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Ardèche: Para redescobrir nossa energia ancestral

Réplica da Gruta de Chauvet, no Sul da França, nos leva a uma trilha pelas pinturas mais antigas do mundo, encontradas no paraíso natural da Pont D’Arc

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Março de 2016

Pont D'Arc, que dá nome à caverna, foi feito pela natureza é o ícone de Ardèche

Pont D'Arc, que dá nome à caverna, foi feito pela natureza é o ícone de Ardèche

Foto Wikipedia/Divulgação

Era o fim de 1994, a poucos dias do Natal, quando três exploradores entraram pelas gargantas naturais de Ardèche, uma dessas belezas imperdíveis do Sul da França. Então, percorrendo um dos seus caminhos tortuosos em busca de cavernas, eles sentiram sopros de ar que os levariam “a uma das maiores descobertas da história da humanidade”. Espremendo-se por uma passagem bastante estreita, os espeleólogos Eliette Brunel, Christian Hillaire e Jean-Marie Chauvet encontraram uma gruta que, a princípio, “não parecia conter nada de especial, além de ser particularmente bonita”. No entanto, explorando mais a fundo a caverna, depararam-se com o que hoje os especialistas definem como “as mais antigas pinturas já descobertas no planeta”. Assim nos conta o cineasta Werner Herzog, na abertura do seu documentário A caverna dos sonhos esquecidos (2010) – aliás, tão imperdível quanto Ardèche, a cerca de 600 km de Paris.

Localizado na região de Rhône-Alpes, cuja capital é Lyon, o departamento francês pode soar ainda estranho aos estrangeiros, mas é um desses lugares mais procurados pelos ecoturistas do país. Poderíamos dizer que é uma espécie de Chapada Diamantina da França, onde não se tem acesso fácil, a não ser por estrada (não há trens nem aeroportos). O “acaso” da natureza nos deu este presente: em certo tempo geológico, as águas do Rio Rhône mudaram de rumo e formaram o afluente de Ardèche. Este, por sua vez, penetrou as rochas vulcânicas da região, preencheu o vale entre os cânions (a chamada gorge, ou garganta) de um verde peculiar e esculpiu a famosa Pont D’Arc (Ponte de Arco, em alusão ao seu formato), o ícone do local e, não à toa, o nome da caverna descoberta em 1994. Sob esta ponte natural, o cenário se enche, a cada verão, de banhistas e aventureiros aficionados pelo caiaque, que podem ser alugados à margem do rio.


Reconstrução da Gruta de Chauvet recebe visitantes desde abril de 2015.
Foto: Patrick Aventurier/Divulgação

Existe em Ardèche uma energia ancestral e, com ela, a sensação de que há por lá muito a se desvendar. De certo modo, não foi tão casual a descoberta da Caverne du Pont D’Arc, conhecida como a Gruta de Chauvet – em referência ao líder da expedição que a encontrou. O que aconteceu, na verdade, foi sorte, tanto para os exploradores, quanto para nós, pois, graças a um deslizamento de terra, a entrada da gruta se fechou e suas relíquias permaneceram conservadas, durante séculos, sob a escuridão e o frio da caverna. Para sermos mais exatos: durante 20 mil anos, tempo no qual, calcula-se, aconteceu o acidente natural. Mas as pinturas mais antigas do local datam de 35 mil anos, época em que se instalaram os primeiros Homines sapiens na Europa.

Os cientistas afirmam, segundo vestígios locais, que eles não chegaram a habitar a caverna, mas fizeram dessa gruta seu templo, onde contribuíram, através da criação artística, para que nos tornássemos seres capazes de interpretar e transcender a realidade. Na verdade, poderíamos chamá-los Homines spiritualis, para lembrar as palavras de Jean Clottes, especialista da arte paleolítica, conservador geral do Patrimônio na França e coordenador dos estudos da caverna após sua descoberta. “De fato, a arte é um indício de uma espiritualidade, seja lá o sentido preciso que atribuamos a ela. Desenhar era uma forma de agir sobre a realidade”, comenta o pesquisador, em entrevista para uma edição especial sobre Ardèche da revista do jornal Le Dauphiné.


