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Cantando, eu mando a tristeza embora

A jornada da cantora e compositora carioca Teresa Cristina, de estrela do circuito boêmio na Lapa até se tornar a Rainha das Lives

TEXTO Débora Nascimento

01 de Dezembro de 2020

A artista Teresa Cristina

A artista Teresa Cristina

Foto MARCOS HERMES/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra até 7/12  | ed. 240 | dez 2020]

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“A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba, é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
À noite, a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando, eu mando a tristeza embora”

Desde que o samba é samba, Caetano Veloso

Cantar. O que mais gosto de fazer. Estamos em ritmo de desaceleração, em recolhimento. A partir das 15h, tentarei uma coisa nova aqui: vou fazer uma live pra cantar alguns sambas imprescindíveis num momento como esse. E tem é samba, viu? Aceito sugestões. Às 15h, a gente se encontra!”. No dia 16 de março de 2020, Teresa Cristina fez esse anúncio na sua conta no Instagram. A cantora e compositora carioca não poderia supor que esse post despretensioso inspiraria uma sequência de lives que entrariam para a história da cultura brasileira neste ano tão terrível para o país e o mundo.

O post foi feito cinco dias após ser anunciado, pela Organização Mundial de Saúde, que havia, sim, uma pandemia do novo coronavírus. Teresa era um dos incontáveis artistas que, além da apreensão de evitar contrair o vírus, também estava receosa sobre como ficaria seu trabalho durante este período que apenas iniciava, sem data para terminar. Na época, ela estava com a turnê do espetáculo Sorriso negro, cantando composições de artistas negros e sendo acompanhada por uma banda formada somente por mulheres.

A ansiedade provocada pelas notícias desalentadoras que vinham da imprensa começou a pesar na mente e no espírito de Teresa Cristina, não a deixando dormir direito. Temia também pela saúde física e psíquica de sua mãe de 80 anos, até que resolveu pegar o celular e mergulhar de vez na imensa onda que se ergueu nas redes sociais: as lives. Artistas, professores, jornalistas, astrólogos, youtubers, praticantes de ioga, influencers, chefs, coaches, políticos, poetas, apresentadores de TV, lojistas… Todo mundo começou a fazer lives.

Não se acessava o Instagram sem ver os círculos vermelhos ao redor das fotos de perfis indicando que havia, ali, uma live novinha em folha esperando pelos cliques dos interessados ou dos desavisados – os atrapalhados que acessam incidentalmente uma live e ficam naquele constrangimento de não poder sair logo, quando se trata de um conhecido. Mas logo o aviso de uma live específica passou a ser frequente no mostruário do Instagram: “@teresacristinaoficial ao vivo”.

Ao clicar nesse alerta, era certo encontrar a cantora carioca em close, olhando para a tela do celular, sem os óculos para miopia, apertando as pálpebras para conseguir ler as mensagens dos usuários. TT, como é chamada pelos seguidores e amigos, lê, responde as mensagens na hora, ri, gargalha, canta à capela, chora com os “gatilhos” (as músicas que acertam em cheio a alma e despertam sentimentos profundos), pega a cerveja, toma um gole na caneca do Vasco, retoca o batom como se estivesse diante do espelho do quarto, preparando-se para uma festa. Mas ela já está na festa, promovida, organizada e orquestrada por ela mesma, em um tête-à-tête virtual. Nesse encontro social diferente, proporcionado pela praticidade da tecnologia e um bom wifi, evidentemente, a artista fala como se estivesse numa mesa de bar com amigos.

Se, no início do século passado, a mãe de santo Tia Ciata, a mais famosa tia baiana que levou o samba de roda para o Rio de Janeiro, abrigava, em sua casa na Praça Onze (situada na área conhecida como “Pequena África”), os encontros musicais onde foi concebida a primeira música registrada como samba, Pelo telefone – que na letra mencionava o aparelho então restrito a poucos –, hoje, o contemporâneo e já popularizado smartphone proporciona encontros musicais virtuais promovidos pela filha de santo Teresa Cristina.

A artista mantém a tradição de Ciata, também filha de Oxum, de mostrar a importância da mulher no samba. Teresa, por sua vez, honra o patrimônio deixado pelos nossos antepassados musicais e desfila sonoramente a obra da chamada linha evolutiva da música popular brasileira, realizada por nomes como Gilberto Gil e Caetano Veloso, só para citar dois dos ícones nacionais que passaram por suas lives. Se, na casa de Tia Ciata, circularam figuras que entraram para a história do gênero musical, por começarem a formatação do samba carioca a partir do samba de roda, na casa virtual de TT transitam os artistas herdeiros dessa criação.

