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O poder da imagem em forma de livro

Cada vez mais frequentes no mercado editorial do país, os fotolivros ampliam o entendimento de fotografia e as suas possibilidades editoriais e gráficas

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Agosto de 2017

Foto Ana Lira

[conteúdo da ed. 199 | julho 2017]

Cerca de 15 anos antes da chegada do século XXI, Italo Calvino escreveu: “Em torno de cada imagem, escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. Na organização desse material, que não é apenas visivo, mas igualmente conceitual, chega o momento em que intervém minha intenção de ordenar e dar sentido ao desenrolar da história – ou, antes, o que faço é procurar estabelecer os significados que podem ser compatíveis ou não com o desígnio geral que gostaria de dar à história, sempre deixando certa margem de alternativas possíveis”. O trecho foi extraído do livro Seis propostas para o novo milênio (Companhia das Letras, 1990), uma publicação póstuma do escritor italiano, que morreu antes de concluir os textos dessas palestras que viria a proferir na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. O teor de tais falas refere-se ao processo de escrita de Calvino e à literatura de uma forma geral, mas também nos ajuda a pensar, particularmente no trecho acima, outras construções narrativas, como a do nosso tema em questão: a produção de fotolivros.

Quando ministra aulas de editoração de livros de fotografia, o fotógrafo e editor Alexandre Belém recorre justamente a essa citação de Calvino para sintetizar um processo caro à feitura das publicações de sua editora, a Olhavê. Um processo caro ainda à centralidade que a imagem assumiu entre nós, ao produzir os mais diversos tipos de discurso neste mundo de urgências. Esse processo chama-se edição, que está no cerne dos fotolivros da Olhavê, especializada em imagem, e de outras publicações do gênero, cada vez mais recorrentes no mercado editorial brasileiro.

Não estamos falando de livros de fotografia somente, tampouco do que se convencionou chamar de photobook ou fotolivro mesmo – no Brasil, um termo comumente associado ao serviço de impressão comercial de fotografias digitais em álbuns. Em nosso contexto aqui, entendemos fotolivro como algo “que não é apenas visivo, mas igualmente conceitual”, para trazermos Calvino novamente. Nesse sentido, são publicações que primam por um conceito e convidam ao mergulho, à suspensão do tempo, estando certamente muito mais próximas de um livro de arte ou de artista, embora, por razões óbvias, tenha a fotografia como sua matéria-prima. Os fotolivros têm um impacto na maneira como entendemos “foto” ou mesmo “livro”, pois o encontro dos dois segmentos tem formado uma área peculiar de conhecimento. Uma das consequências é o reentendimento do que seja prática e difusão fotográfica. Isso amplia os horizontes da fotografia e, a reboque, as possibilidades editoriais, com especial ânimo para as produções independentes ou alternativas, de caráter mais artesanal.

Não se trata de uma novidade. Como diz o pesquisador e professor espanhol Horacio Fernández, “o fotolivro é uma obra do século XX”, um gênero vindo, pelo menos, desde os anos 1920, “embora sua história comece antes”. Poderíamos afirmar que sua história acompanha a própria criação e difusão da fotografia, entre os séculos XIX e XX, e cresce com ela, traduzindo seu tempo, suas transformações, suas novas demandas. Talvez isso explique o fato de o fotolivro ser um suporte antigo, mas com vocação e impulsão bastante contemporâneas, pois “deve-se reconhecer que o interesse pelos fotolivros é muito recente: tem apenas uma década”, como também afirma Fernández, responsável pelo texto e pesquisa de Fotolivros latino-americanos (Cosac Naify, 2011).

No caso do Brasil, esse interesse vem se ampliando mais visivelmente a partir desta década. Thyago Nogueira, editor da revista Zum e curador de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Sales (IMS), dá seu testemunho disso: “Nos últimos anos e, no caso do Brasil, nos últimos 10 anos, mais ou menos, tem havido uma redescoberta do fotolivro. Fora do país, por volta de 2000, começaram a surgir as primeiras antologias que buscaram reescrever a história da fotografia através dos (foto)livros. Um reconhecimento, um entendimento dessa produção fotográfica. Esses levantamentos históricos nos fizeram perceber que esses livros eram mais importantes do que pareciam; livros que viajaram e formaram gerações de fotógrafos, principalmente em uma época em que não havia internet. Isso impulsionou uma geração nova a produzir intensamente, uma geração mais interessada em publicar livros do que em expor em galerias e museus. Isso é um entendimento novo”.

