Entrevista

“Eu não sabia o que era Carnegie Hall”

Prestes a completar 80 anos, Roberto Menescal, compositor, instrumentista, produtor e um dos ícones da Bossa Nova, fala sobre os momentos marcantes dos 60 anos de sua carreira

TEXTO Débora Nascimento

01 de Agosto de 2017

O músico Roberto Menescal

O músico Roberto Menescal

Foto Alcione Ferreira

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 200 | agosto 2017]

“Dia de sol, festa de luz.” Foi exatamente assim, de forma errada, que Roberto Menescal começou a cantar O barquinho, na sua malfadada performance no concerto da Bossa Nova no Carnegie Hall, em 21 de novembro de 1962. Diante de uma plateia de 3 mil pessoas, que contava com espectadores como Dizzy Gillespie, Miles Davis, Tony Bennett, Gerry Mulligan e Herbie Mann, a atrapalhada – e ainda desafinada – apresentação na casa de espetáculos da Sétima Avenida de Nova York era efeito do nervosismo do estreante, que ali cantava em público pela primeira vez. Por uma desorganização da produção e dele próprio, acabou tendo que colocar a voz na sua composição lançada um ano antes e que logo se tornou um dos clássicos bossa-novistas.

Naquela data, com apenas 25 anos, o capixaba radicado no Rio de Janeiro, “playboyzinho de Copacabana”, integrava a comitiva do evento que levou o new brazilian jazz para o mundo. O deslize do músico foi apenas um dos atropelos daquele histórico evento que, felizmente, não prejudicou a expansão internacional da bossa nem a carreira de seus expoentes, como João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e o próprio Roberto Menescal.

Além de renomado compositor (coautor de O barquinho, Você, Nós e o mar, Ah, se eu pudesse e Rio, essas com seu principal parceiro, Ronaldo Bôscoli, e de Bye, bye, Brasil, com Chico Buarque), transformou-se também num dos músicos mais requisitados do país. Sua trajetória de instrumentista começou há exatos 60 anos, quando, em 1957, passou a acompanhar Sylvinha Telles. Em 1958, com Luiz Carlos Vinhas, Bebeto, Henrique e João Mário, o músico formou o Conjunto Roberto Menescal, tocando nos shows e discos de diversos artistas, como Maysa, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Nara Leão e Elis Regina.

Concentrado na zona sul do Rio, o movimento, que simbolizava o clima ameno e desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek (1955–60), perdeu o sentido com a instauração da ditadura militar, em 1º de abril de 1964, menos de dois anos depois daquela apresentação no Carnegie Hall. Mas seus integrantes seguiram trajetórias vitoriosas, como Menescal, que, entre 1970 e 1986, trabalhou como produtor e diretor da gravadora Polygram/Philips (atual Universal), liderando um casting que, entre outros, incluía Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia.

Nesta entrevista por telefone, o compositor, músico e produtor, que em outubro completa 80 anos, fala sobre as seis décadas de trabalho na música brasileira, o mercado fonográfico, a relação com a música pernambucana, a conturbada amizade com João Gilberto, e revela algumas histórias de bastidores, como a daquela performance no Carnegie Hall.

