Entrevista

“Roberto Carlos foi a maldade que só me fez bem”

Escritor Paulo Cesar de Araújo, que teve a biografia do Rei retirada das livrarias, fala sobre censura, música, filme baseado na própria vida e diz que este ano lança outro livro sobre o cantor

TEXTO MARCELO ABREU

05 de Junho de 2019

O escritor, historiador e professor Paulo Cesar de Araújo

O escritor, historiador e professor Paulo Cesar de Araújo

Foto LEO MARTINS/AGÊNCIA O GLOBO

[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]

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O nome de Paulo Cesar de Araújo ficou definitivamente ligado à história da censura no Brasil, depois que ele teve sua biografia Roberto Carlos em detalhes proibida de circular por uma decisão judicial, tomada a pedido do cantor, em 2007. O caso provocou uma polêmica que se estendeu por quase uma década, até o Supremo Tribunal Federal decidir, em 2015, pela liberação da publicação de biografias não autorizadas no Brasil.

Nesse meio tempo, o historiador baiano, hoje radicado em Niterói, escreveu a própria versão da polêmica, o livro O réu e o rei – Minha história com Roberto Carlos, em detalhes (2014), em que conta sua relação com o cantor desde a infância em Vitória da Conquista, quando já era seu fã, passando pelas inúmeras tentativas de entrevistá-lo para o livro até a guerra jurídica que se seguiu à publicação da biografia. Anteriormente, Araújo já havia sido o autor de Eu não sou cachorro, não, um curioso estudo sobre a música brega no Brasil dos anos da ditadura militar.

Atualmente professor de História no Ensino Médio e do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, misto de historiador meticuloso e jornalista que preza o texto atraente, Araújo, de 57 anos, prepara outro livro sobre Roberto Carlos, uma nova biografia não autorizada sobre o cantor, que incluirá os anos mais recentes.

Nesta entrevista, dada durante o Fest Aruanda, em João Pessoa, Paulo Cesar de Araújo fala sobre o novo livro, a possibilidade de embates nos tribunais e os planos de adaptar a própria história de vida para o cinema. Reflete também sobre o fenômeno mais amplo das tentativas de censurar atividades culturais e a expansão da música popular no país.

CONTINENTE Em que pé está a sua nova biografia sobre Roberto Carlos, que chegou a ser anunciada para 2016?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Não foi possível concluir ainda a trilogia. Em 2006, saiu Roberto Carlos em detalhes, em 2014, O réu e o rei. Não consegui terminar o terceiro para 2018, como seria o ideal, então ficou para este ano. Estou escrevendo. Achei que ia ser mais fácil, mas não é não.

CONTINENTE Você pretende manter os trechos que foram contestados por Roberto Carlos na primeira versão, com o mesmo nível de detalhamento
PAULO CESAR DE ARAÚJO Os trechos que foram contestados não foram negados por ele. O que ele alegou foi a tal questão da privacidade da figura pública, mas isso já está resolvido pelo STF, por 9 a 0. Não tive processo por calúnia. Ele não diz em nenhum momento do processo que os fatos não existiram. Apenas que eu não devia falar disso ou daquilo. Como estou reescrevendo o livro, o que eu achar mais pertinente vou colocar. Porque agora é o olhar de 2019, lá era um livro de 2006. O que eu achar que não é tão relevante para o momento, não entra. O olhar sobre o passado é sempre marcado pelo momento atual. Não estarei preocupado com o que Roberto Carlos acha ou deixou de achar. Minha preocupação é com a história. O que eu achar relevante para explicar Roberto Carlos, como eu fiz no primeiro livro e no segundo, vou colocar no terceiro.


Foto: Reprodução

CONTINENTE Haverá um volume maior de informações, com esses últimos anos.
PAULO CESAR DE ARAÚJO Isso e outras coisas que não puderam ser incluídas no primeiro livro, que já estava grande demais. Ali, dei bastante ênfase ao início da carreira. Agora, vou falar mais da segunda fase, dos filmes do Roberto que não foram tão abordados no primeiro. Esses três livros vão permanecer como minha análise do fenômeno Roberto Carlos.

