06 de Maio de 2019
Ilustração Guilherme Luigi
[continuação da reportagem de capa da ed. 221 | maio de 2019]
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“Não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos” é uma citação cuja autoria a internet outorga, a depender do sítio, a Sigmund Freud, Jean-Paul Sartre ou Anaïs Nin. Sua veracidade é questionável, mas como o terceiro milênio nos legou a era da pós-verdade, e presidentes de repúblicas ocidentais não se ressentem de fazer uso das fake news ou de negar o aquecimento global, atenhamo-nos ao que sugerem as duas frases: a depender do nosso filtro, os contornos serão maximizados, hiperbolizados até. Assim, o que era organização cronológica de um povo da América indígena nos séculos que antecederam o “descobrimento” virou, há sete anos, um fetiche do Ocidente.
O calendário maia não preconizava o fim do mundo para 21 de dezembro de 2012. No tempo daquele povo que habitou e ainda habita a Mesoamérica (região que abrange o México e algumas outras nações da América Central), a raciocínio era cíclico, como explica a professora da UPE Kalina Vanderlei. “A nossa sociedade é teleológica e assim assume o tempo como linear: a história começa em um ponto, persiste e vai até o que na religião as doutrinas escatológicas tratam como o fim do mundo. Já os maias, assim como os astecas e os incas, adotavam uma visão cíclica, próxima ao que os hindus praticam até hoje. Assim, o universo era composto por eras que, ao chegar ao fim após determinado tempo, davam lugar a outras eras”, comenta a historiadora.
Os maias tinham dois calendários – um para festividades públicas, outro civil, para uso da agricultura, por exemplo. Em determinados ciclos de tempo, os dois coincidiam, “em datas importantes que não eram o fim do mundo”, atesta Kalina. “Acabava uma era específica e começava outra. Com os maias, era como se de 52 em 52 anos, houvesse um reboot”, contextualiza.
Professora de História da América, ela avisa que, embora houvesse semelhanças, não adianta homogeneizar a América indígena, tampouco chamar aqueles povos de “civilizações antigas”: “A própria ideia de civilização surge depois de 1500: com a conquista, tudo foi fabricado e assim vários discursos de indígenas como os tupis e os guaranis, dos maias, astecas e incas foram misturados ao discurso cristão. Eram diversas etnias, com culturas e pensamentos distintos, e não podemos generalizar, mas é preciso lembrar que o México tinha 25 milhões de pessoas antes da conquista espanhola, um contingente muito maior do que o da Europa”.
Outro aspecto que não nos pode servir de baliza, quando se examinam as tradições dos povos mesoamericanos, é o ideal de tempo ou mesmo de calendário. Quando as esquadras espanholas atingem o solo mexicano no século XV, os astecas já haviam contado cinco eras do universo, às quais eles se referiam como “sol”. À pergunta óbvia – é como se, nos 1500 anos do calendário cristão, cada sol tivesse durado cerca de 300 anos? –, Kalina Vanderlei rebate: “Não podemos pensar nos nossos termos. Essas eras poderiam ter durado milênios, como, aliás, duram as eras hindus. O que importa é que, ao contrário da nossa perspectiva linear, em que na ciência ou na religião o universo começou com o Big Bang ou com a criação de Deus, os politeístas astecas defendiam que, caso não desse certo, o universo poderia sempre recomeçar. E que, para durar o sol, era preciso manter os deuses felizes, e isso ocupava a vida do império inteiro e demandava sacrifícios humanos”.
Para adorar Huitzilopochtli, deus do sol e da guerra, era preciso oferecer o sangue dos melhores guerreiros, que eram assassinados no topo das pirâmides, tinham os corações arrancados e queimados no incensório – com a fumaça que chegava aos céus se certificava de que a veneração estava completa. Além da devoção aos deuses, a crença nos fins do universo mobilizava a população, mas não era compreendida como o Apocalipse maiúsculo do qual ninguém escapará. “A própria palavra apocalipse é de origem grega, então nem se aplica aqui. Essa construção de um fim de mundo é do judaísmo e do cristianismo, não dos povos mesoamericanos, que traziam uma outra ideia do fracasso, pois o universo terminaria para recomeçar. O tempo era circular”, reforça Kalina Vanderlei.
