Artigo

Comer fora no Recife do século XIX não era para todos

Os primeiros restaurantes e cafés da capital pernambucana se constituíam em espaços reservados para os viajantes e a elite local

TEXTO Eliza Brito

01 de Abril de 2020

Mais comuns no século XX, os cafés surgem no Recife do século XIX como espaços iminentemente masculinos

Mais comuns no século XX, os cafés surgem no Recife do século XIX como espaços iminentemente masculinos

Imagem Reprodução do livro 'À francesa: A Belle Époque do comer e do beber no Recife'

[conteúdo na íntegra | ed. 232 | abril de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

Já conhece o mais novo restaurante vegano da cidade? E o cafezinho autoral que abriu há pouco no seu bairro? O Recife figura como um dos polos gastronômicos do país e, nos dias de hoje, reservar uma mesa no restaurante favorito para o almoço de domingo ou sair para tomar um café ao final de um dia cansativo são hábitos que fazem parte da vida de muitos recifenses. No começo do século XIX, no entanto, eram atitudes simplesmente impensáveis para a maioria da população.

O primeiro restaurante da cidade só surgiu em meados daquele século, mais precisamente no ano de 1852, quando foi aberto o Restaurant Français. É possível encontrar anúncios sobre o local, no Diario de Pernambuco, entre os anos de 1852 e 1858. O estabelecimento ficava no então Cais da Lingueta, próximo ao atual Marco Zero, região privilegiada pela proximidade com o Porto do Recife, que, por isso, reuniu muitos espaços comerciais no período. No caso dos cafés, um dos primeiros da cidade foi o Commercial, que ficava pertinho do cais, no Largo do Corpo Santo, onde atualmente existe a avenida Marquês de Olinda. Desde 1867 que o café figurava em anúncios de jornais como Diario de Pernambuco e o já extinto Jornal do Recife.


As colunas sociais dos jornais atestam o sucesso desses ambientes públicos.
Imagem: Reprodução do livro
À francesa: A Belle Époque do comer e do beber no Recife

A emergência desses estabelecimentos, tão comuns nos nossos dias, está integrada ao processo de reestruturação urbana da cidade, no século XIX. O Recife crescia para o subúrbio e as distâncias entre o centro e as áreas periféricas aumentavam. Na primeira metade do Oitocentos, a capital pernambucana era formada pelos bairros: do Recife, região do porto; de Santo Antônio, também conhecido como Ilha de Antônio Vaz; e da Boa Vista. Após a abertura dos portos, em 1808, possibilitada pela vinda da família real portuguesa para o Brasil, as cidades portuárias, como a nossa, ganharam mais dinamismo. O comércio varejista cresceu, o que ocasionou o aumento no número de empregos e, consequentemente, a atração de pessoas das zonas rurais. Com o aumento da população e a maior dinamicidade da vida na capital, áreas nos arredores do Recife foram sendo integradas à região urbana. O crescimento físico da capital foi acompanhado pela mudança de hábitos, influenciada pela vinda de visitantes internacionais, principalmente europeus. As festas religiosas começaram a dividir espaço com outros divertimentos, como os teatros e os passeios públicos, e é neste contexto que vão surgir os primeiros restaurantes e cafés do Recife.

As mudanças nos hábitos da população, contudo, não aconteceram na mesma rapidez com que foram erguidas novas construções. A sociedade patriarcal pernambucana restringia a mobilidade das mulheres brancas e abastadas, já que as negras escravizadas não tinham escolha e circulavam nas ruas da cidade realizando atividades principalmente comerciais. Mas as “damas da sociedade” ficavam restritas ao ambiente doméstico. Aos poucos, com a incorporação do modo de vida europeu, as mulheres brancas, sempre acompanhadas dos maridos ou dos pais, começam a frequentar espaços de sociabilidade como teatros e passeios públicos. Mas as refeições ainda eram feitas em casa. Serão os viajantes os primeiros clientes dos restaurantes e cafés da cidade.

Anúncio do longevo Café Ruy, um dos pioneiros na venda de sorvetes
Anúncio do longevo Café Ruy, um dos pioneiros na venda de sorvetes.
Imagem: Reprodução do livro À francesa: A Belle Époque do comer e do beber no Recife

Muitos visitantes passaram a aportar no Recife, após a já citada abertura dos portos, e precisavam de espaços com estrutura para recebê-los. Nos hotéis-restaurantes eles encontravam tudo de que procuravam: hospedagem e alimentação. Por isso, o Cais da Lingueta, região perto do porto, que ligava a cidade ao mundo, era um dos principais pontos de estabelecimentos do tipo na capital. O Restaurant Français, por exemplo, era um hotel-restaurante, mas estava longe de ser o único.