CONTINENTE Como é a sua ligação com a música pernambucana?
ROBERTO MENESCAL Minha primeira ligação não foi nem com a música, foi com um músico. Quando eu tinha meus 18 anos, fui estudar com Moacir Santos. Tive a sorte de cair na mão dele. Foi vital, não só pelo meu lado musical, mas também como pessoa. Ele me deu muita lição de vida. Eu ficava fascinado, queria sempre saber como ele era, de onde veio. Ele veio de lá do sertão pernambucano e, de repente, vira esse músico maravilhoso, que depois foi vitorioso no Brasil e nos Estados Unidos. Isso me deu um rumo na vida, me fez pensar que tudo é possível. Depois, eu não tive mais muito contato com a música pernambucana nem com o estado. Comecei a viajar, e minhas viagens foram muito mais para o exterior. Mas, um dia, vim aqui em Pernambuco, 12 anos atrás, e tive contato com Luciano Magno, que é esse guitarrista maravilhoso, um dos maiores que eu conheço do Brasil, quiçá, do mundo. E a gente começou a ficar amigo. De repente, eu vinha fazer uma coisa junto com o trio dele no Recife. E, depois, vim para Garanhuns, em 2007, participar de um festival da música, e conheci algumas pessoas, como a cantora Andrea Amorim. Ficamos amigos, depois gravamos juntos. Não sei se foi nesse festival ou no do ano seguinte, me pegaram no aeroporto e eu subi também para Garanhuns com André Rio. Não sabia quem ele era, só no meio do caminho fui saber, e a gente foi criando essa relação. Nesse mesmo festival, fiz uma música para o Luciano (Samba Magno). André Rio pôs a letra. Então, foi se formando um grupinho. Depois, eles me chamaram para fazermos uns shows. Ano passado, fizemos mais alguns, agora esses (Paço do Frevo, Teatro RioMar e Porto de Galinhas) e depois seguiremos para a Europa.

CONTINENTE Você começou falando sobre Moacir Santos, e essa já era uma das minhas perguntas. Queria saber o que era ensinado nessas aulas, quanto tempo durou esse curso.
ROBERTO MENESCAL Passei um ano com ele, estudando toda semana. E era engraçado, porque ele me dava aula, depois falava: “Senta aqui no sofá”, e ficava me dizendo coisas. Por exemplo, perguntei a ele: “Posso fumar aqui?” Ele falou: “Pode, claro, eu fumo também.” Aí, eu fumava e via que ele não fumava, e perguntava: “Moacir, você fuma ou não fuma?” “Eu fumo, mas fumo um cigarro por dia, que é melhor do que os 20 que você fuma. Você não sabe o que é fumar um cigarro por dia, esperar aquelas 24 horas pra fumar apenas um cigarro.” Aquilo, na realidade, era uma dica, inclusive musical: não precisa usar tanta nota, use as notas boas na hora certa. Então, ele me ensinava música comparando com a vida. Foi um ano de muito aprendizado. Foi meu primeiro grande mestre.

CONTINENTE Antes da Bossa Nova, o que você tocava?
ROBERTO MENESCAL Comecei a tocar violão muito tarde, com 17 anos. A primeira música que me fez sair de casa para comprar um disco foi Boiadeiro, de Luiz Gonzaga. Fiquei louco com essa música, ouvi no rádio e foi uma coisa. Mas, fora disso, eu ouvia mesmo o que se tocava no Brasil inteiro, o samba-canção. O samba-canção dominava a Rádio Nacional, no Rio, com aquelas cantoras todas, Marlene, Emilinha.

CONTINENTE Tinha Antônio Maria também, compositor pernambucano.
ROBERTO MENESCAL É o compositor mais triste que eu conheci, porque as músicas dele eram tipo “Ninguém me ama, ninguém me quer”, aquele drama.

CONTINENTE Era o fim da esperança.
ROBERTO MENESCAL Eu me sentia esquisito, pensava: não posso, com 18 anos, estar tocando e cantando “Ninguém me ama…”. Porque, naquela época, eu achava exatamente o contrário, que todo mundo me amava. Eu, aquele menino de Copacabana, playboyzinho. Então, achava aquilo esquisito, apesar de adorar. Sabia tudo quanto era samba-canção. Mas começamos um grupinho, uma coisa mais solar, mais esperançosa. E começamos a brincar com isso sem nenhuma intenção profissional, e fomos fazendo. Aí, chega um cantor: “Vem cá, me disseram que vocês têm música.” E foi aí que nasceu espontaneamente isso que se chamou mais tarde de Bossa Nova.