CONTINENTE Teme uma nova iniciativa para barrar o livro na justiça?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Não. O réu e o rei já foi o teste, porque foi publicado em 2014, antes da manifestação do STF. Então, havia um certo receio da editora, e com razão, de que ele pudesse agir. O que ele pode alegar agora? O que alegou no primeiro, o uso da imagem e invasão de privacidade. Só isso. Quando saiu O réu, ele ficou quieto, porque os advogados devem ter orientado que o contexto havia mudado. Acho que agora vai ser a mesma coisa. O ambiente não está mais para esse tipo de argumento. Por isso estou tranquilo. Se disser: “Não autorizei uso da imagem”. E daí? O STF decidiu por 9 a 0. Se alegar direito de privacidade, 9 a 0. Acho que é coisa resolvida.

CONTINENTE Após o julgamento do Supremo, você teve ou tentou ter algum contato com ele?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Não. Só tentei contato com Roberto durante a feitura do primeiro livro. Foram 15 anos tentando uma entrevista. Desde que ele entrou com o processo e a coisa foi para o âmbito da Justiça, as minhas manifestações em relação ao Roberto foram lá, respondendo e me defendendo. Nem ele me procurou nem eu o procurei. O caminho que ele procurou foi o da Justiça, lá foi resolvido, bem ou mal. Se ele me convocar de novo para a Justiça, irei lá humildemente me apresentar, se for o caso. Não estou preocupado com isso. Acredito que ele não deva cometer o mesmo erro novamente.

CONTINENTE Passados 12 anos da fase mais aguda da polêmica, como você vê esse imbróglio todo?
PAULO CESAR DE ARAÚJO A gente aprende muita coisa, acredito que o Roberto Carlos aprendeu também, ele não esperava a repercussão que teve, com certeza. Imagine, ele já tinha processado um mordomo em 1979, depois processou o jornalista Ruy Castro, em 1983, depois o jornal Notícias Populares, em 1990. Ele vinha no piloto automático, processando e recolhendo. Então ele deve ter pensado que comigo ia ser mais um. No meu caso, o episódio me deu uma projeção maior, com toda a polêmica. Mas também me atrapalhou. Já era para eu estar fazendo outros livros. Tenho vários projetos, um livro para fazer sobre cinema, outro sobre futebol e outros sobre música brasileira. E, por conta disso, fiz o primeiro livro do Roberto, fiz o segundo e estou agora fazendo o terceiro. Tudo bem, acho que é um tema que merecia três livros. A trilogia será minha contribuição. Outros projetos que eu poderia estar desenvolvendo chegarão mais tarde. Mas acho que o saldo foi positivo. Costumo dizer que Roberto foi a maldade que só me fez bem. No sentido de que não tenho nenhum ressentimento, não lamento nada, não me arrependo de nada. Estou firme e forte como historiador, observador, pesquisador de música brasileira. O trabalho que eu tinha de fazer, estou fazendo, e vou continuar.

CONTINENTE Essa frase sobre “a maldade”, soa muito Roberto Carlos.
PAULO CESAR DE ARAÚJO É um verso da canção Outra vez (risos).