Gil e Caetano são alguns deles e apareceram na lista dos espectadores da live, sendo logo convidados pela cantora para entrar no espaço virtual, diretamente de sua casa na Vila da Penha. De live em live, a artista vem realizando tanto um reencontro com amigos e parceiros quanto com ídolos máximos, a exemplo de Chico Buarque. Parece uma ironia do destino que o compositor tenha chegado espontaneamente em sua live, enquanto três décadas atrás, Teresa alimentava o sonho, então distante, de conhecê-lo pessoalmente. Nessa época, trabalhava no Detran do Rio de Janeiro e tinha uma ideia fixa: como o departamento era situado na Barra, ela sabia que, algum dia, o compositor apareceria por lá para renovar a licença do veículo.

Sendo assim, passou um ano perguntando aos colegas se Francisco Buarque de Hollanda estava agendado para renovar a licença no dia seguinte. A indagação era tão frequente, que a pergunta e a resposta já nem precisavam mais de palavras. Era feita de longe, através de gestos. Ela erguia as mãos abertas na altura do ombro e recebia um dedo indicador balançando na negativa. Finalmente, 12 meses depois, a tão aguardada ocasião surgiu. Avisaram a Teresa. Mas ela ficou extremamente tímida e saiu correndo. Surpresos, os funcionários fizeram uma barreira ao redor dela e disseram: “Você passou um ano inteiro alugando a gente, agora vai ter que conhecer ele!”.


Teresa Cristina com o Grupo Semente, tocando no projeto Pagode do Trem, em 2000.
Foto: Reprodução

Chico Buarque estava numa cabine sendo atendido. Teresa, então, veio de mansinho por trás e tocou nas costas do cantor. Ele se virou. E aqueles conhecidos olhos azuis esverdeados não disfarçaram o estranhamento da situação. “Oi, eu sou muito sua fã…” Encabulada, perguntou se podia dar um abraço nele. Ganhou um abraço chocho. E ficou morrendo de vergonha. Fugiu apressadamente sob os risos dos colegas em volta.

Não havia smartphone para registrar a tietagem. Teresa apenas guardou em sua memória prodigiosa esse encontro, que considerava ser o único. Não sabia ela que entraria no círculo social de um punhado de artistas brasileiros que idolatrava, inclusive frequentaria as festas na casa de Memélia, a mãe de Chico – que faleceu, em 2010, aos 100 anos.

Antes de estrear no mercado fonográfico, em 2002, a portelense era vista no quintal de Tia Surica, em Madureira, cantando sambas de Jair do Cavaquinho, Argemiro da Portela, Casquinha e chamando a atenção de mestres como Monarco, que costumava dizer: “Esta menina é coisa nossa, coisa muito séria”. Em 1997, ela compôs uma música para A Corda Bamba. Em seguida, foi convidada pela banda para participar do projeto A Cria, no Planetário da Gávea. Foi chamada pelo poeta Chacal para integrar o projeto CEP 20.000. Depois se apresentou na Casa da Mãe Joana, levada pelo cantor Wilson Moreira e, em 1998, recebeu o convite para cantar no Bar Semente, na Lapa, onde se apresentou durante cinco anos.

O nome do bar acabou batizando o grupo que passou a acompanhá-la e que gravou o primeiro dos 11 discos lançados por Teresa Cristina, A música de Paulinho da Viola – o álbum lhe rendeu o prêmio Rival BR e Prêmio TIM de música, como cantora revelação, e a indicação ao Grammy Latino de melhor disco de samba de 2003. A artista fez participação também em outros sete discos. Em 2016, o show Teresa canta Cartola percorreu grande parte do Brasil. No mesmo ano, o espetáculo se transformou em Caetano Veloso apresenta Teresa Cristina e fez a abertura da turnê de Caetano Veloso pela Europa, Ásia e Américas. Em 2017, sob direção do baiano, realizou o show Teresa canta Noel, cujo registro em estúdio foi lançado em 2018.

Além do Bar Semente, Teresa Cristina também cantou em outras casas noturnas da Lapa, como o Carioca da Gema, e no Centro Cultural Carioca. Foi a partir daí que se tornou estrela no bairro boêmio, contribuindo para a revitalização cultural do lugar e mantendo a tradição de sambistas que gostam de uma boa farra com os amigos, como Aracy de Almeida, comparsa de Noel Rosa.

