“Potência política” é um argumento que fortalece um aspecto essencial em qualquer museu – a possibilidade de formar cidadãos através do resgate de uma memória que transcende os objetos compilados naquele determinado acervo. Uma memória simbólica, social, afetiva como em Ferrowhite e, portanto, política. Em Memory, history, oblivion (Memória, história, esquecimento), palestra apresentada em Budapeste, em 2003, dentro da conferência Memórias aterrorizantes? História na Europa depois do autoritarismo, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913–2005) reforçava a importância de lembrar: “Em relação ao difícil conceito da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado fenomenológico, permanece uma espécie de ‘pequeno milagre’. Nenhuma outra experiência dá a certeza da presença real da ausência do passado. Ainda que não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado. É claro que podemos colocar em dúvida uma tal pretensão de verdade, mas não temos nada melhor do que a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que declarássemos lembrar-nos dela”.
Isso se dá no Museu da Inocência, aberto em abril de 2012, em Istambul, com objetos que o escritor Orhan Pamuk começara a recolher duas décadas antes. No romance homônimo, lançado em 2008, ele narra a gênese, o ápice, o ocaso e a subsequente perpetuação do caso de amor entre Kemal, o herdeiro de uma abastada família de Istambul, e sua prima distante Füsun.
Impossibilitado de desposar a amada por convenções sociais, o narrador começa a recolher qualquer objeto relacionado a ela e à paixão que o consome – bitucas de cigarro, batons, lençóis e talheres usados, bibelôs, pentes, escovas de dente… Na ficção, ao longo de 83 capítulos, Pamuk esculpe a obstinação do protagonista em criar um museu para abrigar o acervo afetivo. “O que pode ser mais lindo que passar as noites cercado pelos objetos que nos ligam às nossas memórias e conexões sentimentais mais profundas?”, devaneia Kemal, na página 539 de O museu da inocência. Na realidade, porém, tanto livro como casa expositiva são um resgate das transformações sociais da Turquia, de uma sociedade patriarcal e machista e de um mundo em irreversível marcha.
Entre janeiro e abril deste ano, o Museu da Inocência aportou na Somerset House, em Londres. Em conversa por e-mail com a Continente, a curadora da exposição, a britânica Shonagh Marshall, comenta a experiência idealizada pelo escritor turco: requisitar ao visitante que atente para o modo como os objetos podem contar histórias. “A criação de Orhan Pamuk consiste em múltiplas camadas de imaginação; concebidos conjuntamente, o livro narra a saga dos personagens centrais e o museu mostra as coisas que guardam suas memórias. Acredito que essa é uma exploração bastante interessante da maneira pela qual os museus exibem objetos para alinhavar narrativas. E, propondo perguntas sobre verdades e inverdades, quando uma história é acoplada a um objeto, pode ela ganhar um significado e uma interpretação completamente diferentes”, observa.
Em 2014, o Museu da Inocência foi agraciado com o European Museum of the Year Award/EMYA, prêmio concedido pelo Fórum dos Museus Europeus.
Segundo Shonagh Marshall, o grande desafio, ao transportar uma parte dele para a Inglaterra, era recriar a magia que qualquer um sente ao entrar na sede na Turquia. “Queríamos trazer uma ideia dessa narrativa fantástica através dos objetos. Ao trazer para a Somerset House 13 vitrines, das 83 que compõem o museu em Istambul, pedimos aos visitantes que considerassem as memórias imbricadas naqueles itens à mostra. Porque, antes de alcançar o mundo fictício de Orhan Pamuk, você desvia para cima e para baixo nas sinuosas ruas de Istambul, as mesmas ruas por onde Kemal e Füsun andaram no romance. Ao cruzar aquele limiar, você já os considera pessoas de verdade, o que significa que aqueles objetos expostos parecem mais alojados nas memórias. Quando estávamos aprontando a exposição em Londres, estávamos cientes disso, então passamos muito tempo trabalhando com a cenografia para criar essa sensação de uma cidade que atua como pano de fundo para a narrativa”, destaca a curadora.
A primeira itinerância do Museu da Inocência “foi extremamente bem- recebida em Londres”, diz Shonagh Marshall. “A maneira como esses contos humanos vão sendo narrados dentro da exposição é um caminho para compreender e explorar a história daqueles objetos no nível pessoal. Histórias sociais são instigantes para o visitante contemporâneo”, acrescenta a curadora da Somerset House. Os museus, pois, assumem um papel nada estanque; são menos um relicário e mais um mecanismo vivo, acutilante até, que convida, provoca, comunica e semeia. Como pontua o historiador pela UFPE Sérgio Salles, “sem eles, não se constrói a memória de um povo, muito menos uma sociedade”. “Museus são ferramentais fundamentais para nos levar a refletir sobre nossa história. Um museu auxilia a construir uma visão mais crítica do mundo em que vivemos e a compreender o atual processo histórico”, complementa o professor recifense.