Feito a carvão, o mural dos cavalos é um dos destaques da caverna e também foi copiado. Foto: Patrick Aventurier/Divulgação

Assim sendo, a região cuja história atesta mais de 500 milhões de anos de trabalho geológico, com testemunhos de passagem de dinossauros e espécies marinhas, torna-se agora não apenas rota de geólogos, biólogos, historiadores e aventureiros, mas o destino daqueles interessados em praticar um turismo cultural. Viagens assim costumam ser realmente especiais. Imagine que não está em Paris a galeria de arte mais antiga da França – e até que se prove o contrário, também do mundo. Ela não tem 200 nem mil anos de existência, mas cerca de 300 séculos de história. Ao longo de seus 400 m de extensão e 8.500 m² de área subterrânea, a gruta desfila, sobre as superfícies de suas formações rochosas, um conjunto de desenhos e pinturas incomuns deixados pelos povos do chamado Paleolítico Superior. São imagens e painéis rupestres que certamente teriam ouriçado os mais ousados vanguardistas do início do século 20, como Pablo Picasso, caso tivessem tido a chance de vê-los. Na verdade, são trabalhos inimagináveis, até pouco tempo, para os mais estudiosos da Pré-História e mesmo da arte – embora existam exemplares relevantes de outro povo, época e região, na Gruta de Lascaux (Montignac, França).

Até 1994, Lascaux era a grande referência da arte pré-histórica na Europa. Como esta, descoberta nos anos 1940, Chauvet não está aberta à visitação do público, por razões de conservação (em 2014, a Unesco classificou a gruta como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade). Atestou-se, com a experiência de Lascaux, que o gás carbônico exalado pelos visitantes danificava as pinturas. A solução encontrada para Lascaux foi a mesma adotada para Chauvet-Pont D’Arc: construir uma réplica da caverna e das suas obras para mostrar ao público.


O artista Gilles Tosello foi o responsável pela reprodução das pinturas na gruta ornada. Foto: Carole Fritz/Divulgação

A Lascaux II, nome da primeira caverna a ser copiada, foi feita em 1970, com réplicas dos chamados salões dos touros e do divertículo axial. A gruta ornada da Pont D’Arc foi finalizada em abril do ano passado, em local próximo à caverna original, e está imersa em um complexo cultural com bosque, galeria de objetos pré-históricos, salão de conferência, restaurante, loja, área de atividades educativas, mirante e a gruta, uma versão compacta com 3 mil m² dos 8.500 m² da área original.

O frisson hiperbólico dos franceses em torno da reconstituição de Chauvet é tão patente (ou maior) quanto a descoberta de 1994, sobretudo a partir de 2015, quando a justiça francesa recusou aos três descobridores o benefício exclusivo da divulgação das obras e a originalidade das fotos tiradas na caverna. Enquanto isso, na região de Périgord, ao sudoeste do país, já estão aprontando, para 2016, uma versão high-tech da Lascaux II, sob a alcunha de Lascaux IV. Seja lá como for, é possível afirmar, pelo menos no caso de Ardèche, que visitar um cenário magistral dentro de outro esplendorosamente natural vale, sim, cada quilômetro percorrido.

GRUTA ORNADA
Leões, mamutes, rinocerontes, cavalos, insetos e toda sorte de animais com os quais conviveram os primeiros humanos da Europa estão no arsenal pictórico da galeria subterrânea de Pont D’Arc. Embora ainda não se saiba, ao certo, as motivações e os significados em torno da criação dessas imagens, não se trata de uma mera mimese da realidade, mesmo que seja consenso, entre cientistas, o caráter globalmente naturalista da arte paleolítica. Também fica difícil analisá-las pela perspectiva da narrativa presente no cerne da arte moderna e do nosso olhar sobre ela. Porém, sob ponto de vista formal, é preciso reconhecer que o naturalismo dos traços dos artistas de Chauvet, elaborados com carvão (a maioria) ou a dedo, não possuem a mesma simplicidade que se costuma atribuir aos desenhos rupestres mais recentes – como os datados de 6–7 mil anos descobertos no Vale do Catimbau (PE) ou na Serra da Capivara (PI), por exemplo.


Os artistas do Paleolítico deixaram mãos em positivo e negativo.
Foto: Divulgação

Para criar suas figuras, os ancestrais europeus aproveitavam as ondulações, os sulcos e a própria matéria da caverna, com suas protuberâncias e nuances, desenvolvendo técnicas de volume, sombra e movimento a partir disso. Também costumavam raspar as camadas das paredes para alcançar o branco do fundo. Depois disso, começavam a dar vida aos bichos que agora chegam a nós e assustam pela força e beleza, dando, às vezes, a sensação de que vão romper o silêncio milenar da caverna com seus rugidos, grunhidos, relinchos e passos ligeiros.