CONTINENTE A admiração que você tem por ele desde criança foi abalada
PAULO CESAR DE ARAÚJO Não, nada, nada. Eu tenho de explicar isso. Ele foi meu ídolo desde a infância, mas minha relação com Roberto não é pessoal. Ele é meu objeto de estudo. Até pelo fato de ser pesquisador, sempre entendi suas limitações e contradições. Vejo Roberto como alguém que não tem intimidade com o objeto livro, nunca teve. Só alguém sem nenhuma intimidade para pedir para queimar livro, para apreender da forma como ele fez lá em 2007. Não tem a menor noção do que significava aquilo. Então, entendo suas limitações. Até por isso, a polêmica não me faz ouvir Detalhes e achar que a música ficou feia por causa disso. Analiso de forma positiva a obra dele. O objeto de crítica é o cidadão Roberto Carlos. É uma figura conservadora, com pensamento autoritário em relação à memória. Quando ele diz “a minha história é um patrimônio meu, quem escreveu esse livro se apropriou do meu patrimônio”, ele entende que a história é como se fosse um objeto particular e, na cabeça dele, assim como ele tem um automóvel, teria também a história dele, uma visão patrimonialista, autoritária. É a cabeça dele, e eu não tenho nada a ver com isso. Não concordo e critico. Agora, o artista Roberto Carlos não, os discos, a importância dele na história, isso não vai ser apagado.

CONTINENTE Você escuta ainda Roberto Carlos em casa? Põe um CD dele para ouvir?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Na verdade, como eu estou sempre trabalhando com Roberto, não é nem como lazer. Estou ouvindo porque estou analisando músicas, pesquisando, mas não no sentido de tomar uma cerveja e ouvir um disco do Roberto. Na hora do lazer, eu ouço outras coisas, até para variar. Mas estou sempre ouvindo, porque estou nesse tempo todo trabalhando. Nesse novo livro, por exemplo, estou analisando suas grandes canções, tenho de ouvir para ver o arranjo, procurando identificar a flauta, os maestros todos que fizeram os arranjos, o guitarrista que fez o solo na música tal, para falar com o cara, estou ouvindo e trabalhando.

CONTINENTE Essa análise profissional não abafou a intensidade da curtição que havia antigamente?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Não. Você sabe que tem a memória afetiva. Eu estava outro dia ouvindo a música Ana, tão linda, eu lembro de ir de Vitória da Conquista para Salvador, nas férias, para a casa do meu tio. Me lembro de um Natal que fiz uma viagem ao som do novo disco, esse de 1970. Estou ouvindo Ana para escrever e ao mesmo tempo me veem lembranças boas, é um prazer. Não é, em nenhum momento, um sofrimento. As músicas do Roberto só me trazem boas lembranças, lembranças da minha infância. Sobretudo essas canções de 1968 a 1975. O disco de 1970 começa exatamente com Ana, que é uma grande canção do Roberto.

CONTINENTE Você não acha que, pela imagem que você traça do cantor, com suas manias, submetido à proteção o tempo todo, a tentativa de censura não é coerente e se encaixa no perfil dele?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Sim, claro, em relação à atitude dele contra o livro, sim. Por isso estou dizendo que, como pesquisador eu não tomei aquilo como algo pessoal. Eu entendi também que deve ter sido duro para um cara que controla tudo sobre sua vida. Pelo menos, desde 1965, a luz não acende se ele não manda acender e não apaga se ele não manda apagar. Você imagine viver assim durante 50 anos, tudo do jeito que você quer. Tudo em torno dele, aquela entourage. Aí surge um cara que ele não conhece contando tudo que ele um dia queria contar, e o que ele pretendia nunca mais lembrar. Ele sentiu como se o chão tivesse fugindo dos pés. Mas ele vai ter se acostumar também. O mundo não acabou por causa disso. Acredito que deva aprender alguma coisa. Voltou a cantar Quero que tudo vá pro inferno, que ele também não cantava mais. Mostra que houve ali uma mudança, já está assimilando melhor as coisas.

CONTINENTE Na sua opinião, Roberto Carlos lançou nos últimos 20 anos alguma música de qualidade?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Ah, Esse cara sou eu é uma grande canção. O maior sucesso dele recente, um dos maiores da carreira. Não tem conversa, uma música que está no inconsciente coletivo, você fala, todo mundo já conhece. A gravação é boa. Depois de muitos anos ele acertou, como nos velhos tempos. Aquilo que ele fazia todo ano, em várias faixas num disco só, demorou a fazer, não é? Mas fez com Esse cara sou eu.