Até então, Teresa não tinha pensado em virar cantora profissional. Não gostava muito de sua própria voz. Mas ela acabou aceitando a ideia de que era naturalmente uma cantora. O ímpeto de cantar já vinha desde cedo. Quando era criança, costumava ir para a frente dos colegas de sala e imitava Fafá de Belém. Teresa Cristina, cujo nome é homônimo da imperatriz conhecida por promover a cultura no país, era uma menina tímida, mas com arroubos de extroversão.

No entanto, quando o racismo botou suas destruidoras garras para fora, em demonstrações supostamente inofensivas, a garota começou a se inibir, a ficar com sua autoestima abalada e a duvidar de si. “Isso acontece com muita gente preta no Brasil. A gente fica insegura com a gente, a gente não sabe se o que a gente faz tem valor. A gente está sempre esperando alguém descobrir a gente”, desabafaria em uma live.

***

A infância foi uma época em que ela, assim como outras meninas negras, esticava o cabelo, a todo custo, à base de cremes, pasta, ferro quente, chapinha. Não havia a luta cerrada por representatividade e negritude que existe e resiste hoje, principalmente através de coletivos e mídias sociais. Quando sua filha Lorena, de 11 anos, chegou em casa chorando porque falaram mal do cabelo dela, Teresa relembrou sua própria infância e adolescência e convenceu a filha de que não havia problema algum com os fios crespos, mas com as pessoas racistas.


A artista e a filha Lorena, com quem está “quarentenando”. Foto: Acervo Pessoal

O cenário hoje, se não é o ideal, parece ser bem melhor do que algumas décadas atrás. Em julho deste ano, por exemplo, Teresa estampou a capa da Vogue brasileira – dessa vez de verdade, porque, em maio de 2019, ela havia feito um dos seus posts bem-humorados se colocando na capa da revista de moda e com a legenda: “Antes que invejosos digam que é montagem, eu digo que o lugar da mulher é onde ela quiser”.

A propósito, a primeira das três opções de capa dessa edição da revista foi um retrato seu pintado pelo artista plástico recifense Samuel de Saboia. Nas fotos das outras duas, Teresa exibe o cabelão crescido na quarentena. Apesar dessa e de outras conquistas, ela sabe que a luta travada pelos negros neste país é ininterrupta e recebeu mais uma comprovação disso neste ano, quando houve a reabertura dos shoppings.

A mesma mulher que estampava a capa da Vogue precisou comprar um laptop. Após fazer uma pesquisa na internet, encontrou o modelo certo e sabia em qual loja encontrar. Colocou uma máscara pra se proteger do novo coronavírus e foi ao estabelecimento comercial. Ao chegar ao mostruário onde estava o computador, ficou de frente para o produto, indicando interesse. Uma vendedora a viu, mas fez cara de desentendida e até puxou o celular do bolso para ficar mexendo. Minutos depois, um homem branco, assim que passou por Teresa, foi prontamente atendido pela funcionária: “O senhor deseja alguma coisa?”. Teresa, com a mesma firmeza com a qual bota para correr os bolsominions que eventualmente aparecem em suas lives, elevou o tom da voz: “Eu também desejo alguma coisa! Aliás, eu desejo antes dele!”. Para remediar a situação, um outro vendedor a atendeu e acabou ganhando a comissão da venda do computador. E o homem branco saiu sem comprar nada.

Essa circunstância de ser preterida no lugar de alguém com pele mais clara é uma velha conhecida sua. Nascida em 28 de fevereiro de 1968, em Bonsucesso, na zona norte do Rio, e criada na Vila da Penha, Teresa Cristina Macedo Gomes, desde cedo, sentia que sua vez estava sempre sendo deixada para depois, seja numa padaria, seja no patrocínio do show de Candeia, que, idealizado em 1998, só realizou em 2013. Esse sentimento de “quando vai ser a minha vez?” a acompanhava até nos bailes adolescentes dos anos 1980, no tradicional Clube Olaria. Quando chegava a hora da música lenta, nunca era convidada para dançar coladinho. E isso virou uma frustração na sua juventude, até que um primo a chamou para ver o show de uma banda cover de heavy metal.


EXTRA: show Teresa Cristina canta Candeia, no Theatro Net Rio, em Copacabana.