LIVROS VIAJANTES
Uma dessas antologias a que se refere Thyago Nogueira é justamente Fotolivros latino-americanos, que, não por acaso, se desdobrou em uma exposição no próprio IMS (RJ), em 2013, com curadoria do autor e organizador da pesquisa. Horacio Fernández é um verdadeiro entusiasta da causa. Em seu livro, apresenta 150 obras datadas desde os anos 1920 e garimpadas a partir de um exaustivo trabalho investigativo pela América Latina. São obras de referência artística, cultural e histórica para o continente, incluindo o Brasil, tendo sido uma parte pincelada para a mostra. Seu documento atesta nossa vocação para o fotolivro – independente da produção europeia – com uma riqueza de informações que sustentam a importância do assunto. Ele reforça sua defesa ao gênero utilizando argumentos como: “os fotolivros permitem explicar as semelhanças, as influências, os estilos, tudo o que une os fotógrafos. E também tudo o que os separa”; “os fotolivros movem-se ainda mais que os fotógrafos. Às vezes viajam vagarosamente, mas sempre chegam a todos os lugares”; “os fotolivros também podem alterar o cânone da história da fotografia, incluindo a latino-americana”. Argumenta ainda que o gênero é um “eficaz meio de apresentação, comunicação e leitura de conjuntos fotográficos”, pois “as exposições são bem menos maleáveis: viajam mal, duram pouco tempo, chegam a menos pessoas. Já nos livros, as ideias e a informação circulam melhor”.

O cenário se mostra tão vasto quanto passível de relativizações. O alcance dos fotolivros pode ser, inclusive, um ponto bem relativo. Na visão de Alexandre Belém, por exemplo, esse interesse mostra-se ainda restrito, no Brasil, a uma “bolha” e “o mercado se restringe a um consumo interno” (geralmente via internet). “Onde a gente pode dizer que o fotolivro borbulha é na Espanha. E lá a pergunta que norteia esse campo é: ‘como vender fotolivro para não fotógrafos?’”. Daí também o entusiasmo do espanhol Horacio Fernández. A coordenadora do Fotolab do curso de Design da UFPE em Caruaru, Daniela Bracchi, concorda com Belém: a produção e circulação de fotolivros no país ainda é bem pequena, se comparada à produção fotográfica, o que torna esse um universo limitado, apesar de crescente.

Mesmo assim, o entusiasmo pelo gênero não se arrefece; ao contrário, está a plenos pulmões em seu espectro de alcance. A fotógrafa e artista Ana Lira tem uma perspectiva otimista: acredita que o público de fotolivros é amplo no Brasil e existe uma demanda reprimida para esse tipo de publicação, cujo potencial, segundo ela, é alcançar pessoas de outras áreas além da própria fotografia. Colecionadora de fotolivros, Ana ficou impressionada com a repercussão de seu projeto Voto, publicado em 2014, pela Pingado-Prés. O conjunto de imagens, feito a partir da observação da ação do tempo sobre cartazes de propaganda política na cidade, esgotou rapidamente a primeira tiragem de 100 exemplares, gerando logo uma segunda, já esgotada na editora.

Parece inegável que os fotolivros têm seu apelo, não apenas por reunir imagens em impressões com texturas, gramaturas, visualidades e cheiros, mas por dar a essas imagens outros sentidos através da linguagem do ensaio sob o verniz da edição – este exercício de escolhas, escolhas e escolhas. Se ver uma foto numa exposição tem um sentido único, em um livro nos leva a outro tipo de experiência, diferente, talvez mais duradoura, e não menos proveitosa – a depender da proposta, questão também inerente a uma mostra.

NARRATIVAS
Já é de senso comum, no campo artístico, que o advento da fotografia libertou a pintura. Mais de um século depois, podemos dizer que a libertação da linguagem pictórica, em seu rompimento com a “realidade”, também ajudou a libertar a fotografia de seus referentes tradicionais. Isso deu vazão para os fotolivros se colocarem como um vasto campo de experimentações, favorecido não apenas pelas viradas estéticas da história, mas ainda pelas transformações (e facilidades) tecnológicas. Nesse território de disputas simbólicas, editoras e “autopublicadores” procuram, cada um à sua maneira, imprimir uma marca.

Com 13 livros publicados e dois no prelo, entre fotolivros e edições teóricas, a Olhavê tem como “lema” o seguinte: “Porque a fotografia pode ser independente do estabelecido”. Sediada em São Paulo, sua linha editorial está, no caso dos fotolivros, bem próxima da fotografia conceitual, com processos de edição que flertam com os da criação. Desde a escolha do material bruto do autor até o design, tudo é pensado, de forma independente, pelos editores Alexandre Belém e Geórgia Quintas, ambos pernambucanos. Para tanto, possuem uma metodologia própria, como a utilização de mapas conceituais e outras técnicas de edição junto aos fotógrafos que chamam de “refotografar”. 