Roberto Menescal, por Alcione Ferreira

CONTINENTE Qual foi o sentimento que o tomou ao fazer aquela apresentação no Carnegie Hall?
ROBERTO MENESCAL Primeiro, confesso que eu não sabia nem o que era Carnegie Hall. Eu lembro que uma pessoa do Itamaraty me telefonou convidando, e eu falei: “Eu não posso, porque marquei uma pescaria em Cabo Frio com os amigos.” Aí, ele falou: “Puxa, mas vai todo mundo.” Aí, o Tom Jobim me telefonou: “Menesca, você não vai porque tem uma pescaria? É importante esse show.” E um pedido de Jobim pra mim era uma ordem. Ele era meu grande mestre também, como Moacir. E eu fui, não sabia o que era Carnegie Hall, não sabia o que era nada. Aí, chega nos Estados Unidos, a gente desembarca, e eu fui o primeiro a passar pelo controle de passaporte. Quando eu passei, vi uns sete músicos daqueles que a gente amava e tinha todos os discos. E a gente sonhava com aquela música. De repente, falei: “Turma (nessa época, não se usava ainda o termo galera), olha só, a gente chegando aqui e tem Gerry Mulligan ali”, e fui citando os nomes que estavam lá. Eu achava que, por acaso, eles estavam por lá. Aí, o cara que estava recebendo a gente disse: “Eles vieram receber vocês.” Não entendi: “Eles conhecem a gente?” “Claro que conhecem! Vieram receber vocês.” A gente não tinha noção de que nossa música tinha ido antes. A música do Tom, Desafinado, já estava tocando bastante por lá. Isso era uma vitória incrível do Brasil. Então, foi uma grande emoção, uma maravilha a gente ter ido, e nossa música foi para o mundo dali em diante. Mas teve o lado bom e o lado triste, porque eu fui o único que voltou, tinha marcado o meu casamento, que aconteceu dois meses depois. Quando vi, minha turma toda já estava em Los Angeles, na Califórnia, em Nova York, outros foram pra França, pra Itália, México, e eu voltei para o Brasil sozinho, e vi que, na verdade, era isso mesmo: acabou aquela turminha que ficava fechada ali fazendo música e se abriu para o mundo. Foi ótimo! Mas eu fiquei um pouco sem chão.

CONTINENTE Como foi a sua apresentação?
ROBERTO MENESCAL A gente ficou uma semana lá em Nova York, dando entrevistas, e conhecendo aqueles músicos todos, que seriam inalcançáveis pra gente. Num dia, estava na casa de um; depois, na casa de outro. Veio a apresentação, e eu nunca fui cantor, não é a minha cantar. Sou mais instrumentista, compositor. E chega lá, na véspera, não preparei nada com ninguém. Tinha que ter tocado com Oscar Castro Neto, com Sérgio Mendes, eles se ofereceram. Mas chegou na véspera, eu perguntei: “Como é que a gente faz?” Aí, tanto um quanto o outro falaram: “Cara, aí não dá mais para preparar o negócio com você.” E eu virei pro produtor e disse: “Não vai dar para eu me apresentar.” Ele falou: “O quê?! Você veio, está há uma semana aqui, passeando, indo na casa dos músicos todos, e agora não vai se apresentar? Está anunciado!” Entrei no Carnegie Hall, que é assustador. Você entra por trás, e é a aquela coisa de fundo de teatro, rua decadente, entradinha de teatro. Quando você entra, vê aquele palco, aquela plateia fabulosa; levei um susto e tive que cantar. A primeira vez que cantei na vida foi no Carnegie Hall. Acho que ninguém fez isso, estrear no Carnegie Hall. Mas durou um dia a carreira de cantor. No dia seguinte, eu disse: “Não quero cantar mais, não.”

CONTINENTE Você atribui o fim do ciclo da Bossa Nova a esse show, porque as pessoas se dispersaram? Ou foi o golpe militar, dois anos depois, que acabou com o clima bossa-novista no país?
ROBERTO MENESCAL Acho que as duas coisas. Essa dispersão pelo mundo, na realidade, foi um renascimento, o final de um ciclo no Brasil, onde a gente se encontrava todo dia, toda noite. Ao mesmo tempo, as raízes da nossa música foram se abrindo para todo o mundo, do Japão aos Estados Unidos. E, por outro lado, logo depois começa a ditadura, o golpe militar, e a gente leva aquele susto. Começam também a aparecer compositores que eu chamo de “compositores da ditadura”, que surgiram com a missão de lutar contra aquele regime, mesmo os compositores que já estavam sendo conhecidos, como Edu Lobo, o próprio Marcos Valle. E eu, aquele playboy de Copacabana, que jogava futebol na praia, não me sentiria honesto, se fizesse isso. De repente, a terra era de ninguém. Meu parceiro, Ronaldo Bôscoli, falou assim: “Beto, a gente vai ter que hibernar um pouco, esperar passar esse regime totalitário, pra gente voltar a fazer a nossa música.” Você está ouvindo?

