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"Teatro é a crônica e a crítica do dia"

Diretora que se formou com Zé Celso Martinez e tornou-se um dos maiores nomes do setor no país, discute o teatro de grupo e fala sobre seu interesse pelo diálogo aberto entre cena e plateia

TEXTO Mateus Araújo

01 de Março de 2016

Cibele Forjaz

Cibele Forjaz

Foto Bob Sousa

Numa padaria antiga do Bairro da Boa Vista, centro do Recife, a diretora de teatro Cibele Forjaz conversa. Dá uma pausa na sua vida corrida de criações inúmeras. Enquanto participa da 22ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, ela pensa na estreia do seu novo trabalho, Na selva das cidades, cuja missão é ocupar diversos pontos urbanos. O processo seria apresentado neste mês de março em São Paulo, dentro da Mostra Internacional de Teatro (MIT), mas ficou para depois (o Sesc Pompeia receberá o trabalho, ainda sem data). Em janeiro, no Recife, Cibele dirigiu a leitura da peça espanhola Os corpos perdidos, executada pelo Coletivo Angu de Teatro, e apresentou o espetáculo Maria que virou JonasOu a força da imaginação, sobre transexualidade.

“Minha meta é pensar num épico brasileiro”, diz Cibele Forjaz, nascida e criada em São Paulo. Também iluminadora e uma das fundadoras da Cia. Livre, ela tem mergulhado na estética brechtiana para pensar e produzir um teatro cada vez mais engajado e influenciado pelo diálogo aberto entre a cena e a plateia. Sua experiência de mais de uma década no Teatro Oficina e a incursão em processos criativos de teatro de grupo – que valorizam uma pesquisa contínua e a troca de experiência com outras searas para além das artes cênicas – fazem de Cibele uma das mais completas e marcantes diretoras contemporâneas do país.

Nesta entrevista à Continente, Cibele fala da sua relação com o diretor José Celso Martinez, discute o teatro de grupo no Brasil e faz uma reflexão sobre sua carreira teatral.

CONTINENTE Seu trabalho está sempre associado à criação coletiva. Como você enxerga o teatro de grupo e sua importância para o teatro brasileiro?
CIBELE FORJAZ A minha ideia de pertencimento sempre foi a de estar num grupo de teatro e participar dele. Eu sempre pensei: “Quero fazer parte de um grupo de teatro”. E sempre fiz. Comecei no teatro amador com 16 anos e entrei na universidade com 18, praticamente formada como atriz. Entendo que todo tipo de teatro, até o comercial, se faz em grupo. No entanto, é no grupo que o teatro tem condições de se criar coletivamente. Já tenho mais de 30 anos de teatro profissional e mais cinco de teatro universitário e amador. Sempre trabalhei em grupo, participei de três diferentes. O primeiro foi A Barca de Dionísio, que a gente tinha na universidade e que deu origem ao meu jeito de trabalhar. Esse grupo tinha Tó (o diretor paulista Antônio Araújo, do Teatro da Vertigem), Lúcia Romano, Aury Porto, William Pereira, atores que hoje fazem parte da Vertigem, parte da Cia. Livre e da Companhia do Latão. Foi ali que a gente começou a fazer workshops. Passamos de 1985 a 1987 montando Leonce e Lena, dirigido por William. Toda a universidade foi para fazer essa peça. Ali, a gente já começou o que chamamos de processo colaborativo. Era um nome que não existia, foi dado no início dos anos 1980, por Tó e Abreu (Márcio Abreu, diretor), nas oficinas da Cia. Livre. Somos obrigados a tensionar e a enfrentar, nas criações, os pontos fundamentais, o que queremos dizer com esse texto e essa pesquisa, e tem todo o estudo de campo, trabalhos que terminam gerando outros trabalhos em outras searas. A gente busca cercar o tema e ver as profundidades, para daí isso virar um espetáculo. O espetáculo é uma parte do trabalho. Não é só o fim em si mesmo.

