FOTO LÉO CALDAS
01 de Dezembro de 2010
Na Toca do Boqueirão, vestígios de fogueira e material lítico remontam a 100 mil anos BP
Foto Léo Caldas
[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 120 | dezembro 2010]
O maior desafio dos pré-historiadores brasileiros é descobrir quando chegaram e como se espalharam os grupos humanos que viveram há dezenas de milhares de anos pela América tropical. “O que até agora comprovamos é que houve ocupação humana bem anterior ao que se pensava, o que obrigou os pré-historiadores americanistas a reformular as teorias tradicionais da Beríngia”, explica a espanhola, radicada no Brasil, Gabriela Martin.
Na atualidade, já se sabe que a ocupação deve ter ocorrido por vários trajetos, em diversos períodos. A tese mais conservadora é a de que o ingresso teria se dado em torno de 15 mil anos BP pelo Estreito de Behring – no caso da América do Sul, a data decresce para 12 mil anos BP –, que, na era das glaciações, se tornou um enorme istmo entre a Sibéria e o Alasca.
A teoria da Beríngia foi reajustada. “Pressupõe-se que podem ter havido duas entradas pela Beríngia, em períodos distintos: a continental, que seria a mais recente, quando caçadores ultrapassaram a pé o istmo; e a litorânea, quando balsas devem ter margeado a costa oeste americana, descendo até o extremo sul do continente”, explica Daniela Cisneiros, professora do departamento de Arqueologia da UFPE.
Outro percurso provável é de que o homem teria chegado à costa da América do Sul proveniente do Pacífico Sul, navegando de ilha em ilha. Probabilidade que encontra respaldo em datações radiocarbônicas feitas na Austrália, Nova Guiné e Papua, que revelaram presença humana a partir dos 60 mil anos BP, e que poderiam justificar datações feitas no Sítio do Boqueirão da Pedra Furada, localizado na Serra da Capivara, Piauí, que registra a presença humana a partir de 59 mil anos BP.
Seriam os piauienses descendentes dos oceânicos? “Por enquanto, é impossível responder com absoluta certeza se as duas datas têm correlação. As teses sobre as origens do homem pré-histórico nordestino encontram-se em fase de construção”, responde Daniela.
PARENTES AFRICANOS
Doutora em Arqueologia pela Sorbonne, e presidente da Fundação Museu do Homem Americano, a paulista Niède Guidon é considerada uma referência em estudos arqueológicos. Foi a principal responsável pela descoberta e mapeamento, nos anos 1970, dos sítios da Serra Capivara, no Piauí. Aos 78 anos, 50 deles dedicados ao estudo da pré-história brasileira, trabalha com teses ousadas. A mais polêmica delas afirma que o homo sapiens chegou à América muito antes do que se pensa, por volta dos 120 mil anos, e que teria vindo da Africa. Defende, também, que o desembarque teria acontecido em dois pontos: no Caribe e no litoral norte do Brasil, próximo ao atual rio Parnaíba.
A hipótese utilizada para fundamentar sua proposta se pauta no seguinte argumento: ela acredita que, há cerca de 150 –120 mil anos, o Oceano Atlântico foi afetado pelos avanços e recuos das glaciações, o que ocasionou a redução de até 150 metros dos seus níveis. Período em que várias ilhas afloram em toda a extensão oceânica, permitindo que levas de homo sapiens tenham atravessado e chegado ao Brasil em balsas.
“Se, há alguns milhões de anos, espécies de primatas passaram da África para o Brasil, navegando sobre troncos de árvores, como afirmar que o homo sapiens não teria também atravessado o Atlântico utilizando balsas? O povoamento da Ilha das Flores (no Atlântico Norte) prova que o homo navega há mais de 840 mil anos”, afirma Niède, que detalha a chegada: ao aportar no Nordeste, alguns grupos seguiram pela costa e alcançaram a Amazônia, outros optaram por margear o rio Piauí, um dos afluentes do Parnaíba, que corria na grande depressão da planície periférica do São Francisco. Daí se espalharam por todo o território.
Ela não tem, ainda, as provas consideradas irrefutáveis, as ossadas, que afastariam qualquer dúvida sobre a questão. Mas se convenceu de que estava certa ao encontrar evidências de presença humana, vestígios de fogueira e material lítico, remontando a 100 mil anos BP, no sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, na Serra da Capivara.
NATUREZA ABUNDANTE
Se ainda não podem confirmar as rotas utilizadas para o povoamento da América do Sul, os arqueólogos afirmam com segurança que os primeiros homens que aqui chegaram assemelhavam-se aos índios atuais. “Racialmente, pertenciam aos grupos mongoloides, como, aliás, todos os habitantes das Américas anteriores à colonização europeia”, diz Gabriela Martin.
Apesar dessa proximidade, não é possível fazer correlações entre os povos pré-históricos e as tribos hoje conhecidas. “Existe ainda um abismo entre a pré-história e a história indígena, pois se quisermos fazer uma ligação entre as pinturas rupestres e as tradições indígenas, não encontraremos nada, pois nenhuma tribo apresenta esse tipo de registro. Nos inúmeros relatos dos portugueses durante o Descobrimento, fala-se de cerâmica, mas não das pinturas em cavernas, apenas das corporais. Portanto, diríamos que, nesse caso, ainda temos muito a pesquisar e nada a afirmar”, explica Daniela Cisneiros.