CONTINENTE No novo clima político no país, você teme a formação de grupos como o Procure Saber, que apoiou a censura às biografias, não somente em relação a livros, mas também sobre outros temas polêmicos?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Sem dúvida. O país está dando uma marcha a ré em vários aspectos. Acho, inclusive, que se tivesse demorado um pouco mais para ser decidido no STF, as coisas não seriam como foram. Ainda bem que, em 2015, o STF se manifestou em relação às biografias. Mas há um retrocesso que estamos aí acompanhando. A direita, que sempre existiu, apenas estava na moita; tomou a frente, se assumiu, tem base social, está lutando por pautas conservadoras. A história está aberta. O momento é delicado. Isso pode surgir sobre vários outros temas, mas, pelo menos, no caso do STF, em relação às liberdades públicas, ele tem se manifestado de forma contundente e favorável.

CONTINENTE Em 2003, o seu livro Eu não sou cachorro, não, trouxe a discussão entre a alta cultura e a baixa cultura, no setor musical, no caso dos anos 1970. Como você vê as novas manifestações da chamada música brega, como o funk e o tecnobrega?
PAULO CESAR DE ARAÚJO O brega sempre foi forte. O próprio sertanejo é filho dessa música, é herdeiro. Felizmente, agora há uma compreensão maior do fenômeno. A música brega vai se adaptando, modernizando-se. O brega ou cafona já existia na virada dos 1950 para 1960, com o bolero. Silvinho, Orlando Dias, Altemar Dutra. Em 1966, já tinha o brega jovem, essa vertente que, em vez de se manifestar pelo bolero, naquele momento começa a se valer de influências de Roberto Carlos. Aí estamos falando de nomes como Paulo Sérgio e Odair José. Tivemos Evaldo Braga com influência da batida da black music. Essa vertente romântica popular, que não se enquadra nem na tradição nem na modernidade consagrada pela crítica, chega aos anos 1990 e vai se misturando com o sertanejo nos grandes centros urbanos. Alguns críticos chamam até de breganejo. Enfim, ele está sempre em constante transformação, mas a essência é a mesma: o amor, a saudade, os temas do urbano romântico. Você tem o funk e o brega e, daqui a 10 anos, vai ter o brega ainda se misturando, nessa coisa que é a música brasileira, com diversidade de ritmos e culturas regionais. O brega está seguindo sua trajetória.


O cantor Odair José é um dos grandes expoentes do brega e está no livro Eu não sou cachorro, não. Foto: Divulgação.

CONTINENTE Do ponto de vista musical, o brega dos anos 1970 tinha bons músicos tocando em estúdio. Já agora, com as novas tecnologias, uma pessoa no computador resolve tudo. Não parece ter havido um empobrecimento
PAULO CESAR DE ARAÚJO Acho que você está constatando algo. Nos anos 1970, havia o poder das gravadoras no auge, a indústria fonográfica, e havia artistas bregas com uma consciência. Odair José dizia: “quero gravar com os mesmos músicos que gravam com Elis Regina. Quero Luiz Cláudio Ramos, quero Azymuth”. E a gravadora, tendo grandes músicos, aceitava. Isso foi possível. Era outro momento. A música brega “clássica”, como eu chamo os anos do AI-5, de 1968 a 1978, é gravada nesse contexto: gravadora com muito poder, artistas que sustentavam as gravadoras porque eram os que mais vendiam, e com a consciência de querer gravar da melhor forma possível. Isso propiciou a gravação de discos e canções que são eternas, de Fernando Mendes, Odair José, Agnaldo Timóteo, essa turma toda. Agora é muito mais simples, qualquer um senta ali no computador. Mas é outro estilo também, mais dançante.