CONTINENTE No ano passado, um dos principais grupos de teatro do Recife, o Magiluth, passou por uma crise e reformulou a própria formação. Naquele momento, o coletivo se questionava sobre rumos, divisão de funções e criações. Essas crises, que são comuns nos grupos de teatro, também devem trazer novas perspectivas. Como lidar com isso?
CIBELE FORJAZ Todos os grupos passam por crises. Não há trabalho de artistas íntegro e verdadeiro sem crise. Ainda mais porque o trabalho de grupo precisa da continuidade do tempo e as pessoas mudam, as necessidades das pessoas com a idade também mudam, então você tem sempre que se rever. Eu acho que as crises, entradas e saídas de pessoas, fazem parte do teatro de grupo. É normal ter fluxos. Gente que vai, gente que vem, gente que vai e volta, trazendo outras influências.

CONTINENTE Você passou mais de 10 anos como iluminadora do Teatro Oficina, num processo de imersão, como é a filosofia de José Celso Martinez. De que maneira olha para essa experiência em comparação à Cia. Livre?
CIBELE FORJAZ O Teatro Oficina vive em torno da figura de Zé, mas ele é um artista extremamente catalisador das energias do coletivo, de um jeito bem diferente da nossa geração. Todo mundo dá o máximo de si junto com ele. Ele tem essa potência de trabalhar com 100 pessoas. Já na Cia. Livre, eu acho que é bem diferente do Oficina. A companhia nasce com a ideia de criações mais horizontais. Não era um grupo em torno de um diretor mais velho, mas um grupo em que a gente também variasse de funções: a direção rodar, a dramaturgia ser conjunta, ser um grupo aberto à relação com outros grupos. A gente tem as parcerias com a Mundana, com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e o Grupo São Jorge. Já é uma outra ideia de grupo, com continuidade, mas aberto à relação com outras áreas do conhecimento, pesquisas longas e grupos profissionais.


Peça Maria que virou Jonas - Ou a força da imaginação foi apresentado por Cibele, em janeiro último. Foto: Wellington Dantas/Divulgação

CONTINENTE Você começou a fazer teatro nos anos 1980. Como era o cenário artístico da época?
CIBELE FORJAZ Em 30 anos, aconteceu uma grande mudança na forma de produzir teatro. A gente tinha uma espécie de terra arrasada, resultado da ditadura. Esta foi muito dura com as artes, tanto pela censura direta, quanto pela maneira de desarticular as produções. E daí veio a censura econômica, que é um jeito de censura política. O fato de não existir uma política cultural não quer dizer que haja ineficiência no país para criar isso. Faz parte de uma estrutura na qual o país foi construído. Um povo, quanto mais miserável e sem cultura, mais fácil ser manipulado como ovelha. A cultura nos dá posse e força. Nos anos 1980, era clara a terra arrasada, não existia teatro de grupo. E outra coisa: passa-se o teatro para outra geração, quando você trabalha junto com seus pares mais velhos. Você aprende com os mais velhos, aprende na prática. E, na nossa geração, isso foi rompido.

CONTINENTE É a partir daí que a linguagem de encenação da Cia. Livre dá uma mudada?
CIBELE FORJAZ Sim. Passamos a ser cada vez mais brechtianos, épicos. Em Um bonde chamado desejo (2002, dirigida por Cibele), a gente fez um exercício de realismo. Naturalmente, um realismo revisitado. A minha formação é muito teatral, explicitação do jogo de encenação, na frente da plateia. Mas no Bonde tinha um “voltar-se”, e foi aí que o trabalho de análise de texto se intensificou na minha vida. Esse é um trabalho muito importante, que também fui encontrar no Oficina.

CONTINENTE Essa explicitação do jogo de cena tem influência direta de Zé Celso, não é?
CIBELE FORJAZ Quando vi Zé pela primeira vez em cena, caiu a ficha. Estava assistindo à peça As boas (de Jean Genet, montada em 1991, que marcava a volta de José Celso Martinez à cena). Ele falava direto com a plateia, numa sociedade dividida entre madames e empregadas, as madames e as “boas”. Eu vindo de um teatro formalista, aquilo para mim foi uma virada. Ali, eu levei um soco no estômago e entendi que o teatro tem que ser de relação direta com a plateia, de raiz e estrutural com a cidade onde você vive, dos problemas concretos da comunidade em que você vive. Teatro não é para o futuro. Teatro nasce e morre. O teatro é, como dizia Shakespeare, a crônica e a crítica do dia da sociedade contemporânea.