ARQUIVOS ABERTOS
No caso do Brasil, por exemplo, como entender o processo histórico contemporâneo sem descer aos porões da ditadura? Como decantar as mudanças sociais e políticas no país sem analisar o que aconteceu de 1964 para cá? “Os primeiros arquivos dos tempos do regime militar estão começando a ser abertos. Os estudos desse período, de uma maneira mais séria e aprofundada por parte dos historiadores, estão sendo realizados agora. Gerar reflexão sobre tudo isso é indispensável, inclusive para a produção de obras mais esclarecedoras. E o papel de gerar reflexão de um museu, por exemplo, pode ser a partir de uma memória positiva, como é o caso do Cais do Sertão, em Pernambuco, ou também a partir de tempos sombrios e nebulosos, como o Memorial da Resistência de São Paulo. É imperativo refletir sobre os momentos difíceis da nossa história para compreender o que vivemos hoje”, ratifica Sérgio Salles.
O Memorial da Resistência de São Paulo funciona desde 2009 no térreo da Estação Pinacoteca, no Largo General Osório, região central da capital paulista. Fica no espaço onde operava, entre 1940 e 1983, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP. Sua existência é símbolo, espelho e tradução da resistência, como descreve sua coordenadora, a museóloga Kátia Felipini Neves.
“O arquivo do Deops foi um dos primeiros liberados para consulta, pois fazia parte do Arquivo Público do Estado. No âmbito do processo de revitalização do centro da cidade, começaram a trabalhar no edifício em 1999 e, em 2002, foi inaugurado o Memorial da Liberdade, no espaço pequeno das celas. Em 2004, a Secretaria de Cultura cedeu o espaço para ser o anexo da Pinacoteca do Estado. Então, de um lado, a Pinacoteca gerenciava a estação, do outro, o Arquivo Público, cuidando do espaço das celas. Acontece que o projeto do Memorial da Liberdade era muito criticado pelos ex-presos políticos. As paredes tinham sido pintadas, por exemplo. As pessoas que haviam sido prisioneiras ali reivindicavam que o lugar fosse melhor aproveitado em termos educativos e culturais”, relembra a coordenadora.
Quando o lugar foi rebatizado como Memorial da Resistência, ela integrou uma equipe que imergiu na história para preparar uma proposta de ocupação. “A primeira coisa que fiz foi chamar os presos para fazer a coleta de testemunhos. Quem sabe da memória de um local é quem esteve lá. Além do apoio de outras organizações, foi fundamental trabalhar com os protagonistas. O Memorial é uma experiência particular no Brasil contemporâneo. Seu projeto museológico traz uma exposição de longa duração organizada, justamente, com o auxílio dos protagonistas, dos atores principais que viveram tudo. Desde a década de 1960, na visão da sociomuseologia, são eles que devem estar inseridos em todos os processos”, conta Kátia Felipini Neves.
São as vozes de quem padeceu sob tortura naqueles quartos, nas engrenagens do sistema repressivo arquitetado pela ditadura militar, que são ouvidas quando o visitante caminha pelos cômodos que antes eram celas. “Uma parte muito viva do memorial é justamente a emoção. Embora na sala inicial usemos outros suportes infográficos para montar uma linha do tempo, costurando fatos relevantes da história do Brasil e do mundo desde a Proclamação da República, em 1889, nesses espaços onde viviam os presos não somos nós que estamos falando, e, sim, eles mesmos. É o lugar da testemunha que dá uma carga de informação e emoção. Nem os jovens, nem os mais velhos, nem todas as pessoas que viveram esse passado conhecem a nossa história recente. Essas informações do Memorial da Resistência não existem nos livros escolares. Queríamos, com elas, mostrar a fragilidade da democracia. A nossa democracia tem que ser valorizada e aprimorada constantemente”, sustenta a coordenadora.
Com 270 metros quadrados, o Memorial da Resistência é bem menor do que a Pinacoteca ou outros museus mais conhecidos de São Paulo, como o Museu do Futebol. Recebe, no entanto, cerca de 72 mil a 80 mil pessoas por ano, numa recompensa para o investimento em uma programação com rodas de conversas com ex-presos políticos, com visitas educativas com crianças entre cinco e 11 anos e com um olhar aprofundado para o passado a fim de apreender o contemporâneo. “Seja um museu de ciência, de arte, comunitário ou de tecnologia, é preciso tratar a questão de direitos humanos. O desafio dos museus contemporâneos é falar desses temas e vincular seu acervo a questões atuais. Não se pode fechar os olhos para a pobreza generalizada ou para os imigrantes”, vaticina Kátia Felipini Neves.