CONTINENTE Do ponto de vista temático, o que acha da crítica a essa música jovem atual, de que haveria, sobretudo no brega, no sertanejo universitário e no funk, um apelo exagerado à violência, ao machismo e ao consumo de álcool?
PAULO CESAR DE ARAÚJO A música popular sempre expressou o pensamento médio do segmento social. Nos anos 1970, havia um certo pudor porque, na verdade, tinha uma geração de artistas – mais especificamente na MPB – de formação universitária, identificada a vanguardas literárias. Tinham um posicionamento mais crítico. Mas a música popular sempre expressou o meio social de onde ela surgiu. A música de malandro, por exemplo. A música de hoje expressa esse pensamento que existe na sociedade. O machismo, a violência, que se vê no funk, no breganejo, no brega. Claro, a gente pode analisar de forma crítica, apontar, desejar que não seja assim. E, certamente, a sociedade melhorando, tendo uma visão mais prudente e menos preconceituosa, isso vai se refletir na música que será feita. Mas acho que, grosso modo, ela está sempre expressando o segmento social que produz essa música, de onde se origina.

CONTINENTE Com a quebra do modelo tradicional de gravadoras, acabaram-se os controles. Agora qualquer um grava e coloca na internet, sem nenhum filtro.
PAULO CESAR DE ARAÚJO Sem nenhum filtro, claro. Antes tinha de passar pelo produtor, pelo diretor artístico. Ele sentava com um jovem de 22 anos e dizia: “Fernando Mendes, olha essa coisa aqui, cara, será que não é melhor mudar?”. Era o contexto da época. Gravadoras bem-estruturadas, departamento comercial, departamento artístico, diretor-geral. A Phonogram chegou ao máximo de contratar um psicólogo e fazia reuniões para analisar o artista por dentro, tirar “o que ele pensa da vida”. Reuniões temáticas com analistas, que luxo. Foi uma época.


Imagem: Reprodução

CONTINENTE Com a mudança radical na forma de se consumir música, você vê a possibilidade de surgir um novo fenômeno tipo Roberto Carlos?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Como historiador, tenho uma máxima: a história é aberta. Significa que tudo pode acontecer. Dizer que nunca vai surgir um novo Pelé, quem pode afirmar isso? Ninguém sabe. Pode ser que já tenha surgido e não apareceu ainda, está por aí jogando. Nunca surgirá um novo Beatles? Não sei. Não sei como vai ser isso daqui a 10 ou 20 anos. Essas coisas não são anunciadas, não se pode decretar que acabou. Eu torço para que apareça. Mas são fenômenos raros, por isso não aparecem sempre. No caso de Roberto Carlos, ele tem um capital de canções clássicas, ao longo da carreira, que é impressionante. Se houvesse um artista somente com três músicas, como Se você pensa, Jesus Cristo e As curvas da estrada de Santos, ele já estaria na história, fazendo shows com essas três músicas, estaria aí até hoje. Teria mercado para o resto da vida. Agora, imagina Roberto Carlos. Tem umas 50 ou 100 músicas que estão no inconsciente coletivo.

CONTINENTE Você acha que a internet tem força para gerar sucesso realmente de massa, ou é por natureza muito segmentada para isso?
PAULO CESAR DE ARAÚJO No tempo de Ana, por exemplo, lançada em dezembro de 1970, você podia não ouvir rádio, mas o rádio estava na rua, você passava e estava tocando. Havia lojas de disco no centro da cidade. O artista de sucesso chegava a todo mundo, você não precisava nem ver a parada. Com internet, MP3 e Spotify, há artista que tem carreira de 10 anos, lota estádios e a gente nunca ouviu falar. É impressionante. Fico sabendo que a banda tal comemora 10 anos e eu digo: “Caramba, como é que eu nunca ouvi falar?”. Eu estava ouvindo outras coisas. A coisa mudou e é difícil voltar ao que era. Isso se deve à diversificação, à multiplicação de mídias, de meios de ouvir música. Não há um sucesso, há vários sucessos com seus nichos. Claro que, de tempos em tempos, ocorre um sucesso muito grande – como Esse cara sou eu, que é um desses fenômenos. Algumas músicas conseguem isso. Mas, antes, isso era frequente, hoje é mais difícil.

