Curtas

Escumalha

Um disco para esquecidos e marginalizados

TEXTO JOCÊ RODRIGUES

02 de Setembro de 2019

O novo disco de Douglas Germano é uma mistura entre o poético e o combativo

O novo disco de Douglas Germano é uma mistura entre o poético e o combativo

Foto Adriana Aranha/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 225 | setembro de 2019]

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Depois do mergulho de cabeça nas águas místicas do mar de Orí (2011) e do impacto político e sonoro causado por seu contundente Golpe de vista (2017), Douglas Germano volta ainda mais ácido e combativo em Escumalha. Um disco forte, poético e que investe pesado contra o preconceito, ao apontar as virtudes dos esquecidos e marginalizados.

Em sua edição de outubro de 1967, a revista Realidade publicou uma longa reportagem sobre a vida dos jogadores de sinuca da noite paulistana. O autor não brincava em serviço: era a primeira colaboração de João Antônio para a revista. Com texto sagaz, ele jogou luz sobre a rotina de quem ganhava a vida de modo anticonvencional, de pessoas que estavam fora das estatísticas e que tinham que fazer uns trocados dia a dia e sem muitas garantias.

Escumalha fala também dessa gente e rende homenagem aos que habitam essa zona social crepuscular. A relação entre as obras de Germano e João Antônio estão ligadas por fios que ultrapassam a zona literária e entrelaçam a afetiva. Desde pequeno, o músico conhece de perto a saga de quem vive à margem.

“Se você trocar 15 minutos de conversa com meu pai, terá a clara impressão de estar conversando com uma das personagens traçadas por João Antônio”, disse à Continente. “A maior parte da minha infância foi sustentada com dinheiro de jogo. Meu pai foi um ‘merduncho’ de João Antônio”. No vocabulário do autor de Malagueta, perus e bacanaço, “merduncho” se refere a uma faixa social ambígua, nem marginal, nem bandida, mas excluída. Pessoas sem eira nem beira, como costumava explicar. “Escovador de cavalos no Jockey de SP já desde os 13 anos, meu pai foi do baralho, da sinuca, do jogo de dados, apontador de jogo do bicho, taxista, dirigiu caminhão. Meu pai se virou a vida inteira”, relembra Douglas.

A referência para o nome do novo disco também é literária. Inpirada no Poema tirado de uma notícia de jornal, do poeta pernambucano Manuel Bandeira, a palavra escumalha significa ralé e é normalmente usada como ofensa. O termo serviu de mote para costurar o repertório composto de canções antigas e novas, que se alinham num discurso que não se apega à ordem cronológica das composições. “Não fosse assim, seria apenas um repertório ‘colcha de retalhos’ que atendesse ao registro cronológico da produção, e isso não me interessa”, explicou.

Percussionista de formação, Douglas Germano encontrou o próprio jeito de fazer falar também seu violão, bastante proeminente no novo trabalho. Não é João Bosco, não é Baden. É outra coisa, com algo de picardia e ardência que beira o agressivo. É aço cortante, embora as cordas sejam de nylon. Uma ameaça sonora que mostra a que veio ao longo de 10 faixas, divididas em duas partes.


Imagem: Divulgação

Na primeira delas, o compositor mexe no vespeiro, coloca o dedo na ferida e chama para a briga em músicas como Àgbá, Vil malandrão, Babaca e Escumalha. A canção Valhacouto representa um marco na carreira de Douglas, já que traz a primeira parceria entre ele e o escritor e letrista Aldir Blanc, parceiro de gente do quilate de João Bosco, Guinga e Ivan Lins.

A parceria só foi possível graças ao estímulo do escritor e advogado Eduardo Goldenberg. “Edu é amigo em comum. Havia apresentado coisas minhas ao Aldir. Me instigava a mandar uma música, pois ele faria a ponte com o Aldir”, explicou. “Em 30 de outubro de 2018, eu enviei a música. Aldir gostou e fez a letra de Valhacouto com a maestria e a genialidade de sempre”. Além de Blanc, aparecem como parceiros João Poleto (Insignificâncias) e Kiko Dinucci (Vil malandrão), comparsa de longa data, com quem gravou O retrato do artista quando pede (2009), sob a alcunha de Duo Moviola.

MEMÓRIAS E DETALHES

A segunda parte do disco é mais afetiva, mas não menos afiada. Ela se volta para dentro de casa. Para a memória da fé e dos detalhes pequenos da vida e da dignidade das pessoas com quem viveu. Gente que o viu crescer e que habita um Brasil que ele chama de “não oficial”. Nesta parte, destacam-se as músicas Marcha de Maria, composta originalmente para teatro, e Tempo velho, que traz uma lição dada pelo próprio tempo para que possamos viver melhor, como indica o trecho: “Faz teu caminho de bem e se alembra que/ o mundo mais lindo só tem em pedra pequenina”.

Entre o inteligente jogo de morde e assopra das duas partes do álbum cabe também uma divertida homenagem à riqueza da nossa língua. Mais especificamente àquela falada por parte da escumalha que resiste aos avanços da tecnologia e da dita norma culta. Ratapaiapatabarreno é uma ode à diversidade de línguas, dialetos e sotaques. Composta em 2014, apareceu pela primeira vez no repertório do disco A carne das canções (Borandá, 2014), de Swami Jr. e Marcelo Pretto.

Escumalha foi gravado por um time de instrumentistas de primeira linha, responsáveis pela execução de arranjos técnicos, sem deixar de lado o ritmo e o balanço característicos da música de Germano. A base é composta por João Poleto (flauta e sax), Henrique Araújo (bandolim, cavaquinho e percussões), Renato Enoki (baixo acústico e guitarra), Rafael Y Castro (bateria e percussão) e Júlio César (percussão). Além deles, há participações especiais dos percussionistas Alfredo Castro e Xeina Barros, do trombonista Allan Abbadia, da cantora Dona Carmelita, dos violonistas Gian Correa e Marcelo Martins.

Escumalha também retrata uma classe que escapa às análises simplistas. Uma história que só pode ser contada de maneira apropriada por alguém de dentro, que viveu e que conhece o valor e a importância dos pequenos gestos, dos combates diários pela sobrevivência. A cada álbum lançado, Douglas Germano desponta como porta-voz dessa horda abandonada pelo Brasil oficial. Uma posição que vem de berço: “Eu sou filho do merduncho morador de periferia da região metropolitana”.

JOCÊ RODRIGUES, escritor e jornalista. Colabora ou já colaborou com publicações como Revista da Cultura, Gazeta do Povo, Valor Econômico, Estadão e Jota.

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