CONTINENTE Estou ouvindo.
ROBERTO MENESCAL Aí, nós hibernamos. Eu fui tocar com a Elis Regina, e saí pelo mundo trabalhando. Depois, fiquei 15 anos sem tocar, porque entrei para a gravadora Polygram e fui alçado ao cargo de diretor artístico. E, com 80 artistas de primeiro time, não tinha tempo pra dormir, imagine pra tocar. Parei de tocar, não fazia mais música. Fiz Bye, bye, Brasil, porque era para a trilha do filme de Cacá Diegues. Fiz com Chico. Minha carreira de compositor tinha passado para segundo plano, até que voltei em 1985. Larguei a Polygram, larguei tudo, fui para o Japão, gostei novamente da vida de música.

CONTINENTE Quando você perguntou “está ouvindo?”, lembrei da história de João Gilberto, que ligava para você de madrugada, passava horas falando e perguntava: “Está ouvindo?” Você respondia “sim”. E ele: “Então, repita tudo o que eu disse.”
ROBERTO MENESCAL Eu sofri muito essa situação. Ele dizia: “Rapaz, você está dormindo.” “Não estou, não, João.” “Então, repita o que eu falei.”

CONTINENTE Queria que você falasse sobre a sua relação com João Gilberto. No livro Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, você disse (para o jornalista alemão): “João é perigoso, tem uma coisa de sombrio, ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.” E aí você fala que as pessoas faziam tudo o que ele pedia. E você era uma dessas pessoas.
ROBERTO MENESCAL É verdade. Eu fui escravo. Agora, você sabe o final desse livro, né? O autor se matou.

CONTINENTE Sim.
ROBERTO MENESCAL Ele (Marc Fischer) falava assim: “Por que você o acha perigoso?” “Rapaz, tem que tomar cuidado, porque você vai perder sua personalidade.” Ele dizia: “Não é possível.” E perdeu, né? Você vê que o cara era um daqueles alucinados por João Gilberto, como tem no mundo até hoje. Acabou se matando, porque, sei lá, achou que realizou a obra que ele queria. E que não tinha mais nada na vida pra fazer. O João tem uma personalidade muito forte. Eu sempre falava para as pessoas: “Não chega perto do João, que você está perdido.” O cara não acreditava: “O quê? Comigo não, eu não gosto da música dele.” Cinco minutos depois, o cara estava: “Sim, João, o que você quer? Do que você precisa?” É impressionante o domínio dele sobre as pessoas, sobre a plateia. A força dele aparece naturalmente.