Na antiguidade, antes do lastro das religiões e da construção de um arcabouço teórico que estruturasse uma sociedade, o pensamento era mágico. Dessa forma, o conhecimento era rudimentar e a natureza, com sua instabilidade, abundância e potência, tudo poderia causar. “Imaginemos como sujeito um homem no pré-Iluminismo, influenciado pelos desígnios da natureza e sem o conhecimento racional do que provocava, por exemplo, um eclipse. Um homem na Idade do Bronze, que mal manuseava suas ferramentas, vê um céu que escurece de tarde, vira penumbra e faz sumir a lua à noite. Quando aconteciam os eclipses, poucos dias antes os animais começavam a se proteger, a temperatura se alterava. Havia o instinto de que aquilo poderia causar algum fim: o fim da alimentação, da colheita, da vida. Uma das narrativas era de que o fim do mundo era representado pelos eclipses. A noite virava dia, o dia virava noite e vinha um dragão para comer a Terra. Olhando para o céu, sem contato com tecnologia alguma, esse homem pensava assim”, considera a astróloga Carolina Leão.
Jornalista e socióloga de formação, aprendeu tarô com a avó na infância e há oito anos se dedica à astrologia, para a qual o fim não é algo a se temer. “A ideia de fim faz parte do pensamento astrológico, pois tudo nasce, morre e tem seu fim, e esse fim é necessário, porque faz parte da natureza humana. A astrologia tem mais de 2 mil anos. É o estudo do tempo, dos eventos com começo e fim, e tem origem na observação dos solstícios de inverno e de verão e dos equinócios de primavera e outono. Cada geração tem seu ciclo de continuidade e descontinuidade. Já o tarô é um oráculo mais atual, da Idade Média, pensando para entender os ciclos de começos, meios e fins. Às vezes, abre-se uma carta que diz o seguinte: tudo é possível até mesmo o fim. E precisamos ter fim para nossa energia se renovar. Astrologia e tarô partem do princípio de que existem contração e expansão”, define.
Tanto a astrologia como o tarô eram praticados por quem Carolina descreve como os “amigos dos reis” e, dessa forma, estavam suscetíveis a se relacionar com as religiões monoteístas. A astrologia, num primeiro momento ligada ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, posteriormente se incorpora a doutrinas budistas e hindus. O tarô, por sua vez, ligado à essência a práticas cabalistas, judaicas e cristãs, lida com personagens arquetípicos. “Em especial nas filosofias cristã e judaica, o tarô traz um pensamento baseado na apoteose, como se a natureza fosse explicada diante de um deus irado que pode varrer a vida quando ele quiser. Não havia instrumentos para o pensamento racional, para a mensuração dos ciclos da agricultura, por exemplo. Nesse sentido, o tarô tem um pensamento monoteísta, porque quem manuseava estava próximo a quem praticava o pensamento dominante naquele período, e traz cartas como o julgamento e o momento do apocalipse”, detalha.
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Para além do tarô, o apocalipse aparece como instrumento de manipulação nas narrativas míticas, baseadas no medo e no controle. Carolina Leão cita os exemplos da Torre de Babel, da destruição de Sodoma e Gomorra, de cidades prósperas como Atlântida ou mesmo da Arca de Noé: “A literatura da antiguidade tem fins catastróficos. Várias narrativas míticas falam da temática do fim de mundo não com base no sujeito, na subjetividade, na autonomia, e, sim, no clã, que une as pessoas. Para manter os laços de continuidade, uma das narrativas necessárias era o terror. O apocalipse está ligado a uma ideia de manipulação. Todo escrito apocalíptico dessa época é baseado no pensamento paroxístico, agudo, histérico. O objetivo é o controle. É o contrário, por exemplo, dos filmes de super-heróis, como Capitã Marvel ou a série Star wars, em que há o conceito de luta, de uma batalha por permanência. Depois, na literatura apocalíptica judaica, cristã e muçulmana, é como se tudo já tivesse dado errado. Afinal, o pensamento monoteísta unifica, dá coesão social, costura a sociedade”.