CONTINENTE Na época, as pessoas viviam expostas aos sucessos, ouvindo o que queriam e o que não queriam. Não tinha como fugir.
PAULO CESAR DE ARAÚJO Isso é que era bacana. Você poderia não gostar da música, mas você ouvia. O sucesso era nacional. Eu morava no interior da Bahia, em Vitória da Conquista. Converso com as pessoas e todas têm a mesma memória das músicas. Eu estava no Sertão, tenho amigos que estavam no Rio e era a mesma coisa. Para mim, que mudei muito de casa, a música me coloca no tempo. Lembro onde estava. Minha mãe certa vez perguntou quando é que moramos em determinada casa. Eu lembrei que a música do momento era Coração de papel, então devia ser 1967.

CONTINENTE Se, nesses últimos 30 anos, ainda não dá para se enxergar nada que tenha se tornado clássico, talvez no futuro isso seja possível?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Sim, quanta coisa não era valorizada no passado e agora é. Imagine o filme Cidadão Kane. Lançado em 1941, ganhou um Oscar de melhor roteiro. E só. Aí, quando a revista inglesa Sight & Sound fez a lista dos melhores filmes de todos os tempos, em 1952, ele não estava entre os 10 primeiros. Quando chegou a lista de 1962, aparece em primeiro lugar. E desperta interesse no Brasil. Inventaram Cidadão Kane e o filme reinou esses anos todos. Caiu na última lista, em 2012. Vai continuar? Não sei. Enfim, a percepção vai mudando, novos críticos vão surgindo, alguém autorizado fala algo que convence. Estou dando um exemplo no cinema, mas isso pode ser relacionado a discos. Mas tem aquelas coisas que são eternas e permanentes. As canções de Roberto Carlos vão tocar muito tempo, porque estão na memória afetiva das pessoas.

CONTINENTE Com a distância do tempo, você acha que daria para relativizar a posição de Roberto no episódio da censura?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Tudo é possível, inclusive relativizar esses valores e conceitos. Sobre a visão patrimonialista, é difícil relativizar. A questão da privacidade é mais defensável. Mesmo depois do 9 a 0, tem quem se diga favorável ao argumento de que o fato de alguém ser artista não significa que ele não tenha controle sobre a vida pessoal. Pode-se relativizar e tem gente que relativiza até hoje. Mas isso não pode ser decidido por lei. Simplesmente dizer que alguém falou da minha vida pessoal e não pode, está errado. O artista está na ribalta. E, no caso do Roberto, pior ainda, porque ele canta a vida pessoal dele. Mas vai ter sempre defensores dessa tese do controle da imagem, que é plausível. Basta lembrar que Chico Buarque e Caetano tentaram defender isso no episódio famigerado do grupo Procure Saber. Por um momento, eles abraçaram essas causa. Estamos falando de figuras de vanguarda. Artistas que lutaram contra a censura, que foram marcados pela ditadura. A eles, naquele momento, não pareceu que isso era um absurdo. Tanto que Gil, Caetano, Chico, Djavan, Marisa Monte, Jorge Ben, a nata da MPB concordou com Roberto Carlos. Tendo Paula Lavigne, empresária de Caetano, como porta-voz. Teve um momento em que foram entrevistar o então deputado Jair Bolsonaro. O repórter perguntou: “Como o senhor se sente defendendo as mesmas teses de Caetano e Gil?”. Ele respondeu: “Não, eles é que estão defendendo as minhas teses. Bem-vindo ao clube dos sensatos”. E é verdade, não foi Bolsonaro que mudou. Ele sempre defendeu aquilo. Naquele momento, Chico e Caetano chegaram ao ponto de defender a mesma tese de Jair Bolsonaro. Você pergunta se no futuro isso não vai tomar uma proporção maior. Será que não haverá vários Chicos e Caetanos concordando com isso?