CONTINENTE Como foi o seu primeiro contato com ele?
ROBERTO MENESCAL  Eu ia muito aos ensaios do Trio Irakitan. Aí, eles mostraram Ho-ba-la-lá e Bim-bom. Fui conhecendo a música do João. E, um dia, era o aniversário de 30 anos do casamento dos meus pais. Eles nunca tinham dado uma festa na vida, e deram uma festa de gala, todo mundo com aquelas roupas finas, as mulheres bem-produzidas. E eu, garoto, fiquei na porta recebendo as pessoas e os presentes. De repente, tocou a campainha. Abri, era um cara desconhecido. Pensei: “Deve ter vindo entregar alguma coisa.” Falei: “O que é?” Ele disse: “Você tem um violão? Eu queria tocar.” Mas ele não falava quem era ele. Abri a porta um pouquinho e mostrei: “Olha, está havendo uma festa aqui em casa, um montão de gente.” Aí, ele falou: “Ih, é grave, hein? Mas a gente não pode tocar?” Eu sem saber quem era. “Pô, cara, é difícil, eu tô aqui recebendo as pessoas.” “Mas não tem um lugarzinho que a gente possa tocar?” Aí, eu falei: “Entra comigo aqui rapidinho.” Entramos no quarto, o violão estava na cama. Ele pegou e já fez: “É, amor, ô, ho-ba-la-lá…” Falei: “Pô, você é o João Gilberto?!” Ele falou: “Sou, como é que você sabe?” Falei: “Por causa da tua música.” E ficamos tocando. Ele falou: “Não dá pra gente ir embora, não?” Ele me arrancou da minha casa, da festa dos meus pais. Saí com ele e fui mostrando as casas de Nara Leão, do Carlinhos Lyra, da turma toda. Fomos de casa em casa. Fiquei três dias fora com João. A gente tocando, com a mesma roupa. Aí, ficamos muito amigos. Fiquei dependente do João durante anos. Até no concerto do Carnegie Hall, fiquei muito dependente do João. E lá, eu falei: “João, eu vou me mandar, porque minha vida está complicada, tenho que me soltar um pouco.” Porque todo dia eu ouvia: “Vem cá, o que você vai fazer? Me empresta teu violão, que esqueci o meu.” Eu ficava muito dependente dessa relação; fazendo minha vida, tudo, mas sempre tinha uma coisa. Aí, em 1962, falei: “João, vou me mandar, porque vou ter que achar meus caminhos.” Ele falou: “Rapaz, que sacanagem…” E ainda me cobrou! Mas a última vez que nós estivemos juntos foi ali.

CONTINENTE Mas, ainda assim, vocês mantiveram contato por telefone?
ROBERTO MENESCAL  Muito pouco. Porque falei: “João, não posso ficar aqui às três da manhã.” Aí, ele dizia: “Mas, rapaz, Caymmi fica.” “Mas eu não tenho o tempo do Caymmi. Ele está feito na vida. Eu tenho que me fazer.” Ele disse: “Então, tá. Sacanagem…” Ainda me botou uma culpa na cabeça. Mas continuei com a admiração total por ele. Acabei de receber um livro de um japonês sobre o João, que descreve todas as formas como ele canta cada música. É outro escravo do João Gilberto. No livro João Gilberto, um cara diz: “Esse é o maior cantor que eu conheci na vida.” O outro fala: “A Barbra Streisand é muito boa, o Frank Sinatra é muito bom. Mas ninguém chega aos pés do João Gilberto.” Isso no mundo todo, as pessoas que conheceram e admiram a arte dele. E você vê que a gente acaba conversando sobre João Gilberto. E, se bobear, a gente fica até de noite conversando sobre João Gilberto.

CONTINENTE Mas eu queria falar sobre outras coisas também, como a sua parceria com Ronaldo Bôscoli. Como era o processo?
ROBERTO MENESCAL Era um processo meio de casamento. A gente é completamente ao contrário. Ele, noite; eu, dia. Acho que isso completava a gente e isso gerou muita música. O Ronaldo era um grande letrista. O Caetano mesmo falou: “Ronaldo Bôscoli foi um dos maiores letristas que eu conheci.” E o Ronaldo, por sua vez, teve uma hora que, quando a Tropicália entrou forte mesmo, falou: “Beto, não dá pra fazer mais letra depois de Caetano, Gil, Chico, essa turma.” Aí foi quando eu entrei para a Polygram também, e a gente parou de compor. Fizemos mais umas duas ou três músicas. Mas eu já estava com a cabeça em outro lugar. E ele estava fazendo música com outras pessoas também. Mas foi meu grande letrista. Ele tinha um ciúme de mim, por eu estar sempre viajando com as cantoras. Até me apelidou de Rabo de Cometa, dizia que eu estava sempre atrás de uma estrela. Porque a vida também me abriu para trabalhar com as grandes cantoras. Aliás, o Brasil é o país das cantoras. Estou sempre com uma cantora daqui, uma cantora de fora. Gravei recentemente um disco com uma pessoa que adoro, Stacey Kent, uma cantora de jazz americana. Minha carreira é meio fora do que está acontecendo na TV, na rádio.