Não são infundadas as alusões ao universo dos super-heróis. Na cultura pop, fim de mundo é lucrativo; via de contínua exploração estética e caldeirão no qual podem ser arremessados elementos de mitologias diversas, a serem liquidificados para fruição imediata em qualquer suporte que venha se deslindar – fruição efêmera, posto que novos produtos hão de surgir.
Se alijarmos os aspectos mercadológicos, como explicar que, num intervalo de um ano, dois filmes baseados no mesmo corpo de personagens do universo da Marvel venham a ser lançados – Vingadores: guerra infinita (2018) e Vingadores: ultimato (2019)? Quando esta edição #221 da Continente estiver sendo folheada, Ultimato, do qual participam Homem de Ferro, Capitão América, Capitã Marvel e Thor, entre outros poucos restantes da destruição irrestrita do anterior, ocupará mais da metade das 3.356 salas de cinema do Brasil. A audiência gosta de apocalipses, nas telas ou na fonte original das histórias em quadrinhos.
Aliás, é difícil pensar em uma HQ que não tenha erigido a sua mitologia de um fim de mundo particular. Os zumbis alicerçam The walking dead, mas a ação não se aventura a ir além dos Estados Unidos, então não se sabe se os mortos-vivos atravessaram o Atlântico ou se a Europa já foi arruinada. Em Watchmen, um ataque extraterrestre é simulado para assegurar o bem maior que é a paz mundial; Superman, bem, ele próprio é um alienígena com capacidade para aniquilar e reconstruir planetas inteiros e muitas das suas jornadas épicas nas páginas das revistas, onde apareceu pela primeira vez em 1938, criado por Joe Schuster e Jerry Siegel, retratam-no na condição de salvador da humanidade; e Thor é o deus nórdico do trovão que com seu martelo trava embates cruciais para manter a integridade do reino de Asgard.
Márcio Padrão é jornalista especializado em ciência e tecnologia e aficionado por quadrinhos desde a infância. Quando o procuro para falar sobre o fim de mundo nas HQs, ele recorre a Joseph Campbell, um professor que, adepto da teoria do inconsciente coletivo de Carl Jung, abraçara o estudo da recorrência dos mitos. “Influenciado por Jung, Campbell estuda os mitos sob a perspectiva de que, na verdade, existe um número finito de mitos e assim as histórias contadas ao longo da humanidade são as mesmas histórias com outras roupagens”, comenta Márcio.
“Os super-heróis são considerados os mitos contemporâneos. Em Superman mesmo se pode fazer a analogia com Jesus Cristo, o emissário de fora que vem à Terra para nos salvar. Outros heróis têm respaldos em mitos antigos, como Thor, que recicla a mitologia nórdica. Eles atravessam jornadas individuais de superação, às vezes até a própria morte, para provar sua grandeza”, complementa.
Na Escandinávia, o Ragnarök é a quintessência da escatologia. Nos quadrinhos, e no cinema, Thor, filho do deus supremo Odin, já lidou com esse evento que poderia tomar emprestada a terminologia da ciência do clima – tipping point é o ponto a partir do qual não existe mais retorno – para se referendar como “o” Apocalipse.
Na tradição religiosa daquela porção que abarca Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia, existiam nove mundos distintos coabitados por deuses e criaturas fantásticas. Aos humanos, competia estar em Midgard, a “Terra do Meio”; os deuses da guerra moravam acima, em Asgard, com uma ponte guardada por Heindall a conectar ambos os planos. O Ragnarök tem início com um inverno devastador (você não sabe nada, Jon Snow: não existem coincidências) e corre com uma sucessão de infortúnios, que incluem a libertação de uma serpente gigante e um lobo animalesco e o embate entre os animais ferozes e os deuses liderados por Odin e Thor. O escritor e quadrinista britânico Neil Gaiman, de Sandman, releu essa configuração em Mitologia nórdica, que a Intrínseca disponibilizou no Brasil em 2017 (não por acaso, ano em que Thor: Ragnarok foi exibido).
