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Linhas de força

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Março de 2016

Caboclos de lança

Caboclos de lança

Ilustração Hallina Beltrão

O rapaz amarra o lenço colorido na cabeça, aperta os nós sob o queixo, e involuntariamente olha para frente como se procurasse a ajuda de um espelho. Ficou bem, digo para mim mesmo, firme na posição de observador sem câmera fotográfica, um voyeur carnavalesco, que não brinca, só contempla. Está bonito, apesar dos olhos congestos pela cachaça, e dos dentes estragados, alguns faltando. A camisa aberta revela que ele não aderiu ao gosto dos mais jovens, depilar o peito e o abdome. Também não aparou as sobrancelhas e o corte do cabelo pintado de louro é tradicional. A caboclada se veste no meio da rua, os passantes reparando curiosos. Brincam entre eles, soltam pilhérias, tentam descontrair-se. Chegaram em ônibus velhos e desconfortáveis, sem refrigeração, comprimidos em meio aos adereços pesados. A maioria saiu de casa envergando a indumentária de baixo: o ceroulão, a calça de franjas presa aos joelhos por elásticos, a blusa estampada de mangas longas. No passado, segundo a lenda, teriam bebido algumas talagadas de aguardente com pólvora ou a jurema. Um pequeno espelho corre entre as mãos calosas pelo manuseio da foice, no corte de cana. Retocam a pintura vermelha do rosto com batom, pois já não se usa o preparo de urucum.

Ajudam-se na hora de colocar o surrão, forrado com pelo sintético no lugar da lã de carneiro, e com um número ímpar de chocalhos, para não atrair azar. Depois vestem a gola, bordada de lantejoulas, miçangas e vidrilhos, um fetiche que se reborda todos os anos e se oculta como segredo de caboclo. Por fim o chapéu confeccionado com milhares de fitinhas de celofane, os óculos escuros e o cravo branco mastigado entre os dentes. Antes que o rapaz apanhe a lança e saia para o desfile, eu me aproximo dele. O cortador de cana da Zona da Mata de Pernambuco, indivíduo comum, anônimo, calejado no convívio com a pobreza e a violência, se transformara diante dos meus olhos numa entidade. Quem é esse? Chego perto, ousadamente afasto a cortina de celofane que recobre seu rosto e falo algumas tolices sobre a minha surpresa e deslumbramento com o que acabara de testemunhar. Ele não compreende o que eu digo, me encara com surpresa e desdém e se afasta agitando os chocalhos do surrão.

São numerosos os maracatus, com brincantes de todas as idades. Renovam-se através dos jovens e das crianças que incorporam ao brinquedo seus cabelos de cortes extravagantes, pintados de rosa, azul, verde, amarelo, dourado, o jeito diferente de falar, as novas jingas do corpo.

Em 1938, Mário de Andrade enviou uma equipe a Pernambuco e à Paraíba para registrar cantos, danças e rituais que ele considerava em extinção. Quase 80 anos depois percebemos o quanto caboclinhos e maracatus se multiplicaram, provando uma capacidade de resistência e transformação das culturas populares, embora elas continuem convivendo com as mesmas ameaças identificadas pelo escritor: o preconceito, as intervenções do poder público e a perseguição contra religiões de origem indígena e africana. Entre os pernambucanos, observou-se que o vínculo dos maracatus e caboclinhos com o culto aos orixás e à jurema, serviu para fortalecer essas culturas, pois lhe conferem um caráter não apenas de brincadeira, mas também de sagrado. É comum que os maracatus nação tenham como sede as casas de santo, e seus reis e rainhas sejam babalorixás e ialorixás.

Nesse ano de 2016, sentimos a ausência das tradicionais nações Leão Coroado, Indiano e Elefante. Mas, percebemos crescer a força feminina nos batuques, a consciência e o orgulho de ser negro, a afirmação da língua africana, antes camuflada na língua dos brancos. Antigamente, a Religião Católica e o Estado demonizavam os rituais afros. Hoje, as seitas evangélicas e pentecostais assumem o lugar de perseguidores, doutrinadores e aliciadores, o que representa ameaça mais preocupante do que foi percebida por Mário de Andrade em 1938. A guerra é declarada, os pregadores da “Palavra” não toleram camuflagens nem sincretismos. Monoteístas radicais, sem cultos à divindade feminina, a Universal do Reino de Deus, Assembléia de Deus, Testemunhas de Jeová, Quadrangular, Deus é Amor, Nova Vida, e mais uma centena de outras, empunham a Bíblia, vociferam e agridem os praticantes de outras religiões, incendeiam casas de santo.

A prefeitura do Recife homenageou maracatus e caboclinhos, o batuque negro, o toque perré dos índios, e um clube tradicional, o Pão Duro. As agremiações carnavalescas formadas por trabalhadores urbanos, carvoeiros, varredores, lavadeiras, feirantes, caixeiros, lenhadores, espanadores, ferreiros, engomadeiras e até parteiras, as chamadas corporações de ofício, entraram em decadência. No vaivém desses clubes e troças, seguidos por vadios, moleques de rua e capoeiras, acompanhando bandas de música ou orquestras de metais, nasceram o frevo e o passo pernambucano. Essas corporações enfraqueceram ou deixaram de existir, minguaram suas orquestras. Surgiram outros cortejos no seu lugar, talvez menos populares, sem afinidades corporativas. Alguns são criações de produtores, com o olho no mercado e no lucro. Muda a feição do carnaval. Vínculos se desfazem, como os dos clubes com as corporações, outros se fortalecem, como os dos maracatus e caboclinhos com os cultos afro-ameríndios. É a dinâmica da cultura. Nem vale a pena perguntar quem ganha ou quem perde.

A classe média e os ricos continuarão brincando o seu carnaval de apartheid, em camarotes climatizados, onde se bebe uísque oito anos e olham-se os populares de cima. Era assim nas igrejas católicas, os negros assistiam à missa do lado de fora. A mestiçagem de que falava Gilberto Freyre é real, basta conferir nas ruas de Recife e Olinda. Os brancos privilegiados e apartados também são reais e prosaicos. Mas, não se vestem com o aparato divino de um caboclo de lança. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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