CONTINENTE Hoje a diversidade musical é muito maior; antes, ficava tudo muito dominado pelas gravadoras. Como você observa esse novo cenário?
ROBERTO MENESCAL  Hoje todo mundo tem seu estudiozinho caseiro. Isso é bom. Tem o lado ruim também. Aparece muita coisa ruim. Essa diversidade está acontecendo de uma forma muito grande. Agora quem se salva, a gente vai ver aos poucos. Na verdade, é o fim de um ciclo, que começou nos anos 1920, no século passado, quando o samba veio, o jazz veio, o cinema veio e a televisão, isso tudo veio trazendo uma série de artistas. Estou falando da área de música, mas também de todas as áreas, dança, cinema… Mas, na área de música, os Estados Unidos projetaram esses cantores todos. Acho que esse ciclo está se fechando agora.

CONTINENTE Você, que tem acompanhado esse mercado há 60 anos, qual a avaliação que faz dele?
ROBERTO MENESCAL  Tem uma turma que faz música como investimento, a música sendo reconhecida por investidores, como o cara que investe na bolsa de valores. Isso é principalmente o sertanejo. Pegam um garoto começando, fazendo um showzinho com 300 pessoas, avaliam o cara, botam dinheiro, cobram um percentual alto dele. Esses artistas acontecem muito rapidamente e com uma estrutura que ninguém teve até hoje. Então, dominaram o país. Nunca pensei que o sertanejo fosse entrar no Recife, por exemplo, e entrou, como entrou em qualquer lugar do Brasil e está chegando ao Japão e a vários lugares do mundo. Mas esse domínio tem uma duração, porque é uma música que não te faz pensar muito. Na nossa música, a gente pensava muito nas harmonias, queria puxar o público para um degrau acima. Ao mesmo tempo, nunca tive tanto trabalho na música como tenho agora. Porque tem a turma que vive da mídia e a que quer “outras coisas”, procura na internet. Tudo o que a gente faz está cheio de público.

CONTINENTE Você está prestes a fazer 80 anos. Como é a expectativa de chegar a essa idade? Isso tem um peso pra você?
ROBERTO MENESCAL  Vou fazer 79,99 – aquele preço de remarcação. Uns amigos de colégio, de vez em quando, vêm falar comigo – penso: “Pô, esse cara foi meu colega, ele tem minha idade.” Aí, acho o cara acabado, não só fisicamente, não, mas mentalmente, intelectualmente. “O que você faz?”, pergunto. “Eu tô aposentado.” “Eu sei, mas o que você faz?” “Ah, tô aposentado.” Pô, aquilo me bate um negócio. Fico pensando: “Como é que eu posso não fazer nada?” Então, não concebo uma coisa dessas. E eu tenho de estar me lembrando de que estou fazendo 80 anos, senão vou fazer estripulias. Adoro trabalhar, trabalho como muito pouca gente. Então, não tem esse negócio dessa idade pra mim. Acho que tudo é atitude. Vim, nesses últimos 20 anos, preparando a minha cabeça para o lado bom. O país está ruim, a gente sabe, está uma desgraça, mas estou sempre falando: “Não, mas isso é bom, é o princípio de um fim.” Estou sempre achando que está tudo bom. Se está chovendo, falo: “Oba! Vou arrumar o armário hoje de manhã.” Se está sol, “Vou lá para fora, ver minhas plantas”. Então, estou sempre procurando o lado bom da vida. E isso te leva adiante, a atitude com você mesmo, o teu físico, não deixar o corpo arquear. Estou sempre levantando o ombro. Digo “Vamo lá” pra mim mesmo, como se estivesse me comandando. O caminho é muito grande pela frente. 

Roberto Menesca, por Alcione Ferreira

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente online.

EXTRA | Confira AQUI a matéria de capa da Continente #34 sobre outro ícone da bossa nova, Vinicius de Moraes.

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