Nos quadrinhos, como de resto na arte, “o fim do mundo está meio banalizado”, no olhar de Márcio Padrão. “O mundo sempre continua. O herói salva o suposto apocalipse, ou então não consegue salvar e morre, mas aí ressurge em uma realidade paralela, criando subterfúgios até vencer a ameaça impossível. Ou mesmo que ele não saia vitorioso, de repente, da destruição caótica surgirá uma nova esperança de vida”, vislumbra. É a ouroboros, a cobra mordendo o próprio rabo, cíclica como o tempo dos astecas, porque, afinal, ninguém vai acabar com os super-heróis “e Batman não vai ficar batendo em bandido menor para sempre, então de vez em quando precisa de algo maior”, como resume o jornalista.
O algo maior para o encenador teatral Pedro Vilela já aconteceu. Entre 2012 e 2018, a Trema Plataforma de Teatro pariu seis edições de um festival que ofertou ao público pernambucano o seu canto do cisne sob o tema Narrativas para uma humanidade em extinção. “Estamos na Matrix já. E se este planeta for o inferno de outro mundo, como perguntava Aldous Huxley?”, interpela, aludindo a Matrix, filme dos irmãos (hoje irmãs) Wachowski, cuja estreia em 1999 nos impeliu a repensar se estamos vivendo ou sendo ludibriados por máquinas. O festival Trema findou por falta de patrocínio, o que direciona seu curador – tarefa que Pedro dividia com a mulher e parceira criativa, Mariana Rusu – a mencionar A sexta extinção, de Elizabeth Kolbert: “O mundo já passou por cinco extinções, estamos destruindo o planeta, como se preparando a sexta extinção, e a primeira raça a sumir seria a dos artistas”.
É um chiste, ele revela com sua fala tranquila, “mas não muito longe do que estamos vivendo”: “Até porque as narrativas de extinção acontecem porque sobra alguém para contar”. No ano passado, quando ainda não sabia que aquele festival seria o último, Pedro e equipe enfrentaram a greve dos caminhoneiros (“o Recife parecia que já estava com a humanidade em extinção”) e abriram a grade para o público sem cobrar ingresso. Um dos espetáculos era O evangelho segundo Jesus Cristo, protagonizado pela atriz trans Renata Carvalho, que meses depois viria a ser objeto de censura durante o 28º Festival de Inverno de Garanhuns.
“O teatro é lugar de resistência há muito tempo e o tom pessimista que a cena brasileira apresentava em 2018 indicava que algo já deu muito errado no nosso país. Artistas como Renata sendo perseguidos, violência, medo e paranoia… Como o teatro se apropriava disso, era o mote da sexta edição do Trema e de outras mostras e espetáculos. Tem um momento em que uma das personagens de Pornoteobrasil, de Alexandre Dal Farra, pergunta para a outra: ‘mas você esteve o tempo inteiro no velório?’. Acho que já estivemos no velório e agora estamos mortos. Para esse fim do mundo, nossas formas de combate não funcionaram”, lamenta Pedro Vilela.
Aprovados em doutorado e mestrado no Porto, ele e Mariana viajaram sem previsão de volta. “Saio com a sensação de que o outro lado venceu, que a barbárie apocalíptica já se instaurou. Jota Mombaça diz que ‘nós somos imorríveis’, mas talvez seja preciso uma morte para as pessoas perceberem que tem algo muito errado. Não quero mais apenas resistir, quero passar a existir com dignidade”, condensa.
No contexto do país que ele deixa e a propósito da sua tese de que os artistas seriam os primeiros a desaparecer, duas semanas após essa entrevista, um músico no Rio de Janeiro dirigia o carro da família – ele, a mulher, o filho de sete anos e um amigo – a caminho de um chá de bebê quando o veículo foi metralhado por soldados do Exército. Oitenta tiros de fuzil destroçaram a lataria e mataram Evaldo Rosa. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, optou por se pronunciar assim: “Não me cabe fazer juízo de valor”. Poucos dias depois, o estado carioca foi assolado por chuvas torrenciais, dilúvios que as pessoas registraram em seus celulares, municiando a hipermnésia das redes sociais com imagens de fins de mundo, e que mataram 10 pessoas. A realidade, no Brasil, tem sido mais apocalíptica do que a ficção.
