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Chega de literatura para crianças

TEXTO Cristina Almeida

01 de Outubro de 2011

Autores “para adultos” assinam excelentes livros para crianças, como Adélia Prado, em 'Quando eu era pequena', ilustrado por Elizabeth Teixeira

Autores “para adultos” assinam excelentes livros para crianças, como Adélia Prado, em 'Quando eu era pequena', ilustrado por Elizabeth Teixeira

Ilustração Reprodução/Elizabeth Teixeira

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 130 | outubro 2011]

Ex-libris
é uma parte importante do livro
que é posterior à publicação, a contribuição do leitor ao projeto gráfico de um objeto recém-adquirido e selado como propriedade particular. Em adesivo ou carimbo, demarcar um território no livro é sinal de uma paixão que pode passar de pais para filhos: compor uma biblioteca pessoal. Para essa composição, é fundamental eleger. Ler é escolher, já disse Paul Valéry, e escolher é julgar, um dos princípios da crítica literária. Recentemente, o clipe Linhas e letrinhas, do DVD Vem dançar com a gente (2011), do grupo Palavra Cantada, toca nesse ponto: “Como pode um homem vivo/ Viver fora de um bom livro/ Se no livro, tem as linhas/ E nas linhas, as letrinhas/ Pra ler/ E reler/ Ler e reler/ Tem livro que é bem grosso/ Tem livro que é de bolso/ Tem livro que é curioso/ Faz bem pra mim/ Tem livro de relato/ Tem livro que é um barato/ Monteiro Lobato/ É bem assim/ Até pra tirar soneca é gostoso de ler/ Basta entrar na biblioteca e escolher...”

Escolher um bom livro envolve muitas questões, tanto mais quando o leitor é criança e ainda não foi alfabetizado. Temas construtivos, imagens que exploram traços, cores e texturas agradam bastante e são essenciais nos livros direcionados a esse público. Mas quando a intenção é a educação literária, tudo isso não é suficiente, se a palavra trabalhada no poema ou na narrativa não preza por valores estéticos. Já existem no Brasil clássicos sobre a história e teoria da literatura infantojuvenil, como os livros de Nelly Novaes Coelho, Lígia Cademartori, Ana Maria Machado, dentre outros importantes para a biblioteca dos professores aos quais os pais muitas vezes confiam a seleção de livros para seus filhos. No entanto, a crítica literária especializada sobre esse assunto em livros ou suplementos culturais é rara. No ano passado, a tradução tardia do livro Crítica, teoria e literatura infantil, de Peter Hunt, denuncia a carência da crítica literária sobre livros para crianças. Hunt lamenta que a apreciação estética seja vista como inacessível a esse público. E questiona a existência de resenhas descritivas e motivadoras, que muitas vezes não correspondem à especificidade da crítica, o julgamento da obra pela estética e não pela ética.

Na estante de livros de uma criança, são usuais Adélia Prado, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro, Manuel de Barros, Fernando Pessoa, José Saramago, Mia Couto, se ficarmos apenas em alguns dos autores em língua portuguesa consagrados pela crítica literária para “adultos” e que escreveram livros da literatura infantil. No texto Livros para crianças, o crítico literário Anatole France, já no começo do século 20, faz uma consideração pouco vigente nas resenhas de livros infantis, antecipando Hunt. Para o francês, “as obras que mais agradam aos garotos e às meninas são as grandiosas, cheias de grandes criatividades, nas quais a boa disposição das partes forma um conjunto luminoso, e que são escritas num estilo forte e carregado de sentido”.

Referências às “obras grandiosas”, a “boa disposição das partes” (imagem e letra), “estilo forte e carregado em sentido” nos remetem às qualidades estéticas de uma literatura atemporal e sem limite de faixa etária. Harold Bloom afirma não gostar da expressão “literatura para crianças” ou “literatura infantil” porque, para ele, tal categoria “é, muitas vezes, a máscara de um emburrecimento que está destruindo nossa cultura literária. A maior parte do que se oferece nas livrarias como literatura para criança seria um cardápio inadequado para qualquer leitor de qualquer idade em qualquer época”. Essa indignação do crítico, devida à ausência de valores estéticos em alguns livros para crianças, mostra que o mercado editorial, muitas vezes, não considera a tradição literária. Por isso, a necessidade de elaborar a antologia Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades, organizada por ele em quatro volumes, com textos de autores como John Keats, Lewis Carroll, Walt Whitman e outros gênios do cânone ocidental.

