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Produção: O desafio é a continuidade

Artesãs e associações buscam formas de sobreviver a adversidades, como a falta de recursos e a ausência de projetos duradouros de capacitação profissional

TEXTO CAROL BOTELHO
FOTO DANIELA NADER

01 de Março de 2016

Na sua marca, Magda Coeli usa elementos que adquire com profissionais de diferentes regiões

Na sua marca, Magda Coeli usa elementos que adquire com profissionais de diferentes regiões

Foto Daniela Nader

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 183 | março 2016]

Além das artesãs que produzem de modo autônomo, há grupos que prestam serviços periódicos a grifes como a Refazenda, de Magna Coeli. A marca pernambucana, há 25 anos no mercado, tem como princípio a parceria entre moda e artesanato. A estilista trabalha com associações em cidades como Orobó, Pesqueira e Poção, em Pernambuco, afora outros estados, como Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe. Também mantém parceria com a Associação do Artesanato Pernambucano (Associape), com sede no Bairro do Cordeiro, no Recife.

Magna traz as rendas irlandesas, renascença, frivolité, de bilro, além do filé, do labirinto e do crochê, e insere as técnicas tradicionais em modelagem e cartela de cores contemporâneas, atualizando o regionalismo e agregando valor à peça. “A proposta da marca é fazer um trabalho de rejuvenescimento da renda, aplicada em t-shirts e peças com modelagens atuais. Quando falamos em crochê, muita gente pensa em porta-papel higiênico, paninho de bujão de água. É justamente a desconstrução dessa ideia o que eu faço, quando acrescento o artesanato à roupa”, diz Magna, assistente social de formação.

Se, de um lado, existe a dificuldade da associação em sobreviver depois que o apoio vai embora, e é preciso caminhar com as próprias pernas, do outro, há a preocupação do lojista em encontrar um fornecedor artesão que tenha compromisso com a qualidade e a pontualidade. “A renda renascença de Poção e Pesqueira oscila muito. Vai do sofrível até o nível da alta-costura. Existe um desrespeito entre as próprias rendeiras, que ficam sabotando umas às outras, o que acaba por fazer com que o valor de mercado caia”, explica Magna.

No seu acervo, ela guarda uma preciosidade: a renda irlandesa, que nunca mais utilizou em coleções, por conta da logística. Ela vem lá do município de Divina Pastora, em Sergipe, a 479 km da capital pernambucana. Trata-se de uma renda de agulha que tem como destaque o lacê, um cordão brilhoso que forma desenhos sinuosos, deixando espaços vazios que podem ser bordados. “É muito cara e demora muito para ficar pronta”, lamenta Magna, que, por enquanto, não pretende reeditar coleções com a renda.

Em busca de constante renovação, a estilista prefere afastar-se temporariamente de uma associação ou de uma matéria-prima, quando percebe que a técnica não está se renovando. Foi o caso do filé de Alagoas. “O frivolité também não conseguiu sair de suas limitações, ainda assim continuo utilizando, embora seja frágil e difícil de trabalhar. O manuseio e o uso desses materiais depende também da informação do consumidor. Colocar um detalhe em frivolité em um vestido de casamento não tem problema, porque as pessoas vão ter cuidado. O mesmo, no entanto, não acontece com uma roupa do dia a dia”, compara Magna, que prefere usar os detalhes em echarpes, colares e tiaras.

Já o crochê, quem lhe fornece é Graça Albuquerque, presidente da Associape, cuja sede funciona em sua casa, no Cordeiro. Formada em Ciências Econômicas, Graça ficou desempregada em 2000 e começou a criar, por conta própria, peças em crochê, atividade manual que aprendeu na infância, nos tempos em que estudou em colégio de freira. “Costumo dizer que me tornei artesã por um acidente de percurso”, brinca. Naquela época, viu com vantagens o trabalho informal, que lhe deu flexibilidade de horário para cuidar do filho pequeno. Mas viver na informalidade tem suas dificuldades. Ainda mais para quem é artesão. “O público não valoriza, acha caro. Em feirinhas de rua, não consigo alcançar a mesma clientela de Magna. Para mim, esse contato com o lojista é o ideal”, comenta Graça.

São raras as feiras de design que exibem de maneira correta o trabalho artesanal, que não seja em um estande acanhado, filantrópico. É preciso que haja a decodificação e a contextualização para o mercado atual e o público-alvo. É aí que entram as capacitações, de grande importância, apesar do curto período de que costumam dispor.

Para Melk Z-Da, que já ministrou capacitações em Rio Formoso, Porto de Galinhas, Morro da Conceição e Fernando de Noronha, o maior problema é a continuidade dos projetos. Geralmente, esses trabalhos são oferecidos por entidades governamentais e costumam durar cerca de seis meses, o que é pouco tempo para ensinar uma técnica, criar um produto, pensar no design, na forma de comercialização, estudar o mercado, o público-alvo e tornar o negócio autossustentável. “Também depende muito da força de vontade dos artesãos envolvidos, de correr atrás das oportunidades e não deixar tudo a cargo da iniciativa das instituições de apoio”, recomenda o estilista.

Magna acredita que todos os programas de capacitação ligados ao artesanato deveriam ser permanentes, e não sazonais. “O ideal seria um programa sequenciado para o artesão perceber se ele se encaixaria como um colaborador ou um protagonista. É possível ver claramente que existem esses dois perfis”, avalia a empresária, que já ministrou diversas oficinas.

Nenhuma das integrantes das associações que visitamos vive somente da remuneração daquilo que é produzido. Muitas ainda não conseguem caminhar sozinhas, inovar por conta própria, fazer pesquisas. “O processo é lento, até que se consiga dar solidez ao desenvolvimento do produto. É lamentável que não consigamos criar uma condição de continuidade. Um grupo de artesanato precisa de um suporte de designer, assim como uma grande empresa conta permanentemente com um departamento de design”, compara Ticiano Arraes. Para ele, um programa deveria durar dois anos, para que houvesse tempo hábil de vivenciar o processo de produção, criação, comercialização, comunicação de mercado e formação de preço.

A superintendente do Centro Pernambucano de Design (CPD), Luciene Torres, avalia que falta instrução: “A maioria não sabe sequer escrever, falar. Não é questão de educação, mas de filtrar certas informações. Portanto, seria preciso ir além do design. Há comunidades, por exemplo, com dificuldade de acesso à água. Há homens que não gostam do sucesso da mulher no trabalho. É preciso trabalhar a autoestima, a inovação, acreditar que é possível fazer algo novo”. 

CAROL BOTELHO, jornalista, repórter da editoria de cultura do jornal Folha de Pernambuco.
DANIELA NADER, fotógrafa.

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