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E eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue;
E as estrelas do céu caíram sobre a Terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte;
E o céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares;
E os reis da terra, e os grandes, e os ricos, e os tribunos, e os poderosos, e todo o servo, e todo o livre, se esconderam nas cavernas e nas rochas das montanhas;
E diziam aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós, e escondei-nos do rosto daquele que está assentado sobre o trono, e da ira do Cordeiro;
Porque é vindo o grande dia da sua ira; e quem poderá subsistir?
O Livro do Apocalipse arremata a Bíblia católica e protestante. Escrito pelo apóstolo João, foi também a partir dele que se espalhou a brasa do Juízo Final, como se infere nesses versículos do Capítulo 6. Mesmo quem ignore por completo as escrituras sagradas há de reconhecer as imagens marteladas como os sinais da segunda vinda do Messias: quatro cavalos, tremor de terra, estrelas caindo, a ira do Cordeiro. No dia em que Jesus Cristo retornar à Terra, não sobrará pedra sobre pedra, como reza o dito popular: “vi também os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono; livros foram abertos, e foi aberto outro livro que é o da vida; e foram julgados os mortos pelas coisas que estavam escritas nestes livros segundo as suas obras”.
É possível, no entanto, ter uma outra experiência diametralmente oposta no aprendizado do último livro do Novo testamento, como apresenta à Continente a teóloga Alzirinha Souza. “O livro não tem nada a ver com o Juízo Final”, vaticina a coordenadora do mestrado em Teologia da Unicap, o único das regiões Norte e Nordeste. “É um livro escrito por São João quando ele estava exilado na Ilha de Patmos, no Mar Egeu. Depois de Jesus, no século I, a Igreja entra em um grande período de perseguição, pois essa mesma Igreja era uma dissidência do judaísmo tradicional. O catolicismo nasce como uma seita. O Apocalipse é codificado, escrito na época de perseguição: sete igrejas que são perseguidas, sete chifres, sete sinais… É uma linguagem cifrada”, acrescenta a professora.
Para ela, naquele momento, a ameaça não era de dragões que engoliriam a Terra, e, sim, de Roma à Igreja que tentava sobreviver: “São João escreve o evangelho dos sinais. Dos quatro apóstolos evangelistas – Marcos, Mateus, Lucas e João, é ele quem mais usa os sinais. Quando Jesus fala, e São João escreve, é para o leitor que ele diz que precisamos ser discípulos desse crucificado, que precisamos estar em comunidade. É preciso ler o Apocalipse, mas ler também seus estudiosos, seus comentários, para ir lá. Sua linguagem extremada revela que ele foi escrito na época de uma ditadura. Entre os séculos I e III, a igreja foi perseguida ao extremo: houve a morte de Pedro e Paulo em Roma, Santo André funda a Igreja do Egito e ela começa a se consolidar até que Constantino, por uma questão política, transforma o cristianismo na religião do império de Roma”.
Alzirinha Souza é uma teóloga leiga, não freira, o que é algo ainda raro na América Latina. Ela sublinha que a diferença entre a Teologia, o estudo da experiência entre o homem e o transcendente, das relações entre humanos e Deus, e a Ciência da Religião é a profissão de fé da qual se imbuem os teólogos. Hoje teóloga de orientação católica apostólica romana, ela se graduou em Economia e trabalhou por anos no mercado financeiro. Largou as finanças para se dedicar ao estudo, e posteriormente ao ensino, teológico. No mestrado, estudou a escatologia de fim de mundo; no doutorado, a esperança no processo da História.
Ela explica que a ideia de fim de mundo está presente em todas as religiões. Nas reencarnacionistas, como o espiritismo, e nas filosofias orientais, como o budismo, é como se não houvesse o peso de um Juízo Final, porque “existe sempre a possibilidade de voltar, em ciclos que alguns chamam de karma, outros, de reencarnação”. No judaísmo, a crença é na chegada do Messias, e não na segunda vinda: “Os judeus não ratificam a divindade de Jesus, sendo para eles um profeta, e o Apocalipse não faz parte da Torá, o livro sagrado do judaísmo, que é composto pelo Pentateuco, os cinco livros do Antigo Testamento”.