Para ela, foi uma libertação. Nesse ambiente, as mulheres eram independentes. Não havia clima de azaração. Foi a partir desse dia que começou a paixão de Teresa Cristina pelo Iron Maiden. Sim, Iron Maiden, para desgosto de sua mãe, Dona Hilda, que costumava jogar no lixo o álbum The number of the beast (1982). E Teresa ia sempre lá buscar de volta. A adoração pela banda britânica de heavy metal levou a jovem a escolher o curso de Letras na UERJ, com especialização em Literatura Inglesa e Americana. O seu plano era o seguinte: ser contratada como intérprete do grupo, em uma das diversas vindas ao Brasil. Infelizmente ou felizmente, isso só aconteceu na imaginação fértil da pisciana.

O seu encontro mais próximo com o vocalista Bruce Dickinson e a banda ocorreu na turnê que o Iron Maiden fez em 2008 pelo país, passando por várias capitais. Teresa, já com 10 anos de carreira cantando samba e contratada da mesma gravadora do grupo (EMI), ganhou um convite para ficar na área vip do show em São Paulo. Pegou a ponte aérea e fez essa viagem à juventude roqueira. Esse seu lado rocker ficou explicitado na live em homenagem ao Dia do Rock (13 de julho), em que cantou, com uma rosa vermelha tropicalista na cabeça, Iron Maiden, Guns’n’ Roses, The Cure – seu primeiro crush, a propósito, foi o vocalista Robert Smith. O atual crush é Michael B Jordan, o Killmonger, do filme Pantera Negra (2018).

A cantora, acompanhada do grupo com o qual gravou o álbum Teresa Cristina + Os Outros = Roberto Carlos, de 2012
A cantora, acompanhada do grupo com o qual gravou o álbum Teresa Cristina + Os Outros = Roberto Carlos, de 2012. Foto: Jorge Bispo/Divulgação

Se demonstra conhecimento sobre o rock, ela dá aula em música brasileira nas suas lives temáticas, que podem ser sobre o repertório de algum artista, de algum disco, de trilhas de novelas, de sambas-enredo… Nessas lives, já apresentou, a um público maior, artistas como Fernando Ébano e Sérgio Pererê, e traz convidados fixos, como a flautista Ana Paula Evangelista, o pianista Jonathan Ferr, o violonista João Camarero e a cantora Silvia Borba, pernambucana radicada em Londrina.

Teresa apresenta as canções que gosta, que sabe cantar ou que encontra o timbre certo na hora, trazendo sempre informações e observações sobre composições e compositores. Seus fãs fiéis, os cristiners, certamente aprenderam mais sobre nosso cancioneiro depois desses cursos intensivos que costumam durar três horas – a primeira live que fez sobre Djavan chegou a cinco horas de duração.

Em um post de outubro, a artista perguntou aos seguidores quais as lives preferidas deles. Foram centenas de respostas e mencionaram participações diversas, como as de Chico Buarque, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, Lula (o ex), Marisa Monte, Alceu Valença e Gilberto Gil – a presença do baiano talvez tenha sido o momento mais emocionante, quando tocou e cantou Estrela. “Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir/ Há de apagar uma estrela no céu cada vez que ocê chorar…” Enquanto isso, Teresa Cristina derramava muitas lágrimas de alegria e gratidão diante de um autêntico representante da mais pura beleza da música brasileira. Mas eram também de tristeza, porque repercutia no país a trágica morte do menino recifense Miguel, que, aos cinco anos, largado sozinho no elevador pela patroa da mãe, acabou caindo do nono andar do edifício Maurício de Nassau.

O encontro entre Teresa e Gil foi um evento singular e luminoso, contrastando com o cenário sombrio desta pandemia que vem destruindo vidas, famílias e escancarando males como a desigualdade social, o egoísmo, o descaso, a negligência, a ignorância. Enquanto a vacina não chega à população, a live de TT é o remédio caseiro receitado por muitos terapeutas, uma prazerosa fuga temporária da cruel realidade para poder suportá-la. Muitos de seus novos fãs chegaram às suas lives como parte do tratamento para ansiedade e depressão. Em março, sua conta tinha 90 mil seguidores, em novembro eram mais de 360 mil. Na participação em uma das lives em sua homenagem, Djavan, do sítio onde está morando desde março, agradeceu à cantora: “Você, de alguma maneira, me salvou de um cotidiano que é difícil”.