“Entendemos o que queremos, o livro tem que ter uma proposta”, explica Belém, que atuou como fotojornalista por mais de 20 anos. Essa proposta não possui uma fórmula, mas deixa à mostra um caminho estético-editorial. Por exemplo, nas mãos da editora, um ensaio na Ilha do Marajó (PA) ou no Rio de Janeiro deve percorrer trajetos improváveis aos registros das lentes costumeiras, sustentando-se, antes, em uma ideia, pois um “ensaio é para ser lido, não visto”, como Belém costuma dizer.

Um caso interessante da Olhavê é o fotolivro Vertentes (2016), de André Conti. O fotógrafo havia clicado o condomínio onde passou a infância nas proximidades de São Paulo capital, mas o seu ensaio impresso vai por “outros” caminhos: atrela-se mais à experiência subjetiva do autor naquele espaço do que ao seu referente “real” (o condomínio chamado Vertentes). Um certo ar de abandono e estranheza perpassa suas imagens-pinturas, carregadas de simbologias e uma atmosfera de névoa, sombra e escuridão, afinal uma tradução bonita, onírica de suas memórias. 

De memórias pessoais também é feito o fotolivro 1978 (2016), com imagens em preto e branco de Gabriela Oliveira, uma moça que viveu, na década de 1970, em um pensionato religioso no centro de São Paulo. A publicação foi inserida na lista da revista Zum dos melhores livros de fotografia de 2016 e rendeu uma crítica nos Estados Unidos, levando um colecionador de Tóquio a comprar o trabalho.

Também esteve nesse hall de eleitos da Zum em 2016 o fotolivro Ressaca, do artista Jonathas de Andrade. Derivado de um projeto expositivo de 2009, o trabalho foi editado pela Ubu, cujas integrantes vieram da Cosac Naify. A Ubu é outra editora brasileira que tem investido em livros de fotografia, incluindo nomes como Claudia Andujar e Marc Ferrez. As edições da Ubu e da Olhavê são muito elegantes e bem-acabadas, mas, no geral, mais simples do que costumam ser as experimentações nesse campo. A abertura de possibilidades gráficas se tornou uma das marcas das publicações independentes que têm apostado nesse filão. A diversidade editorial pode ser atestada em uma breve pesquisa no assunto, em uma volta rápida pelas feiras Plana e Tijuana, hoje referências no país, ou em um olhar cuidadoso pela fotografia que abre esta matéria, clicada por Ana Lira para a Continente, a partir de sua coleção.

A fotógrafa tem verdadeira paixão por essa inventividade editorial, pois quebra um formato padrão que fizeram os livros de Sebastião Salgado serem uma verdade a ser seguida. Algumas das publicações recentes mudaram o entendimento da artista de fotolivro, como é o caso de Tcharafna, de Gui Mohallem (Pingado-Prés, 2014), justamente pelo formato móvel das páginas do livro. Mesmo assim, a artista, que hoje se autopublica, diz começar a sentir falta de bons ensaios fotográficos; ensaios que possam sair de uma tendência recorrente, hoje, voltada a fotografar elementos do espaço urbano, por exemplo, ou mesmo objetos pessoais. Na perspectiva de Ana Lira, a resposta está na formação, ainda uma lacuna, para que as pessoas aprofundem o conhecimento nesse campo. Por isso, ela mesma tem buscado desenvolver projetos nesse sentido, como a oficina Papel de Foto, que realiza este mês em Caruaru e São José do Egito, com o propósito de ensinar as pessoas a serem autônomas na produção de fotolivros. Com apoio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), a oficina é realizada em parceria com Daniela Bracchi, do Fotolab, e Sabrina Carvalho, da Livrinho de Papel Finíssimo, editora pernambucana que publica edições de baixo custo com criatividade e espírito de guerrilha, incluindo fotolivros. As parceiras de Ana Lira, aliás, acreditam ser a qualidade da edição uma problematização, um “nó cego” a ser trabalhado nas publicações de foto.

A libertação das formas gráficas, como se vê, nem sempre é garantia de qualidade, principalmente se olharmos os ensaios fotográficos e suas propostas em formato de livro. A questão parece ser consenso entre os que atuam nesse campo. O curador Thyago Nogueira, do Instituto Moreira Sales, acredita ser mais fácil hoje, diante dessa profusão, encontrar livros mais desinteressantes do que interessantes. Ele vê isso como parte “natural” de uma produção aquecida, como é o caso dos livros de fotografia. Por isso, acredita que, após esse momento de frisson, a hora agora é de investir na crítica. A inauguração, em agosto, da biblioteca de fotografia do novo IMS, em São Paulo, com 7 mil publicações do nicho disponíveis ao público (inicialmente), deverá atender tanto à formação quanto ao exercício crítico, tão necessários ao país. O Nordeste seguirá, talvez, se virando… Seja como e onde for, os fotolivros abrem as janelas dos que lidam com a fotografia, mudam nossa maneira de ver imagem, mais ainda de concebê-la. 

 

 

 

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