Na teologia católica, a escatologia encaminha que “um dia tudo e todos estarão com Deus”. “O fim do mundo não é especulação: do jeito que está, uma hora vai acabar”, ressalta Alzirinha. “Mas a Teologia hoje dialoga com as outras ciências. Não podemos desconsiderar tudo e dizer que Deus vai vir aqui derrubar o mundo. Tirar das nossas mãos e jogar a responsabilidade para cima não é o caminho: Deus cria porque ama, não para destruir. A ressurreição de Jesus Cristo nos dá a certeza de que, ao morrer, seremos plenificados por Deus. Não estamos mais na Idade Média, quando a Igreja Católica se confundia com o Estado, havia o maniqueísmo do bem e do mal e se falava em céu, inferno e purgatório. O avanço que se deu na escatologia católica é na experiência daquilo que Deus é: Ele criou o infinito para a vida, Ele quer te ver sempre maior e, no final da vida, seremos suportados por Sua graça, e não destruídos. A ideia de céu é estar pleno da graça de Deus. É para a liberdade que Cristo nos libertou, nem que seja depois que morrermos”, situa.
Ao longo de séculos, a compreensão de que “Deus vai vir aqui derrubar o mundo” norteou a interpretação das escrituras e suas representações imagéticas. O quadro The great day of his wrath, do pintor britânico John Martin, datado de 1851, faz parte de um tríptico dedicado ao evangelho de São João pertencente ao acervo da londrina Tate Britain e carrega o magnetismo que deve se esperar do instante em que a raiva do Criador se desnuda: relâmpagos cortam o céu e o solo se espatifa com um terremoto. É uma bela e agoniante composição pictórica, que primeiro repele, pelo medo que instila, mas depois captura nosso olhar: o arrebatamento do Juízo Final se sente na pele e na alma.
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Como dissemos, o cinema se encarregou de pulverizar esse sentimento e aperfeiçoar os mecanismos de narrar o fim do mundo a partir de imagens em movimento. Nos filmes, o fim de mundo pode se dar a partir de cometas ou asteroides, como em Impacto profundo, de Mimi Leder, Armageddon, de Michael Bay, ambos de 1998, de complicações sismológicas, como em O núcleo (2003), de Jon Amiel, e Terremoto: a falha de San Andreas (2015), de Brad Peyton, ou ainda de um holocausto nuclear - O dia seguinte (1983), de Nicholas Meyer.
Mesmo em um documentário do cineasta alemão Werner Herzog sobre campos de petróleo destruídos na invasão norte-americana ao Kuwait – Lições da escuridão, de 1992 –, há a sedução do apocalipse. “Herzog usa imagens aéreas daqueles campos pegando fogo, quase sem diálogo algum, a fumaça sobe e você tem a certeza da fim da humanidade, a concretização de que tudo foi dizimado. É como se fosse o after apocalipse”, relata o pesquisador Alan Campos.
Lições da escuridão é um dos seus objetos de estudo no doutorado em Comunicação na UFPE, no qual investiga as reincidências afetivas das imagens apocalípticas na cultura visual. “O páthos apocalíptico das imagens em circulação na contemporaneidade é reiterado pela comunicação, enquanto o cinema as codifica para criar uma versão mais palatável. Quero tentar entender como a cultura visual consome, reitera, afeta e é afetada por imagens, sejam elas da tragédia de Brumadinho, do naufrágio do Titanic ou do 11 de setembro”, detalha-me o graduado em cinema.
Ele é jovem: tinha 9 anos quando houve o ataque às torres gêmeas do World Trade Center em 2001 e se recorda de “estar jantando com meu pai e minha mãe, a televisão ligada e da violência dessas imagens do avião se chocando na segunda torre sendo exibidas a todo instante”. Quase duas décadas depois, em janeiro de 2019, deu F5 para atualizar a página do Facebook e descobriu o desastre em Brumadinho. Quis achar as “imagens de origem” da tragédia de Minas Gerais e, no domingo à noite, tradicional programa transmitido pela maior rede de televisão do país anuncia, “no próximo bloco”, as imagens exclusivas do exato momento em que se rompe a barragem de rejeitos de minério.