CONTINENTE Considerando que grandes obras de arte foram criadas sob a censura, e que boa parte dos regimes de esquerda também colocaram em prática restrições, você não acha que, no Brasil, teria se criado um pavor em relação a discutir o assunto?
PAULO CESAR DE ARAÚJO É, grandes obras da música brasileira, de Chico, Caetano, foram feitas até no cárcere. Também um livro, como Dom Quixote de Cervantes. Os artistas e autores reagiram a isso, tiveram que criar canções usando a linguagem da fresta, não é? Certamente, sem a censura não existiria Cálice, não existiria Apesar de você, e ao fazer isso eles estavam produzindo obras. No meu caso, como vítima da censura, resultou em O réu e o rei. Assim como Cálice não existiria sem a censura, O réu e o rei não existiria sem a censura a Roberto Carlos em detalhes. Isso é um desdobramento. A criatividade é atiçada e eu pensei que era uma história que podia ser contada. Vai inclusive virar filme. Claudio Manuel comprou os direitos do livro para fazer um documentário. E acho que vai virar também um filme dramatizado, porque ali tem uma história de superação, de drama, paixão, traição. Embora seja um caso específico, é um tema universal: um jovem do interior do Brasil tem um ídolo como referência. Ele resolve pesquisar esse ídolo, sofre a censura, isso provoca um debate nacional que leva a um impasse. O caso chega ao STF, que decide contra a censura por 9 a 0, e isso contribui para maiores liberdades públicas no país. Já escrevi o livro um pouco pensando num filme. Ali dentro, tem um roteiro. Por ser uma história de superação, por ter um drama. Acho que o cinema vai dar conta disso também. Tudo isso é resultado da censura. Você vê como a censura provoca fatos.

CONTINENTE No seu trabalho de pesquisa, você conseguiu o que muitos tentaram: encontrar pessoalmente João Gilberto. Tem falado com ele recentemente? Excetuando os shows em que você foi convidado dele em Salvador, em 1994, os contatos eram mais por telefone?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Há muito tempo, eu não falo com ele. Quando ele teve a filha com a nova mulher, as coisas mudaram. Ele mudou de endereço e de número de telefone. Depois começou esse imbróglio todo aí. Acalmando mais as coisas, pretendo ainda entrar em contato. Antes, sempre nos falamos no telefone. O papo seguia madrugada adentro. O período mais intenso foi por volta de 2002. Quando lancei Não sou cachorro, não, mandei o livro pra ele. Depois lancei Roberto Carlos em detalhes. Mandei pra ele com a dedicatória: “João, você me ajudou muito”.

CONTINENTE Entrevista, mesmo, ele não chegou a lhe dar?
PAULO CESAR DE ARAÚJO Entrevista, mesmo, não. Foram conversas, mas como ele tem memória muito boa, foi ótimo. É sensacional aquela história, que ele me contou pessoalmente em Salvador, de como entrou na Boate Plaza, em Copacabana, em 1959, e viu pela primeira vez Roberto, e cantando exatamente Brigas nunca mais, que havia sido gravada por ele. Ele se lembra da música. Depois, achei um caderninho com a letra do Roberto com as canções do seu repertório e lá estava a confirmação. O caderno foi mantido pela cantora Geny Martins. João me contou isso num encontro pessoal em Salvador, em 1993. Sem eu perguntar, ele disse: “Quando eu entrei na boate, Roberto estava cantando Brigas nunca mais”. Não é um grande hit como Garota de Ipanema ou Corcovado, que todo mundo canta. Mas ficou registrado. Impressionante. Mas aí eu entendi a intuição. João se deparou ali com o primeiro discípulo daquela geração que ia fazer história. Ele vai conhecer Caetano e Chico depois, todos os outros com quem vai ter maior proximidade. De Chico, vai ser até cunhado. O primeiro que ele conheceu, no entanto, foi exatamente Roberto Carlos. Era a geração mais nova que chegava, os discípulos, os “filhos de João”. O primeiro que ele vê ao vivo cantando é Roberto e ele tem nítida lembrança desse momento.

MARCELO ABREU, jornalista, autor de livros-reportagem como De Londres a Kathmandu.

 

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