Ao ser questionado pelo Le Monde sobre o porquê de a descoberta da gruta ter sido um choque para os pesquisadores da Pré-História, o especialista do Paleolítico Jean-Michel Geneste referiu-se não apenas à sua excepcionalidade geológica, à riqueza de seus vestígios e ao seu estado de conservação, mas ainda à importância da cor em sua composição como um todo. É uma caverna “onde o rosa e o vermelho dominam e no interior da qual foram realizados os desenhos em vermelho e preto”, diz ele. “Lá existe a evidência de um investimento intencional para colocar em cena as obras dentro uma belíssima gruta natural. Essas obras são organizadas a partir de uma ideia de progressão, que começa pelos painéis majoritariamente vermelhos, espaçados e desconectados, para conduzir-nos em direção a grandes salas com suntuosas composições em negro”, descreve Geneste.


Coruja feita a dedo chama a atenção entre as figuras da gruta. Foto: Patrick Aventurier/Divulgação

Apesar de compacta, a nova versão de Chauvet nos conduz justamente por esse percurso e pela sensação de que estamos numa galeria de arte muito bem-pensada e adornada. OK, sejamos honestos: visitar a réplica de uma gruta está longe de ser a mesma experiência intergalática de se adentrar em uma caverna natural. Mas a vivência proposta na réplica não está tão distante assim. Sempre em grupo e mediada por um guia, a visita se dá como se estivéssemos numa trilha. Todos os espaços ficam escuros, até que uma lanterna ilumina, de forma direcionada, cada um dos desenhos. E eles vão aparecendo como se estivéssemos descobrindo-os pela primeira vez. É impossível não viajar no tempo, nem se emocionar dentro do espaço, cuja visita dura cerca de uma hora, em 10 pontos de observação. Até o cheiro, a umidade, o silêncio, as estalactites e estalagmites da caverna foram replicados. O resultado vem do casamento entre o esforço e a sensibilidade de artistas e cenógrafos, e a tecnologia empenhada nessa reconstituição – além do investimento, é claro, de 50 milhões de euros no projeto.

Entre as pinturas replicadas pelo artista e historiador do Paleolítico Gilles Tosello, quase não há representações humanas, como acontece também na gruta original – outra diferença em relação aos pré-históricos latino-americanos. Mas há interpretações significativas dos homens e das mulheres que ali passaram: uma figura feminina com cabeça de bisão e várias palmas de mãos. Detalhe: em algumas delas, há um mindinho levemente torto; em outras, as mãos aparecem não só manchadas e carimbadas na parede, em positivo, mas também em negativo, quase como se fosse um estêncil, pois a cor vermelha cerca o formato da mão, em vez de preenchê-la. O grand finale da visita é um painel de leões em bando, feitos com carvão. Os cavalos em disparada são outra contemplação à parte, assim como os rinocerontes em disputa. Esta última é uma cena tão rara na arte primitiva quanto a técnica empenhada nessas pinturas.


Painel dos leões impressiona pela técnica de volume e movimento. Foto: Petrick Aventurier/Divulgação

Replicar esses desenhos é, portanto, desvendar um pouco dos mistérios da criação artística em sua energia milenar. A descoberta de Chauvet ajuda a reinventar não só a trajetória humana na Terra como a própria história da arte. Não sabiam os modernistas que a pintura em movimento já havia sido estudada nos tempos da caverna. E voltar até elas, refeitas aos olhos do público contemporâneo, é mais do que uma experiência de fruição de obras numa galeria – tanto que o público não vem apresentando o mesmo perfil das exposições de arte da França, como atesta o gestor do espaço Kleber Rossillon.

Visitar a gruta se mostra, de alguma forma, uma redescoberta sobre nós mesmos. E, até agora, cerca de 475 mil pessoas tiveram “a possibilidade de viver esse encontro com nosso espelho ancestral”, como já disse a jornalista Eliane Brum, para quem o contato com Chauvet deveria ser “garantido a todos, em qualquer lugar”. 

Para fazer uma visita virtual na gruta original, acesse:
http://archeologie.culture.fr/chauvet/fr/visiter-grotte

OLÍVIA MINDÊLO, jornalista, com mestrado em Sociologia.

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