Para Alan Campos, as fotografias de Hiroshima e Nagasaki varridas após a explosão da bomba nuclear, os vídeos amadores do tsunami do Japão, em 2011, os telejornais que repetem Mariana e Brumadinho não podem ser assimilados sem o cotejo com as grandiosas tomadas com as quais Hollywood decreta o fim de tudo: “A ideia de separação entre real e ficção perde força quando essas imagens circulam e percebemos que cada uma delas não é um caso isolado, mas parte de uma poética que permeia cada uma com resquício de muitas outras. É a reincidência afetiva: elas não são ilhas, e, sim, um arquipélago. No cinema, viram espetáculo; na comunicação, enfatizam a violência”.
Por que o fascínio? “É quase um fetiche, não é? Acredito que tem a ver com nosso medo da morte, com a ideia da experiência do sublime, de querer ver e talvez vivenciar a tragédia. O cinema é regido pela lógica do espetáculo, mas por que a comunicação insiste nessa experiência do impossível?”, elucubra o pesquisador, que ainda tem quatro anos de doutorado pela frente e uma certeza: “Quero trazer o Japão e suas reincidências afetivas com o reflexo da bomba atômica e, mais recentemente, do tsunami. Não é só Godzilla, criado como efeito colateral da bomba H, mas os animes e os mangás revisitam essa questão de destruição que é tão forte no imaginário simbólico deles”.
Falando nele, Godzilla II: rei dos monstros, de Michael Dougherty, estreia no último final de semana de maio sob a promessa de um épico confronto entre criaturas míticas. Millie Bobby Brown, a Eleven do seriado Stranger things, está no elenco, quem sabe para atrair os adolescentes que ainda não assistiram à Terra sendo destruída pelo lagarto gigante com pinta de dinossauro. Adendo: um novo filme já está confirmado para 2020, Godzilla vs. Kong, cujo trailer é um presságio de duelo com o gorila King Kong.
Nunca vimos, porém, uma criatura tupiniquim a quebrar a Terra, um monstro da Amazônia vingando as dores impingidas aos povos da floresta ou o Juízo Final a um golpe do boitatá, a cobra com olhos de fogo batizada como mito tupi-guarani. Ao menos no panteão do imaginário pop, nosso apocalipse é importado: quantas vezes já vimos Nova York fenecer? Deve ser porque o fim de mundo à brasileira já se encontra em marcha. “Mataram o país”, brada o artista visual maranhense Thiago Martins de Melo.
“Fizeram uma higienização do passado, apagaram os negros, os mestiços, os nordestinos, os indígenas, acabaram com o meio ambiente”. Em Necrobrasiliana, individual sua em cartaz em São Paulo até este mês de maio, ele amalgama o réquiem do país com um corpus artístico que se notabiliza pelo sincretismo, por uma estética barroca e por um incisivo discurso político na revisão de mitos e do passado.
“Nessa exposição, proponho um olhar para essa coisa tenebrosa, apocalíptica, distópica que é a experiência do Brasil hoje, vendo o passado, a ditadura, que o Brasil de hoje rememora por causa do golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência. Trabalho dentro do presente, mas com um olhar para passado e futuro dentro dos processos civilizatórios no contexto do Terceiro Mundo. A questão é que estamos vivendo, de uma só vez, todas as catarses que o país poderia exorcizar”, esquadrinha.
Uma das telas de Necrobrasiliana se chama Tempo e sol de Luzia. Nela, Thiago pinta o retrato daquela que é o mais antigo fóssil humano da América do Sul (13 mil anos), cujo crânio sobreviveu ao incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018. “Queimaram o museu e quase destruíram Luiza, mataram Marielle, tiraram Dilma: essas três mulheres são signos do que estamos vivendo, do ataque ao feminino, à alma brasileira. Todos os nossos piores pesadelos estão se realizando”, esbraveja.
