preparava um questionamento sobre a realidade dada. Depois, A ilha do tesouro – seguindo a matriz da viagem e descoberta; de si e do mundo. A navegação na internet não está distante: o gosto da descoberta, do maravilhamento, da curiosidade. O menino que usa o Google, como um aliado, tem menos chance de ser um alienado. Trata-se aqui de um outro letramento; aprender a ler o mundo tal como ele se apresenta. Como aqueles infantes que fomos, ouvindo histórias (no início, a leitura nem era tão disseminada ainda), os de hoje formam também o imaginário pelo visual. A cultura contemporânea é mais visual que apenas verbal.

Mas, por definição, essa literatura tem um público específico. O caráter de edificação, de manipulação – moral e política – não deve escamotear a responsabilidade com a formação. Os quadrinhos, os mangás, os games – são, de certo modo, um encontro com a realidade: dos problemas de adequação ao mundo adulto às gangues de rua ou interestelares. O sucesso dos mangás pode se dever à agilidade da narrativa; agrada aos mais jovens esse desfechar de energias rápidas – ainda que os cenários sejam simplistas e a ação se sobreponha ao questionamento sobre o que origina os embates; ainda que banalizem a agressão, quase como único modo de afirmação de si.

Os novos suportes, os lugares onde atualmente eles jogam, leem e criam histórias, revolucionam os modos de leitura. Criam-se novas habilidades de contar histórias; e, no entanto, toda essa maneabilidade guarda um link com a permanente necessidade de desenvolver o imaginário, esse trunfo supremo da liberdade humana. A narrativa aqui é mais fluida, de acordo com a habilidade que eles desenvolvem (e nos espantam): usando o Google Maps, MSN, chatbots, alargando o contexto narrativo. Mas o lúdico alarga a compreensão do mundo na atual hibridização das mídias. O tempo é deles. Cabe à responsabilidade dos pais e da escola pensar como instrumentalizar, que referenciais oferecer para essa entrada no mundo. A literatura infantojuvenil é ainda essa sementeira de sonhos.

Do texto à tela – do cinema ou do computador –, o desafio é o mesmo: como educar na consciência do mal no mundo, sem, no entanto, levá-los nem ao desespero nem ao cinismo. Enfim, apostar numa geração melhor que a nossa. Daí o cuidado da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco – com a edição e a mediação junto a esse público mirim encantador. A linha editorial infantojuvenil, que agora se inicia, marca a preocupação, o cuidado e a urgência em estar presente à formação desses atores sociais quase emergentes.

Entregar à criança tudo o que o mercado produz, sem mediação, é entregar a criança ao mercado. Quem vai ajudá-la a fazer a triagem, na massa de produções que se avoluma a cada semana? Quem se perguntará o que o texto, de fato, propõe? Qual a aposta no futuro? A responsabilidade do Estado, da Escola, dos pais, é enorme. Há ali um trabalho subliminar esculpindo, em silêncio, gostos e valores.

Quem seleciona, publica ou compra – uma procuração passada pela cultura –, não deve esquecer que a literatura dita infantojuvenil carrega os desejos, as ambições, as aspirações, os medos do adulto que escreve o texto. Há um homem projetado ali; ainda que projetado apenas em linhas de força (espera-se que nunca em decalque: repetir, aqui, é negar a educação no seu sentido mais largo).

E, no entanto, a criança é essa fragilidade totipotente: no pior e no melhor, tudo pode estar ali. Ainda é possível pensar a educação na contracorrente dessa realidade. A violência até pode ser natural, mas a convivência e a paz, no entanto, são conquistas conjuntas. A literatura infantil, ou a literatura, simplesmente, pode contrapor à rudeza do real, uma oportunidade de despertar, desde a infância, um desejo de dias melhores. 

LOURIVAL HOLANDA, escritor.

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