A concepção de literatura que vamos escolher para as crianças está em questão e a crítica literária especializada poderia escrever mais sobre o assunto. Do que a literatura significa para os pais e professores, suas concepções literárias, dependerá a composição da biblioteca dos pequenos. Quanto mais cedo a criança tiver acesso a livros literários, mais ela poderá ser um leitor seletivo e considerar também os critérios estéticos. Pensar a formação crítica dos pais e do futuro professor de literatura dessa criança é fundamental; eles precisam refletir de forma permanente as concepções de literatura, pois do julgamento de obras depende a seleção desses mediadores imediatos e futuros das escolhas que as crianças farão mais tarde.

Cada obra literária promove uma reflexão singular sobre a literatura daquele escritor e época, mas, para João Alexandre Barbosa (2006), uma concepção de obra literária construída na modernidade, e ainda muito importante nos dias atuais, vale para livros de todas as idades. Trata-se de uma literatura regida por “novas configurações”, mesmo com temas recorrentes, os poemas escolhidos considerariam o trabalho “essencialmente de linguagem”, e a narrativa, “a perspectiva ou a criação de personagens”, critérios inovadores e ao mesmo tempo relacionados à tradição literária.

Em Quando eu era pequena (2007), de Adélia Prado, a narradora Carmela conta para os leitores as memórias de infância, desde seu nascimento em 1932. O que poderia ser um lugar-comum é reconfigurado pelo modo de contar: o que eu conto é como conto. Além da temática ética da valorização da memória familiar, a forma utilizada, o que enreda a memória são os recursos estéticos: recuperação do narrador - contador de história dos princípios. “A coisa mais boa é ver pai e mãe com cara alegre”, o que para alguns significa simples transgressão à norma -padrão, algo incorreto, mostra a força poética da oralidade, a criança começa a compor sua fala com uma gramática internalizada, sem exceções.

O texto é intertexto e nos leva a outros enredos, ligados ou não ao universo infantil; a importância da imagem do Sítio do Pica Pau Amarelo aparece à Carmela como referência à fuga da cidade sem o deslocamento, a fazenda da avó é o reino da fantasia. Apresentação de prazeres antigos, como a mãe ler para o filho, livros decorados, e a leitura em voz alta do pai recupera mais uma vez o narrador original. Chama a atenção a beleza das metáforas sobre o desejo: “Quando eu era pequena, eu queria que o céu fosse parecido com o nosso quintal...” e a reflexão sobre a recriação da língua pela poesia: “Quando fiquei adulta, descobri uma coisa: aquela língua esquisita que eu inventei se chama poesia”. Há um contato direto com o mundo da criança, especialista em querer e inventar línguas.

A seleção de livros para crianças, com base em critérios estéticos, associada à noção de maternagem, como propõem Rubem Alves e Roland Barthes, deitar a criança no colo e amamentar a alma, transformaria um ritual fisiológico em simbólico. Numa ressignificação de Sherazade, que lia para não morrer. A última história da noite é suspensa pela frase clássica “continuo amanhã”, a história não finda com o silêncio, mas acolhe o sonho, espaço aberto para as histórias do inconsciente.

Quando os pais não procuram informações da crítica para escolher livros com valores estéticos ou o jornalismo cultural não investe nessa faceta, a escola fica com a responsabilidade de oferecer estrutura por meio da formação especializada de mediadores de leitura nas bibliotecas e salas de aula. É importante pensar os conteúdos, as imagens, mas sempre atrelados ao valor estético presente em narrativas originais, nos poemas inventivos, nos clássicos universais e até mesmo nas adaptações repaginadas. 

CRISTINA ALMEIDA, professora de Língua Portuguesa e Literatura e doutora em Teoria Literária.

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