IMIGRANTES
Nos Estados Unidos, Donald Trump, candidato republicado à presidência, tem propagado a xenofobia e defendido medidas agressivas contra os imigrantes. Decerto, ele está alheio à constatação de que aquela nação não se fundaria sem os que lá aportaram da Inglaterra ou, ainda, sem os judeus, russos, romenos, japoneses, africanos e europeus que da pátria americana fizeram o seu lar. Talvez faça mais sentido para a sociedade americana o que o filósofo francês Paul Ricoeur apregoava em 2003: “O lugar do esquecimento no campo que é comum à memória e à história deriva da evocação que é feita do dever de memória: este pode ser igualmente expresso como um dever de não esquecer”. Ganha força, nesse sentido e ante a atual propagação de discursos de ódio e intolerância, a existência do The Lower East Side Tenement Musem, em Nova York.
Um tenement é um edifício que poderia ser descrito como um conjunto habitacional; uma coleção de apartamentos que eram alugados e, muitas vezes, compartilhados por famílias inteiras. No final do século XIX, o Lower East Side era um dos bairros de Manhattan mais povoados por estrangeiros. O número 97 da Orchard Street era um prédio em que os cômodos conjugados abrigavam os judeus alemães Gumpertz, os católicos italianos Baldizzi e os irlandeses Moore; as lojas do térreo eram de propriedade de pessoas como os alemães Caroline e John Schneider. Hoje, o visitante tem a chance de conhecer os aposentos tal qual eram ocupados mais de um século atrás – graças aos esforços de Ruth Abram e Anita Jacobson, que fundaram o museu em 1988.
“Elas queriam construir um museu que honrasse os imigrantes. Para Ruth, esses edifícios nova-iorquinos eram o lugar perfeito: essas humildes construções para múltiplas famílias foram as primeiras moradias americanas de milhares de estrangeiros”, recorda o diretor de comunicações do The Lower East Side Tenement Musem, Jon Pace. Quando a dupla visitou a Orchard Street, encontrou um ambiente que parecia congelado no tempo, “como se as pessoas que ali habitavam tivessem partido sem nada levar”. Foram anos de restauro para que os primeiros apartamentos pudessem ser abertos. Hoje, o museu emprega 100 funcionários e acolhe 220 mil pessoas anualmente. Os passeios, ao custo médio de US$ 25, são feitos tanto para os apartamentos como para a vizinhança, que mantém a atmosfera miscigenada de que é feita Nova York.
E assim como Nova York segue a receber imigrantes, o museu se expande para continuar radiografando tal fluxo. O número 103 da Orchard Street foi adquirido e está sob reforma para abrigar “as histórias dos imigrantes pós-Segunda Guerra Mundial, os sobreviventes do Holocausto, os migrantes de Porto Rico e os chineses que se mudaram para o Lower East Side”, como o diretor de comunicações antecipa à Continente.
Turistas e curiosos só poderão conhecê-lo em julho de 2017. Até lá, o The Tenement Museum continuará proporcionando uma experiência distinta das ofertadas pelo Museum of Modern Art/MoMA ou pelo Whitney Museum. “Somos um museu histórico que narra a história de como nos tornamos americanos e do papel profundo que a imigração desempenhou e segue desempenhando na formação de uma identidade nacional em evolução. E, embora não nos posicionemos politicamente sobre a crise da imigração atual, o argumento que fundou o museu segue atual: a diversidade que os imigrantes trouxeram para esse país é uma das pedras fundamentais da democracia americana”, afirma Jon Pace.
Imigração, repressão, histórias de amor e objetos surrupiados para recontar metamorfoses políticas, sociais e culturais de uma cidade, uma sociedade ou um país sinalizam a dificuldade da enquadrar ou restringir um museu contemporâneo. Ao discorrer sobre Ferrowhite, que dirige na Argentina, Nicolás Testoni parece falar de todas as instituições ouvidas para esta reportagem: “O principal patrimônio deste museu não são os objetos, nem sua arquitetura, nem sua suposta curadoria engenhosa, e, sim, as pessoas que o fazem. Ou, explicando melhor, o que todas as pessoas são capazes de fazer quando se juntam. O que é, afinal, que se preserva?”. Lembrar é resistir.
* Colaborou Hallina Beltrão