Djavan foi uma das participações memoráveis. Cantou algumas músicas, mas a conversa, que demonstra o absoluto poder de comunicação de Teresa Cristina, trouxe pontos significativos da vida do compositor, como o fato de seu nome ter aparecido para a mãe em sonho, quando ela estava grávida. Sonhou com um imenso navio, lindo, chamado Djavan. O nome deu muito trabalho a seu dono durante a infância e adolescência, provocava estranheza, assim como a divisão rítmica djavaniana, que dava vários nós na cabeça de instrumentistas, produtores e técnicos de gravação. Djavan somente descobriu que ele estava certíssimo musicalmente, quando, na famosa viagem dos artistas brasileiros à África em 1979, eles foram recepcionados pela música da Ilha de Mossulo, situada na costa sul da província de Luanda, em Angola. Estava ali a sua divisão rítmica, numa música que ele nunca tinha ouvido, mas que se encontrava no seu DNA.

Ao final dessa live, Teresa Cristina fez um de seus preciosos e precisos elogios, que dizem bem sobre os elogiados, mas também diz muito sobre ela: “Quando eu comecei a fazer essas lives, eu queria mostrar para as pessoas que o nosso país tem uma beleza sem fim. Ele tem uma arte que é única. Você é um belo exemplo do Brasil, nesse sentido. Você é inclassificável. Você é inominável. A gente não consegue colocar numa caixinha o que você é. Talvez nem você saiba definir o que você é. Eu tenho que agradecer tudo o que você fez pela música brasileira. Eu só queria te dar carinho. O que você nos dá, a gente nunca vai poder te retribuir”.

***

A sensibilidade, sinceridade, autenticidade, espontaneidade, perspicácia, o carisma e alto-astral de Teresa são alguns dos elementos que explicam o sucesso de sua lives – algumas já chegaram a atingir mais de 50 mil acessos. Sem intenção, a artista atualiza outro item cultural, o de cantores que já foram apresentadores de programas musicais de TV, como Elis Regina, Jair Rodrigues (O fino da bossa), Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa (Jovem Guarda), Caetano Veloso e Gilberto Gil (Divino, maravilhoso). No entanto, ao contrário desses televisivos, o formato das suas lives foi sendo desenvolvido ao mesmo tempo em que a anfitriã ia realizando-as.

No seu cotidiano, que envolve ir ao mercado, fazer faxina, checar se está tudo certo com a mãe e a filha, que está estudando a distância, Teresa também faz a seleção das músicas a serem cantadas e pesquisa o conteúdo a ser apresentado. Ela, ao lado da mãe, ainda realiza, no seu canal no YouTube, as Jovens Lives de Domingo.


Montagem postada por Teresa Cristina em seu bem-humorado perfil no Instagram. Imagem: Reprodução

Se as lives de Teresa Cristina acontecem no contexto da pandemia do novo coronavírus, as rodas de samba na casa de Tia Ciata foram contemporâneas à ameaçadora gripe espanhola, que estima-se ter matado, de 1918 a 1920, entre 50 e 100 milhões de pessoas no mundo e 35 mil no Brasil. O vírus da influenza, assim como surgiu avassaladoramente, foi perdendo, dois anos depois, o poder de mortalidade e se transformou na gripe que vive entre nós até hoje. A expectativa dos cientistas é de que o novo coronavírus também perca a sua força, e a Covid-19, que já matou mais de 1 milhão no mundo e mais de 160 mil no nosso país, se torne uma doença sazonal sem maiores danos aos seres humanos. E sua tragédia vire passado na lista de eventos infelizes da nossa história.

Enquanto de Tia Ciata só nos restam duas ou três fotos conhecidas, Teresa Cristina possui incontáveis fotos e vídeos que registram sua imagem, pela nossa sorte de vivermos nesta época de tamanho avanço e acesso tecnológico. Quando fala para a câmera, Teresa, que fugia dos espelhos porque não gostava do que via, volta a olhar para si, através da tela do celular, e gosta do que vê, curando as feridas de uma autoestima machucada na infância e adolescência. Esse olhar renovado para si trouxe outra perspectiva também para a sua arte, porque ela está mais solta como intérprete.

Embora artistas como ela, que fazem lives, não lucrem diretamente com a plataforma do Instagram, essa vitrine digital acaba por trazer um retorno positivo à cantora. E nada dessa iniciativa vitoriosa foi planejada por departamento de marketing de gravadora ou empresários – como muitas dessas lives milionárias de cantores populares do país. A marca de cerveja favorita da cantora não atendeu aos pedidos dos cristiners para que contratasse TT como garota propaganda, mas outra marca apareceu. Assim como uma famosa marca de roupa do Rio de Janeiro, e outros convites e patrocínios.