Em A queda do céu, compilação de vários depoimentos do xamã yanomami Davi Kopenawa ao etnólogo francês Bruce Albert publicada pela Companhia das Letras em 2015, entendemos que o desmoronamento do céu está em curso porque a ação dos homens brancos tem matado os xamãs. É a eles que compete orquestrar os xapiri, os espíritos da floresta, para evitar que o firmamento despenque. “Se nosso sopro da vida se acabar, a floresta vai ficar vazia e silenciosa. Nossos fantasmas irão juntar-se aos muitos outros que já vivem nas costas do céu. Então o céu, tão doente quanto nós por causa da fumaça dos brancos, irá começar a gemer e a se rasgar. Todos os espíritos órfãos dos antigos xamãs vão cortá-lo a machadadas”, elucida Davi, na página 493.
Xapiri, xamãs, sopros de vida: se não fôssemos tão reféns do imaginário estrangeiro, adotaríamos a cosmogonia yanomami como nosso incrível e próprio apocalipse.
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O verbete apocalipse vem do grego αποκάλυψις, apokálypsis, com o significado de “revelação”; kalumna é tradução para “véu”. É em consonância com a acepção literal da palavra que, na língua inglesa, a Bíblia termina com o livro Revelation. Mas, talvez, o fim do mundo só fizesse sentido se não fosse chamado de revelação, e, sim, de apocalipse mesmo, sobretudo para ser narrado com a portentosa locução do apresentador Cid Moreira no YouTube.
Foi ao YouTube, aliás, que a rede norte-americana CBS recorreu para noticiar o incêndio na catedral de Notre Dame, em Paris. Na tarde de 15 de abril de 2019, quando já estávamos no fechamento desta incursão aos fins de mundo, o ineditismo daquela imagem era desnorteante. Nunca a ficção havia pensado em atear fogo naquele monumento de quase 900 anos. Era tamanha a incredulidade da cena que muitos nela viram um atordoante sinal apocalíptico.
Nesta contemporaneidade alucinada, de negacionistas que advogam contra as evidências do aquecimento global e fanáticos que leem as labaredas de Notre Dame como metáfora para a destruição do Ocidente, um modo de acalentar a sanidade é crer em um “Apocalipse mínimo” como travessia para a sobrevivência no Antropoceno. O título do poema escrito por Noemi Jaffe em Todas as coisas pequenas (Hedra, 2005) é bálsamo e alento. “Na narrativa apocalíptica atual, tudo vai acabar e nascerá um novo mundo perfeito. Entendo de um jeito diferente: a revelação, que é literalmente a retirada do véu, é as pessoas descobrirem o que já têm”, diz Jaffe à Continente.
Em seu perfil no Twitter, a poeta e escritora rastreia a etimologia das palavras para delas conjurar novos significados, sem começos ou fins. “A retirada do véu está acontecendo a todo momento, nos gestos do cotidiano. Tudo que escrevo tem a ver com coisas concretas, triviais, simples. Por outro lado, estamos vendo o ocaso do capitalismo, que está sentindo a chegada do seu momento de saturação e resistindo de forma selvagem”, medita.
O exercício há de ser reinventar a finitude, e o fascínio que ela exerce, com delicadeza. Menos “as coisas enormes, monumentais, gigantescas e terríveis de que fala São João” e mais sutileza. Como evoca Noemi Jaffe, “o mundo não vai acabar com um estrondo, mas com um sussurro”:
Bem-aventurado quem lê e ouve as palavras desta alegria
Porque o tempo está próximo.
Ouvi por detrás de mim uma pequena voz como de assovio,
e que dizia:
o que vês, e ouves, escreve-o em uma melodia e envia-o.
E eu vi um gafanhoto que dizia
que todas as coisas grandes serão substituídas
por todas as coisas pequenas:
O infinito pelo grão;
A eternidade, por um triz;
A piedade, pelas coisas;
A verdade, pelas palavras;
O amor, pela graça;
O pecado, pelo capricho;
A história, pela gesta;
A certeza, pelo sim
Eu sou o que é, o que era e o que há de vir:
a letra e o som, a colmeia e a teia, a brecha e a raiz.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.
GUILHERME LUIGI, designer gráfico formado pela UFPE, com mestrado em Design de Produto pela Elisava em Barcelona. Trabalha com produção cultural.