O clima do Pleistoceno superior também era diverso do atual. Pesquisas realizadas por Niède Guidon sobre o paleoclima, no sudeste do Piauí, comprovaram que a paisagem da planície piauiense era de savana, com tufos de arbustos recortados por zonas florestais. Um clima muito mais úmido do que o atual. A desertificação da região, portanto, foi um processo contínuo e lento que se estendeu pelos últimos milhares de anos.
Desenhos de enterramentos encontrados no Sítio do Justino (SE)
De uma forma geral, os chamados brejos de umidade foram fundamentais para a presença do homem, atuando como lugares de atração e concentração, em que as estratégias de sobrevivência dos pré-históricos puderam se desenvolver. Tanto que localidades como a região serrana de Taquaritinga do Norte e Vertentes até Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, todas áreas de brejo pernambucano, foram habitat dos caçadores pré-históricos.
CULTURA PRIMITIVA
O cotidiano daqueles “guerreiros” não era fácil. É provável que tenham se deparado com animais desmesurados, como a preguiça gigante, que podia alcançar até quatro metros de altura, ou com o tigre-dentes-de-sabre e o mastodonte, visto que esses animais, considerados da megafauna, viveram no Nordeste no mesmo período do Pleistoceno, no qual o homo também circulava pela região. “O que não é garantia que tenham convivido com o homem”, ressalva Gabriela. Portanto, que ninguém se engane: apesar de caçador, nômade ou seminômade, o homem pré-histórico não se alimentava de grandes animais, como se fixou no imaginário mundial. Ele era o que se convencionou chamar de “comedor de microfauna” – roedores, caracóis, lagartos e insetos –, tal a quantidade de pequenos ossos encontrados em alguns sítios arqueológicos.
“No Novo Mundo – com exceção dos criadores de perus, no México e no Sul dos Estados Unidos; dos patos almiscarados, no México; e do rebanho de lhamas e alpacas, nos Andes Centrais –, não houve qualquer domesticação de animais com aproveitamento econômico”, aponta Gabriela.
Com o passar do tempo, a agricultura incrementou o cardápio dos nossos ancestrais. Tudo indica que, no Nordeste do Brasil, ela se desenvolveu no terceiro milênio BP, com agricultores sobrevivendo a partir de pequenas roças de subsistência. A mandioca foi o principal cultivo e o alimento básico de grande parte daquelas populações.
A cerâmica, também inventada na América, pode ter sido utilizada a partir do oitavo milênio BP, no Sítio do Meio, no Piauí, e em Santarém, na Bahia. “Deve-se aceitar a cerâmica como uma invenção autóctone e independente no continente sul-americano”, afirma Gabriela, que observa: “a constatação de cerâmica indica grupamentos sedentários”.
O culto aos mortos, observado através dos enterramentos e disposição dos corpos, também fornece boas pistas sobre nossos antepassados.
“Os conhecimentos que temos dos rituais funerários no interior do Nordeste apoiam-se principalmente em quatro sítios-cemitérios, entre eles a Gruta do Padre, em Petrolândia; a Furna do Estrago, em Brejo da Madre de Deus; além da Pedra do Alexandre, no Rio Grande do Norte, e do Sítio do Justino, em Sergipe“, enumera Gabriela.
Na Gruta do Padre, os rituais funerários foram sempre secundários, ou seja, os ossos foram transferidos para o local, o que indica que a caverna era usada não como cemitério, mas como ossário. Já em Brejo da Madre de Deus, mais de 80 esqueletos possibilitaram o estudo dos rituais funerários. Os enterramentos mais antigos mostram corpos em posição flexionada, embrulhados em esteira vegetal. Recém-nascidos eram enterrados em pequenas cestas de fibras de palmeiras, ou embrulhados em esteiras de ouricuri. “O ritual e o mobiliário fúnebre permitem-nos inferir comportamentos sociais”, atesta Gabriela.
LENDAS MARCAM PESQUISA DE CAMPO
A pesquisa arqueológica do Brasil nasceu graças à curiosidade e persistência dos viajantes, naturalistas, etnólogos, geólogos e paleontólogos estrangeiros. E as primeiras versões criadas em torno do país vinham, quase sempre, envoltas em lendas e crendices.Os primeiros relatos sobre a pré-história brasileira misturam dados científicos com fantasias sobre civilizações perdidas.
O mito fenício foi um dos primeiros a ser difundido, tendo sido reafirmado por vários pesquisadores. O alagoano Ladislau Neto, diretor do Museu Nacional do Rio, encantado com a cultura fenícia, defendeu a tese de que esse povo da antiguidade havia chegado à Paraíba e deixara inscrições no local.
O viajante austríaco Ludwig Schwennhagen, que percorreu os sertões nordestinos nas décadas de 1910 e 1920, acreditava terem os fenícios chegado e se instalado, por mais de um milênio, no território brasileiro.
No livro Antiga História do Brasil, de 1110 a.C. e 1500 d.C., publicado em 1928, Schwennhagen elabora um tratado sobre a viagem dos fenícios ao Brasil, e – impressionado com as formações geológicas do município de Piracuruca, hoje transformado no Parque Nacional de Sete Cidades – supôs que ali estariam as sete fabulosas cidades do império colonial fenício de além-mar. Suas pesquisas fantasiosas em torno de inscrições rupestres levou-o a imaginar a existência de várias cidades fundadas da união entre fenícios e troianos no Brasil, entre o Maranhão e o Piauí, das quais a mais importante seria Tutoiá. Com o tempo, ficou comprovado que tudo não passava de um delírio criativo do alemão.
DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.
LÉO CALDAS, fotógrafo.
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