A artista no espetáculo Teresa canta Cartola. Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo

A carreira da artista está com a bateria recarregada. Em julho, foi lançado o álbum ao vivo Teresa Cristina canta Noel – Batuque é um privilégio. E o registro do show ganhou exibição no Canal Bis. Teresa realizou, no dia 11 de novembro, seu primeiro número solo em um dos maiores prêmios de música do país, o Prêmio Multishow. Apareceu no bondinho da Lapa, todo iluminado, cantando O sol nascerá, de Cartola. Sua imagem cantando “A sorrir, eu pretendo levar a vida/ Pois, chorando, eu vi a mocidade perdida…” é pra guardar na memória, de tão bonita. E no dia 11 de dezembro, no aniversário de 110 anos de nascimento de Noel Rosa, apresenta o novo espetáculo Teresa Cristina – Ao vivo e ‘a-live (seus trocadilhos são impagáveis), no palco do Vivo Rio. Esse show também terá ingresso para transmissão online (em 4 de dezembro, a artista anunciou que, por conta da segunda onda da pandemia, o show foi transferido para 27 de fevereiro). As boas novas continuam e incluem o convite para fazer um programa em um portal na internet e para lançar um livro pela Companhia das Letras.

***

Desde o dia 26 de março até o dia 15 de outubro, a única certeza que se tinha no Brasil era de que haveria a live diária de Teresa Cristina. Foram mais de 200 lives, com mais de 600 horas ao vivo. Mas desse último dia em diante, surpreendendo a todos, a artista interrompeu sua sequência de lives, devido a quedas constantes nas transmissões. Ataques de hackers – funcionários ou voluntários do Gabinete do Ódio? – acabaram por travar a página. A suspeita inicial era de que fosse uma retaliação, já que Teresa critica bastante esse (des)governo federal. Mas outros perfis também foram hackeados após receberem links suspeitos por mensagem direta no aplicativo (golpe chamado de phishing, que “pesca” dados secretos dos usuários).

Embora tenha recebido e ignorado esses links, sua conta começou a apresentar problemas. Ela disse esperar por “uma resposta digna” do Instagram – rede social que vem lucrando com o aumento dos acessos neste período de quarentena. Então, depois das últimas tentativas de lives na sua conta nos dias 19, 20 e 21 de outubro, começou o “Movimento dos Sem Lives” no dia 9 de novembro, passando a ocupar perfis de amigos famosos. A primeira ocupação aconteceu no IG da atriz e apresentadora Fernanda Paes Leme, seguiu pelo perfil da atriz Mariana Ximenes e do humorista Gregório Duvivier, ganhando, pelo menos, novos espectadores.

Capa do disco de estúdio, cujo repertório rendeu show com direção de Caetano Veloso. Imagem: Reprodução

Com seu amor pela música brasileira, a cantora, que é antes de tudo uma fã e ouvinte atenta, fez reacender (ou despertar) a atenção dos seus seguidores e ouvintes pela nossa riqueza musical – sem dúvida, um grande serviço prestado num tempo em que a arte vem sendo vilipendiada, em que os artistas são demonizados e em que o país parece mesmo não ter memória. E é incrível que uma live sem instrumentos, sem cenário, feita de dentro de um quarto, apenas com um celular na mão, tenha ido mais longe do que qualquer outra com megaestrutura.

A artista burlou os limites do isolamento social e agregou pessoas virtualmente, criou uma grande turma ou um grande fã clube, pessoas se conheceram no cristinder, a paquera nos comentários de seu perfil no Instagram. Neste período em que é muito fácil perder a esperança, TT, a Rainha das Lives, demonstrou que, para mandar a tristeza embora, o melhor remédio é continuar cantando ou “achar o tom da alegria perdida”, como escreveu em seu samba Cantar.

Embora não tenha despontado no mercado fonográfico em idade avançada, como Dona Ivone Lara (depois que se aposentou como enfermeira) e Clementina de Jesus (após décadas trabalhando como empregada doméstica), ironicamente neste ano, em que teria ficado longe da vitrine da qual tanto dependem os artistas, Teresa Cristina, aos 52 anos, que já foi fiscal do Detran, auxiliar de escritório, vendedora de cosméticos, manicure, enfim conseguiu sair debaixo do manto da invisibilidade que lhe era imposto. Chegou a vez de a estrela da Lapa – e do Brasil – brilhar.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente, colunista da Continente Online.

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