Curtas

Recife

Fred Jordão e seu livro de fotografias sob a ótica de quem anda pela cidade

TEXTO MÁRCIO BASTOS
FOTOS FRED JORDÃO

 

05 de Junho de 2019

Foto Fred Jordão/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]

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De volta ao Recife após passar parte da infância e da adolescência no Rio Grande do Sul e em Brasília, Fred Jordão sentiu a necessidade de se reconectar com a cidade à qual pertencia, porém, de alguma forma, já não mais reconhecida. Eram meados dos anos 1980 e, com a câmera na mão, passou a circular pela capital pernambucana observando sua arquitetura, paisagem e pessoas. Desde então, mantém esse hábito e registra as transformações velozes vividas pela cidade. Esse olhar afetivo e crítico permeia Recife, livro que lançou recentemente pela Cepe Editora e reúne 175 fotografias produzidas entre 1986 e 2018.

Se o interesse por fotografia surgiu em decorrência de sua paixão pela música e o encanto com capas dos LP, rapidamente a atividade se transformou de passatempo para uma ferramenta de compreensão do mundo. Sua percepção sobre o entorno foi se depurando por sua imersão no mundo da arte e nas urgências do jornalismo. Fred trabalhou nas principais redações de Pernambuco, além de publicações alternativas, como os extintos jornais O Rei da Notícia e O Príncipe, experiências que o colocaram em contato com diferentes realidades sociais.

Em suas andanças pela cidade observou desde a destruição do patrimônio histórico até a relação das pessoas com o espaço urbano, tateando, por vezes inconscientemente, as mudanças pelas quais o Recife passava. As imagens que compõem o livro ressaltam uma cidade cheia de contrastes. Como observam o arquiteto e urbanista Luiz Amorim e o professor José Afonso Jr., que assinam prefácios à obra, os registros de Fred Jordão revelam “o Recife em todo seu vigor”.

“A princípio, fotografava temas específicos que me chamavam a atenção, como os meninos em situação de rua, os trabalhadores e transeuntes do Bairro de São José, o grande número de estátuas de índios pela cidade, as calçadas de pedras portuguesas, enfim, elementos que aparentemente não tinham ligação entre si. Mas, percebo que a ideia de transformação está muito presente no meu trabalho, que liga todos esses assuntos”, reflete o fotógrafo.

A sua curiosidade em relação à cidade é a grande força do trabalho e permite que seu olhar seja abrangente, preocupado não só com o centro, mas com as margens. Feitas com câmeras analógicas, digitais e com o celular, essas fotos se juntam em um mosaico complexo de uma cidade que, desde sua fundação, intriga habitantes e estrangeiros. Elas explicitam também o conceito histórico de mudanças e permanências.

Ainda que a velocidade das transformações atropele tradições e hábitos, estes também encontram formas de resistência. Dividido em três eixos, que vão do ponto de vista do mar, de quem chega ao Recife, às configurações urbanas e às dinâmicas sociais, Recife revela o embate entre uma concepção asséptica de cidade, com edificações sem qualquer identidade, e o vigor de uma cultura construída na rua, nas trocas interpessoais e na cultura popular.

“Temas como memória, afeto e identidade também me interessam muito e permeiam meu trabalho. Faço parte de uma geração que precisou olhar muito profundamente para o Recife. Nos anos1990, fomos classificados como uma das quatro piores cidades para se viver no planeta. Aquilo caiu como uma bomba. Não porque fosse uma novidade – sabíamos que era um lugar inóspito, racista, violento, cruel. Mas porque tinha também possibilidades infinitas. A gente fazia parte daquilo, então, ou você reage ou você rasteja. Era impossível não se engajar e interagir quando você convivia com Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Chico Science, Renato L, Xico Sá, toda uma geração de gente que estava pensando (o Recife) e querendo se expressar”, enfatiza.

Essas trocas intelectuais e vivências – Jordão tem sido parte ativa na cena artística da capital pernambucana, tanto na música quanto no cinema e é fortemente influenciado pela literatura – se expressam em fotografias que encontram recortes surpreendentes para paisagens amplamente conhecidas. A praia, o rio, as pontes e outros elementos que caracterizam a cidade nunca são apresentados de maneira unilateral. Há uma impressão das disparidades que constituem esse lugar de abundâncias e privações. Destaca-se ainda a força da experiência coletiva, com registros do povo e seus costumes.

Suas imagens do Recife se inserem em uma tradição que remonta ao século XIX, a exemplo de Cláudio Dubeux e Manoel Tondella, e floresceu no século XX, com artistas como Lula Cardoso Ayres, Alcir Lacerda e Wilson Carneiro da Cunha, cujos trabalhos tiveram forte influência na formação de Jordão. Por entender a necessidade de preservar a memória em uma cidade que parece se esforçar em apagá-la, o fotógrafo vê na publicação do livro uma forma de sensibilizar outros olhares e enfatiza a importância dos acervos de espaços como o Museu da Cidade do Recife e a Fundação Joaquim Nabuco nessa documentação.

Ao longo das páginas, é possível observar os efeitos da ação do tempo observados por Fred, desde estátuas corroídas, maltratadas pelo descaso, à catadora de marisco que, com a maré baixa, trabalha em um tempo alheio ao do caos urbano e das duas torres que ferem a paisagem do centro histórico da capital. As alegrias e sofrimentos do povo se revelam em imagens preciosas da metrópole e da diversidade das pessoas que nela vivem em uma tentativa, por excelência, de desvendar uma cidade-labirinto, que se põe como um mistério, inclusive para os seus habitantes.

MÁRCIO BASTOS é jornalista cultural.

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