Crônica

Um delírio de "ludopédico" e literário

(ou João Cabral é o Rivaldo da poesia)

TEXTO XICO SÁ 

01 de Junho de 2018

ILUSTRAÇÃO JANIO SANTOS

[conteúdo na íntegra (degustação) | edição 210 | junho de 2018]

Em uma imaginária
seleção brasileira de escritores, um escrete de poetas, cronistas e ficcionistas em geral, o posto de técnico seria, obrigatoriamente, de Mário Filho (1908-1966). O pernambucano, entre tantas jogadas de categoria, antecipou em décadas, como observou o cronista Alberto Helena Jr., a escola do new journalism da qual se gabariam os norte-americanos Gay Talese, Norman Mailer e Tom Wolfe nos anos 1960.

Pense na dificuldade para escalar um time titular na fartura de craques: Machado, Graciliano, Clarice, Drummond, Oswald, Osman Lins, Lima Barreto – mesmo odiando futebol –, Jorge de Lima, Cruz e Souza, Cecília Meireles, Sousândrade, Hilda Hilst, Rachel, Murilo Mendes, Bandeira, João Cabral, Joaquim Cardozo, Pena Filho, Érico Veríssimo, meu beque Ascenso Ferreira, Hermilo Borba Filho, Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Murilo Rubião, Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, meu atacante rubro-negro Raimundo Carrero…

A convocação deste humilde Mirobaldo da crônica é completamente de cabeça, cito os nomes que vão se agarrando, de forma aleatória, ao trapézio do cocuruto – pode incluir o seu craque, caro torcedor, sinta-se à vontade para borrar eventuais injustiças. De qualquer forma, o professor Mário Filho teria um trabalho da moléstia para mandar somente 11 a campo. Sairia aplaudido pelo arrojo na tarefa. Certeza.

Promovo o sururu na área, com este delírio ludopédico, e me reservo doravante a uma outra missão, um desafio pernambucaníssimo de localizar nas letras nacionais quem seria o nosso Rivaldo nesse time. Bem sabemos: para cada craque na bola há um escritor ou poeta correspondente na linguagem.

Chega de afobação. Achei o equivalente ao craque do Santa Cruz e da Seleção Brasileira campeã do mundo em 2002. A poesia canhota de Rivaldo, caríssimos arquibaldos e geraldinos, encontra o seu par na obra de João Cabral de Melo Neto. Óbvio que Rivaldo poderia também ser Graciliano Ramos, mas como o autor de Vidas Secas odiava futebol, preferia a rasteira como esporte nacional, vamos de poema em vez de prosa.

Rivaldo foi João Cabral, nas mesmas 20 palavras ao redor do sol. Na linguagem do jogo, apenas o necessário, como na fala, a lição de dizer com menos vocábulos. Até o adeus, tanto de um como do outro, dispensou a cerimônia, despediram-se da mesma coisa: o medo do excesso.

O poema ou a bola, ambos trataram com a canhota. As duas biografias se encontram como o Capibaribe e o Beberibe se unem para formar o Oceano Atlântico. A coincidência se repete no mesmo time que defenderam: o poeta e o atleta vestiram as cores do Santa Cruz – o poeta, América (do Recife) de nascença, cerebral center half, foi campeão juvenil de 1935 pelo tricolor do Arruda.

Em entrevista que publiquei no Jornal da Tarde nos anos 1980, João Cabral confessa, no seu pouco riso, que em campo repetia o estilo do poema e vice-versa. Àquela altura, pendia mais para a tourada madrileña do que para o futebol brasileiro.

Entre cafés e aspirinas, na casa de um parente na Estrada do Arraial, no Recife, nas cercanias da sede antiga do América alviverde, o poeta d’O cão sem plumas arriscou, nessa de comparar jogo e escrita: “Garrincha está mais para Nelson Rodrigues, inclusive nas tragédias cariocas. Alguém também pode inventar de achá-lo parecido com o João Guimarães Rosa, por causa das invencionices das palavras”.

O poeta não soltou mais palpites diante deste pobre foca – sob o comando do jornalista Carlos Garcia – com fome de vida e manchetes. Provoquei com o caso do goleiro e escritor argelino Albert Camus. Jogar no gol repetiria a miséria humana? Seria uma posição existencialista como a prosa e parte da filosofia de Camus? O poeta não deu muita corda à pergunta. Voltou a falar da relação com o América daquele bairro, time fundado praticamente dentro da sua casa.

Voltemos a girar ao redor desses dois sóis de Pernambuco: João Cabral não deixou um poema para o seu semelhante em campo, Rivaldo Ferreira. A primeira estrofe dedicada a Ademir da Guia, o craque palmeirense, no entanto, paga muito bem essa dívida. Repare se não poderia ter como objeto poético o melhor jogador da Copa de 2002:

“Ademir impõe com seu jogo/ o ritmo do chumbo (e o peso),/ da lesma, da câmera lenta/ do homem dentro do pesadelo.”

XiCO SÁ é autor de A pátria em sandálias da humildade (editora Realejo), entre outros livros. É colunista do jornal El País e comentarista de futebol na TV ESPN/Brasil.

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