Um anúncio do dia 12 de setembro de 1879, no Jornal do Recife, apresenta, de maneira detalhada, o então novo Restaurant Portuguez, que também funcionava como hotel e restaurante. O estabelecimento era localizado na Rua das Laranjeiras, pertencente ao bairro de São José, que, junto ao de Santo Antônio, concentrava a maior parte da população recifense, no século XIX. A rua foi uma das tantas que desapareceram, na década de 1940, com a abertura da Avenida Dantas Barreto, criada com a reforma urbana dos bairros de Santo Antônio e São José. Estabelecimento longevo, o Restaurant Portuguez só parou de ser citado em anúncios dos jornais da época em 1891, quando foi leiloado. Como ele, existiram muitos, contudo, de todos os vários restaurantes surgidos na segunda metade do século XIX, o Leite é o único que se mantém aberto nos dias de hoje.


No antigo Bairro do Recife, o movimento de navios estimulava a criação de hotéis-restaurantes. Imagem: Reprodução 

RESTAURANTE LEITE, HISTÓRIA VIVA
Inaugurado em 1882 como um pequeno quiosque, na Rua do Sol, próximo à Ponte da Boa Vista, o então Restaurant Manoel Leite foi um empreendimento do português Armando Manoel Leite de França, que percebeu a vantagem da localização privilegiada para montar o seu negócio, recém-chegado na cidade. A Rua do Sol, localizada no bairro de Santo Antônio, ficava junto ao Rio Capibaribe, não tendo casas para sombreá-la, o que era um privilégio, já que o rio era um grande meio de locomoção da cidade, com canoas fazendo o deslocamento de moradores e visitantes.

O restaurante, além de estar “servido” pelas vantagens que a proximidade com o Rio Capibaribe trazia, ainda ficava situado em frente aos trilhos do bonde, facilitando ainda mais o acesso dos frequentadores. Como bom negociante, o português Manoel Leite virou sócio do Clube Internacional, fundado em 1885, com o nome de Club Regata Ultramarino, um dos principais espaços de convivibilidade da elite recifense do período, o que facilitou a concretização do negócio, já que os frequentadores do clube passaram a ter o restaurante como ponto de encontro após as festas.

Apesar da localização e da boa comida, o estabelecimento era pequeno e não demorou muito para os próprios clientes começarem a exigir uma expansão da casa, que passou, provavelmente no ano de 1890, de acordo com a jornalista Gorettti Soares, no seu livro O Leite ao sabor do tempo, por meio de contrato de aluguel, para os prédios de números 147 e 153, que pertenciam ao Hospital Português, e o de número 159, que pertencia à Santa Casa de Misericórdia. Na nova instalação, localizada em frente a então Praça da Concórdia, atual Praça Joaquim Nabuco, onde fica até hoje, o estabelecimento ganhou ares aristocráticos, com as influências inglesas e francesas, tão comuns às aspirações de modernização recifense da época.

A EXPANSÃO DOS CAFÉS
Mas os restaurantes não eram os únicos locais onde se comia bem no Recife da segunda metade do Oitocentos. Mais comuns no século XX, os cafés começam a fazer parte da cena social recifense ainda no século anterior. Esses estabelecimentos eram espaços eminentemente masculinos, nos quais eram discutidos os assuntos da ordem do dia, as notícias, as fofocas. Políticos, homens de negócios e profissionais liberais, como médicos, advogados, jornalistas e comerciantes, tinham nos cafés um local de encontro, divertimento e de bebedeira.

Muitos foram os estabelecimentos do tipo, surgidos na virada do século XIX para o XX, no Recife, mas nenhum chegou aos dias de hoje. Além do Café Commercial, vale destacar a existência do Café Ruy, um dos mais longevos do período. Era localizado na Rua Nova, importante logradouro da cidade que foi, inclusive, a primeira rua do Recife a ser iluminada a gás carbônico, no lugar da iluminação por meio de lampiões, no ano de 1859. No ano de 1882, o estabelecimento passou a comandar duas unidades, a da rua Nova e a do Pátio do Terço, como é possível constatar por um anúncio do dia 20 de abril de 1882, no Diario de Pernambuco. Um espaço comercial funcionar em dois pontos da cidade era fato raro entre os séculos XIX e princípio do XX.

O Café Ruy foi ainda inovador em outros aspectos. Foi um dos pioneiros na venda de sorvete no Recife, além de realizar a utilização de tecnologias de moagem de café feita às vistas dos clientes, atrativo que foi anunciado repetidas vezes em jornais como o Diario de Pernambuco e o Jornal do Recife, para conquistar mais frequentadores. O estabelecimento funcionou desde a década de 1870 até 1909, tendo uma importante participação na vida cultural da cidade.

Passear pelas ruas dos bairros do Recife, de São José e de Santo Antônio, nos dias de hoje, é passar por locais onde uma loja de eletrodomésticos ou um estacionamento estão localizados em algum antigo restaurante ou café, desconhecido das atuais gerações, nos quais, na segunda metade do século XIX, a elite local se reunia para comer, beber e confraternizar. Conhecer a história desses estabelecimentos é também entender o processo de modificação estrutural, cultural e social do Recife. É desbravar um pouco da memória da cidade, que se constrói e reconstrói em cada novo cafezinho e em cada boa refeição.

ELIZA BRITO, jornalista e mestre em História.

Publicidade

veja também

Por que se prende tanto?

“Palavra, para mim, é trabalho”

Berlinale 2020