CONTINENTE Considera-se uma diretora brechtiana?
CIBELE FORJAZ Quando crescer, eu quero ser. Eu gostaria de ser. Eu quero ser. Tem uma tentativa também na Cia. Livre de construção de uma identidade que também é uma representação. Tenho como meta pensar num épico brasileiro. Poderia dizer que sou uma diretora que vem do Oficina, então a influência de Zé é muito grande, assim como as influências da minha geração. Minha pesquisa tem origem brechtiana, mas que precisa ser reinventada a cada momento, a cada pesquisa. É um processo de pesquisa de vida.

CONTINENTE No ano passado, você dirigiu Maria que virou Jonas, enveredando por discussões sobre identidade e gênero. De certo modo, uma criação que tem a ver com a pesquisa anterior da Cia. Livre sobre os povos e a representatividade. Como foi, então, olhar para a transexualidade por esse viés?
CIBELE FORJAZ Maria que virou Jonas vem a partir de um trabalho muito concreto da Cia. Livre com a antropologia: a questão da transição, do trânsito, que vem desde Orfeu ameríndio. Ali, a gente encontrou o desconhecido. Isso mudou não só meu teatro, mas a minha visão e a minha existência como pessoa. Percebi que estou num país com 180 línguas diferentes, 250 povos com culturas diferentes, mas a gente tem uma cultura totalmente colonizada, inclusive nas universidades. Desmontou para mim tudo que eu imaginava o que era o Brasil, principalmente com a perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro, que eu acho que é um outro jeito de olhar para a antropofagia. Me mostrou que as relações devem ser construídas em redes. Isso desmontou uma ideia de cultura que eu tinha. Mudou tudo. Então, a partir dessa relação, você lida com temas polêmicos, as diferenças entre um e outro, brancos e pretos. A ideia de Maria que virou Jonas foi fazer a transição da reflexão do mato para o asfalto, que tem a ver com as transformações dos corpos e a relação de uns com outros.

CONTINENTE Atualmente, você tem visitado o repertório de Brecht. Montou Galileu Galilei, no ano passado, e agora estreia Na selva das cidades. Como tem sido essa incursão pela sua obra?
CIBELE FORJAZ Galileu foi um convite de Denise (Fraga). Ela vinha do trabalho com Brecht e resolveu montar essa peça. Quem ia dirigir era Aderbal (Freire-Filho), e depois ela me chamou. E foi uma criação em coletivo, um caso superdiferente. Quando fui fazer Galileu, estava já montando outro trabalho: Na selva das cidades, da Mundana. No processo de pesquisa, Denise me convidou. E achei que era uma sincronicidade, porque eu estava estudando um jovem Brecht e ela me convidava para dirigir um velho Brecht. Além disso, Galileu Galilei e Na selva das cidades são duas peças que o Oficina montou ao mesmo tempo. A selva foi a grade virada do Oficina para um teatro radicalmente aberto à interferência do público.

CONTINENTE Sua leitura para Na selva também passa por um processo de pertencimento. Como ocupação e teatro dialogam nessa montagem?
CIBELE FORJAZ A selva é muito forte. A gente fez imersões por São Paulo inteira. A ideia é fazer ocupação e, em cada uma, uma peça, uma cenografia diferente. No processo, fizemos 12 imersões em pontos da cidade, coordenadas por grupo de dentro do grupo. Cada um criava um conceito de ocupação para cada lugar. E, a partir daí, eram criados conceitos. Todo mundo dirigiu. As 30 pessoas foram diretoras dessas imersões e ocupações. Faremos a peça sempre em obras. Ela não é marcada, temos regras de jogo e os atores recriam o espetáculo a cada dia. Se a gente viesse ao Recife, a ideia seria ocupar o Estelita. Se você faz na rua, na cidade, num canteiro de obras, numa comunidade, toda a história daquela comunidade tem que estar na peça. 

MATEUS ARAÚJO, jornalista, mantém o blog Terceiro Ato no portal NE10.

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